John Stuart Mill: “em defesa da liberdade”

Os argumentos em defesa da liberdade

“A doutrina da liberdade que Mill propõe não parece ser nem simples nem consistir em um único princípio. Segundo o primeiro parágrafo do terceiro capítulo de On Liberty, Mill afirma “(...) as razões que tornam imperativo os seres humanos serem livres para formar suas opiniões e para exprimi-las sem reservas” é que os homens devem ser “(...) livres para agir segundo as opiniões – para colocá-las em prática, na sua vida, sem obstáculo, físico ou moral, da parte de seus semelhantes, enquanto o façam por sua própria conta e risco”. Imediatamente depois de anunciar seu princípio que é qualificado como “muito simples”, Mill começa a desenhar o seu contorno, a apontar as exceções, a legitimar as intervenções e a multiplicar as aplicações onde o princípio se arrisca a entrar em contradição. Uma vez destacado o programa do Ensaio, a demarcação entre a liberdade individual e o domínio de competência da sociedade sobre o indivíduo, Mill ressalta que a tarefa do ensaio é complexa e difícil, apresentando, no entanto uma solução perfeita e absoluta, e cedendo lugar a interrogações sobre aquilo em que os críticos estão fundamentalmente de acordo. Como é possível arbitrar de maneira absolutamente eqüitativa por meio de um princípio simples e geral um número ilimitado de casos, diversos, complexos e relativos, ou os interesses do indivíduo e da sociedade sem que haja conflitos? Como é possível indicar, com um parágrafo rigoroso (o parágrafo em que Mill estabelece a finalidade de On Liberty), a fronteira entre o que concerne somente ao indivíduo e o que concerne a terceiros, duas regiões nas quais a definição está sujeita a múltiplas circunstâncias e um limite no qual a concretização é impossível, senão extremamente difícil?

Mill não aponta nenhuma resposta a estas questões no segundo capítulo consagrado à liberdade de expressão, e isso por uma razão muito simples. É que Mill considera esta liberdade como absoluta. Conseqüentemente, o problema do limite não ocorre para se postular tal existência. Ou seja, nada deve proibir a expressão de uma opinião, mesmo aquela que se presume falsa ou imoral. Ao longo deste capítulo, Mill se esforçará por demonstrar a necessidade, para o bem geral da humanidade, da liberdade de pensamento e expressão. E é somente no início do terceiro capítulo, sobre a liberdade de ação e desenvolvimento da individualidade que Mill, retornando ao tema, afirma que a liberdade de ação ainda que seja “um dos principais ingredientes da felicidade humana é, em todo caso, o ingrediente mais essencial do progresso individual e social”, comporta conseqüências deploráveis quando nenhum limite lhe é atribuído. Este limite não é, no entanto, explicado por Mill. Formula-o, entretanto, do seguinte modo: “A liberdade do indivíduo deve ser, assim, limitada; ele não deve se tornar nocivo a outras pessoas”. Todavia, nem o efeito prejudicial nem o que o justifica será feito por Mill o objeto deste capítulo.

No entanto, se Mill insiste sobre a demonstração do valor desse bem superior que é a liberdade humana e lhe consagra dois terços de seu Ensaio não é simplesmente por que seu amor à liberdade o faz se esquecer do valor que a liberdade possui para ele, como o acusa injustamente Gertrud Himmelfarb. Mill está engajado na Introdução a fazer da questão do limite da liberdade o objeto principal de seu ensaio.

“Quais são, então, os justos limites à soberania do indivíduo sobre si mesmo? Onde começa a autoridade da sociedade? Quanto de vida humana se deve atribuir à individualidade, e quanto à sociedade?”. É assim que Mill inicia o quarto capítulo de seu ensaio.

À primeira vista estas questões postulam a existência de duas regiões independentes, a saber, a individualidade de um lado e a sociedade de outro; isto poderia servir de prova às diferentes reprovações críticas feitas a Mill, as quais alegam uma possível concepção redutivista das relações sócio-individuais, que, na realidade, é muito complexa e inter-relacional. Mas, ao se confrontar os textos de On Liberty, esta primeira impressão não pode se justificar por que o “princípio muito simples” de Mill não visa traçar um limite entre dois blocos completamente distintos: o individual de uma parte e o social de outro. Ele se destina, pois, a indicar o campo de ação que concerne “mais particularmente ao individuo” e que, juridicamente, é independente do que o “interessa principalmente à sociedade”.

Esta precisão é essencial. Ela permite denominar três categorias de ações individuais, segundo Mill. Primeiramente são as ações que concernem ao agente mesmo. Em segundo lugar, as ações que concernem mais particularmente a terceiros e, em terceiro lugar,

(...) uma esfera de ação sobre a qual a sociedade, em contraposição ao indivíduo, somente possui um interesse indireto, se é que o possui. Tal esfera compreende toda a porção da vida e da conduta de uma pessoa que afeta apenas a ela mesma ou, se afeta igualmente a outros, afeta-os unicamente na medida em que há seu consentimento e participação livre, voluntária e consciente. Quando digo apenas ela mesma, entendo o que lhe interessa diretamente e em primeiro lugar, já que tudo o que a afeta pode afetar outros por intermédio dela (...).
O fato de viver em sociedade torna indispensável que cada um esteja obrigado a observar uma certa linha de conduta para com os demais. Essa conduta consiste, primeiro, em não prejudicar os interesses uns dos outros ou, antes, certos interesses, que devem ser considerados, seja por expresso dispositivo legal, seja por acordo tácito, como direitos; e, segundo, em cada um arcar com sua parte (a ser fixada de acordo com algum princípio eqüitativo) nos esforços e sacrifícios necessários para a defesa da sociedade ou de seus membros contra o dano e o molestamento. É justificável que a sociedade imponha essas condições, mesmo à custa dos que se recusam a cumpri-las. Isso, porém, não é tudo o que é permitido à sociedade fazer. Os atos de um indivíduo podem ser prejudiciais a outros, ou carecer da devida consideração por seu bemestar, sem, no entanto, chegar ao ponto de violar algum dos seus direitos constituídos. Nesse caso o ofensor pode, com justiça, ser punido pela opinião, embora não pela lei. Tão logo qualquer parte da conduta de alguém influencia de modo prejudicial os interesses de outros, a sociedade adquire jurisdição sobre tal conduta e a questão de saber se essa interferência favorecerá ou não o bem-estar geral se abre à discussão. Mas não há espaço para cogitar dessa questão quando a conduta de uma pessoa não afeta senão os próprios interesses, ou não afeta os interesses dos outros se eles assim não o quiserem (todas as pessoas envolvidas tendo atingido a maturidade gozando do grau extraordinário de discernimento). Em todos esses casos, deveria haver perfeita liberdade, legal e social, de praticar as ações e assumir as conseqüências.

Deste longo parágrafo podem ser extraídos quatro pontos essenciais nos quais a individualidade e seus limites estão fundados. Primeiramente, cada indivíduo tem o direito de desenvolver seu próprio “plano de vida”. Segundo, em virtude desta proteção que a sociedade lhe fornece, cada indivíduo possui a obrigação de não interferir nos direitos legais dos demais. Terceiro, o indivíduo “pode” prejudicar diferentemente aos demais. E, conseqüentemente, o Quarto ponto, a cada gênero de dano corresponde uma punição apropriada. Deste modo, a equação indivíduo-sociedade se reequilibra.

Sendo assim, a expressão “interesses de outros” não é vaga, sendo útil para compreender os controles que afetam cada conduta individual que se distingue da conduta ordinária segundo uma concepção majoritária. Auxilia, ainda, na constituição dos direitos que as leis se encarregam de definir. Invadir os direitos de outros é, sobretudo, “(...) infligir-lhes perdas e danos que seus direitos próprios não justificam, falsidade e duplicidade ao haver-se com eles, uso injusto ou mesquinho de vantagens em detrimento deles, mesmo a abstenção egoísta de defendê-los contra ofensas (...)”. Isto é o que Mill resume com as palavras “causar dano ‘diretamente’ aos outros”.

Se aceitarmos uma dessas definições de ações, diretamente nocivas a terceiros, devemos aceitar também os dois pontos fundamentais que acabam resultando; Primeiramente, alguém pode considerar como não diretamente nociva e, então, tampouco punível, as ações que provocam nos outros um sentimento de aversão ou ressentimento. Em segundo lugar, o indivíduo deixa de ser exclusivamente responsável por seus atos reprováveis. Isto por que,

A sociedade possui sobre eles um poder absoluto durante a fase inicial de sua existência, possui o período inteiro de sua infância e adolescência para tratar de torná-los capazes de se conduzir racionalmente ao longo de sua vida (...) Se a sociedade permite que um número considerável de seus membros cresça como meras crianças, incapazes de ser influenciadas pela consideração racional de motivos remotos, é a sociedade que precisa se censurar pelas conseqüências.

Para justificar esses dois aspectos de sua defesa da liberdade, não faltam argumentos a Mill.

Uma ação individual pode causar danos, como temos visto, direta ou indiretamente a terceiros. Diretamente, quando colide com os direitos fundamentais de outras pessoas e reconhecidos como tais, seja por “disposição legal expressa ou por acordo tácito”. Indiretamente, quando a ação não afeta as demais ações que se pensa serem boas. Dito de outra forma, quando outros, sem que nenhum de seus direitos sejam violados pelo comportamento individual em questão, não devem interferir na interpretação, avaliação e julgamento segundo sua convicções religiosas, morais ou políticas. Esse comportamento poderia inspirar repugnância, ressentimento ou mesmo ódio. Poderia também parecer inútil, degradante e perigoso para o próprio autor. Outros poderiam finalmente ver esse indivíduo realizando um “mau exemplo” para a sua geração ou para a geração futura. Neste caso, se o sentimento de aversão se transforma em uma vontade de censurar a ação repulsiva, os demais se tornam uma espécie de ‘polícia moral’ sobre a liberdade e, é essa ‘polícia’ que, por conseguinte, castiga o indivíduo. Aqui, a ação que afeta diretamente o seu autor é prejudicial aos demais apenas indiretamente. Distinguir, no entanto, essas duas classes de ações, a linha de demarcação entre as ações que concernem tão somente ao agente e as ações que concernem a terceiros, é um trabalho que ainda continua sendo alvo de debate entre os defensores e críticos de Mill.

Procuremos, não obstante, avançar no esclarecimento do princípio muito simples de Mill. Um modo de prosseguir nesta busca de compreensão é analisando o significado de originalidade. Segundo Mill:

‘A finalidade do homem, não a que é sugerida pelos vagos e efêmeros desejos, mas a que lhe é prescrita pelos eternos e imutáveis ditames da razão, consiste no mais elevado e harmonioso desenvolvimento de seus poderes num conjunto completo e coerente’; portanto, o fim ‘para o qual todos os seres humanos devem incessantemente dirigir seus esforços, e o qual devem sempre manter em vista, sobretudo os que têm o desígnio de influenciar seus semelhantes, é a individualidade do poder e do desenvolvimento’. Para tanto, existem dois requisitos, ‘liberdade e variedade de situações’, de cuja união emerge ‘o vigor individual e a múltipla diversidade’, que se combinam para produzir a ‘originalidade’.

Por “originalidade” Mill não entende simplesmente a descoberta de verdades novas, mas a descoberta de práticas e de modos novos de vida. Estes são, com efeito, alguns dos fins a que a liberdade de ação ou a cultura da individualidade estão direcionadas. Entretanto, Mill defende que a originalidade não possa ser esperada da parte da maioria das pessoas. De fato, Mill assevera que “(...) em comparação com o restante da humanidade, são poucas as pessoas cujas experiências, caso adotadas por outras, poderiam representar algum progresso na prática estabelecida. Essas poucas, porém, são o sal da terra; sem elas, a vida humana se tornaria um lago estagnado”. Esses são os espíritos originais e criativos que Mill chama de “homens de gênio”.

É verdade que as pessoas de gênio são, e provavelmente sempre serão uma pequena minoria; no entanto, para tê-las é necessário conservar o solo em que crescem. O gênio só pode respirar livremente numa atmosfera de liberdade. As pessoas de gênio são, ex vi termini, mais individualizadas do que todas as outras e menos capazes, conseqüentemente, de se ajustar, sem compressão danosa, a qualquer um dos poucos padrões fornecidos pela sociedade (...)

A maioria dos homens, assinala Mill, concede pouca relevância ao gênio. Eles pensam que é algo bonito tornar possível a alguém “escrever um poema ou pintar um quadro”, mas não concebem o gênio em termos de “originalidade de pensamento e de ação”, acreditando que “podem muito bem passar sem ele”. A esse tipo de gênio, todo mundo é hostil. E aqui Mill retorna a um dos temas do primeiro capítulo, a saber, a “opinião pública” que dirige e domina toda a sociedade. Adiante ele descreve a opinião pública como um obstáculo à liberdade e à individualidade, e agora a apresenta como a mais terrível inimiga da originalidade do gênio, sendo que “(...) seja qual for a homenagem que se manifeste ou mesmo se preste à real ou suposta superioridade mental, a tendência em todo o mundo é promover a mediocridade (...)”. A opinião pública dirige em toda parte do mundo, mesmo quando não influencia do mesmo modo os posicionamentos individuais e é sempre reflexo ou tem as características da “massa”, ou seja, “da mediocridade coletiva”.

O gênio é, então, para Mill, o objeto de uma solicitude especial, sendo especialmente a individualidade do gênio que ele mais apreciou. Mas, como o gênio não pode florescer sem uma “atmosfera de liberdade”, todos devem ter o mesmo direito ao mesmo grau de liberdade, sendo que a individualidade, identificada ao gênio é, segundo Mill, um ideal acessível a todos. Conseqüentemente não se trata, para Mill, de um conceito elitista. Ele pensa que só uma minoria instruída é capaz de inventar novas práticas e novas formas de vida. Mill tem em vista que a este homem não cabe, entretanto, forçar os homens ignorantes a realizar suas individualidades, pois isto seria uma contradição. Sendo assim, “o poder de compelir outros a esse caminho não apenas é incompatível com a liberdade e o desenvolvimento dos demais, como ainda corrompe o próprio homem forte”.

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Fonte:
MAURO CARDOSO SIMÕES: “LIBERDADE E PATERNALISMO SEGUNDO JOHN STUART MILL: UMA ANÁLISE DAS TESES DE ON LIBERTY”. (Tese de Doutorado em Filosofia apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. João Carlos Kfouri Quartim de Moraes). Campinas, 2007.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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