A crítica de Calvino ao Estado



"Para Calvino, Igreja e Estado eram duas ordens que tinham a mesma origem e objetivo: provinham de Deus e foram instituídas por ele para a promoção de seu reino.90 Toda a sua crítica ao Estado, e posteriormente à Igreja, está relaciona com o que presencia em Genebra, quando da sua chegada em julho de 1536, e após ser persuadido por Farel a permanecer e ajuda-lo a transformar Genebra numa cidade evangélica.

Aceito o convite e recebido oficialmente pelo concílio, Calvino rapidamente empreende esforços para a organização da cidade nos moldes protestantes. Convoca uma reunião com toda a cidade para renúncia coletiva ao papado e aceitação da fé reformada; propõe a aprovação individual do Catecismo e da Confissão de Fé, sendo que ambas as tentativas não lograram o êxito esperado por ele.

Mas o que vai realmente contrariar Calvino e demonstrar a proeminência do Estado sobre a Igreja é o que ocorre posteriormente. O Concílio, talvez com medo do descontentamento do povo em relação às medidas propostas por Calvino, resolve assumir a jurisdição em assuntos religiosos e morais. Calvino não aceita tamanha jurisprudência do Estado sobre assuntos que, conforme pensava, caberia à Igreja resolver.

Um exemplo disso diz respeito ao direito de excomunhão. Esse direito estava nas mãos dos magistrados
cabendo à Igreja apenas o direito de admoestação. Calvino vai lutar durante mais de quinze anos para conseguir que a excomunhão fosse prerrogativa da Igreja, o que vai ocorrer apenas em 1555.

Somando-se a estes aborrecimentos, nas eleições de 1538 há um considerável aumento de pessoas no Concílio, favoráveis a uma atitude mais liberal com respeito aos costumes.
A situação de Calvino e dos demais pastores de Genebra se torna insuportável quando são obrigados pelo Concílio a ministrarem a Santa Ceia a quem cometesse pecado considerado grave, desde que a pessoa se considerasse apta, o que contrariava profundamente a concepção do sacramento por parte dos reformadores.

Para não comprometer as relações com Berna, os concílios de Genebra aceitam a imposição da cidade aliada, no que diz respeito à adoção das práticas religiosas bernenses.
Assim, conseqüentemente, os pastores de Genebra são obrigados pelo Conselho a seguirem os rituais religiosos de acordo com Berna. Calvino e Farel se recusam a faze-lo e são proibidos de pregar. Desobedecem as ordens e são expulsos de Genebra em 23 de abril de 1538.

O que estes acontecimentos querem demonstrar? Uma diminuição considerável e gradativa da autoridade dos pastores, e conseqüentemente, da Igreja, e cada vez mais o aumento do poder do Estado em detrimento ao da Igreja, na Genebra do século XVI.

Também, para além de demonstrar a diminuição gradativa da autoridade da Igreja em Genebra, os fatos expostos acima vêm derrubar a tese de alguns historiadores de que Calvino era um verdadeiro ditador e sua intenção era promover uma verdadeira teocracia em Genebra.

Calvino começa então sua crítica ao despotismo do Estado e à omissão da Igreja pelo levantamento das suas obrigações. Segundo Calvino, nas suas
Institutas, as obrigações do Estado consistiam em

manter e conservar o culto divino externo, a doutrina e a religião em sua pureza, o estado da Igreja em sua integridade, fazer-nos viver com toda justiça, instruir-nos numa justiça social, colocar-nos em comum acordo uns com os outros, manter e conservar a paz e a tranqüilidade comuns.

O levantamento das obrigações do Estado, em sua crítica, parece evidenciar o não cumprimento destas, no todo ou em partes, da parte deste. Mas, como se irá constatar no desenvolvimento desta pesquisa, a crítica está direcionada muito mais à dominação do Estado sobre a Igreja, ou dito de outra maneira, à intervenção do Estado em áreas onde somente a Igreja, segundo Calvino, tinha autoridade.

Na relação entre Estado e Igreja, o primeiro possuía autoridade para manter a pureza da doutrina cristã e a integridade da Igreja, mas não se pode confundir esta
autoridade sobre os cidadãos, com o fim de mantê-los em certa ordem e obediência com a autoridade que somente o Espírito Santo tem sobre a Igreja. Assim Calvino, comentando João 18,36 em Comentários ao Novo Testamento, diz:

O Reino de Cristo, sendo espiritual, deve ser fundamentado na doutrina e no poder do Espírito. Dessa forma, sua edificação é promovida, pois, nem as leis nem os editos dos homens, nem as punições impostas por eles participa nas consciências. Contudo, isto não impede, por acaso, os príncipes de defender o Reino de Cristo. Em parte pela disciplina externa, e em parte, emprestando sua proteção contra os homens maus.

Para Calvino, o Estado tem limites bem definidos: está a serviço de Deus e do povo. Comentando Romanos 13,4, ele diz que

Os Magistrados podem daqui aprender no que consiste sua vocação, para não governarem mais em seu próprio interesse, mas para o bem público, nem são imbuídos com poder desenfreado, mas restrito ao bem-estar de seus assuntos; em resumo, são responsáveis a Deus e aos homens no exercício de seu poder.

Sendo o Estado instituído por Deus, tanto quanto a Igreja, este serviço prestado ao povo implica, em contrapartida, obediência e submissão por parte deste ao Estado. Esta obediência e submissão visam, ao mesmo tempo, a manutenção da fé e da ordem social, que teimam em ser desmanteladas tanto pela insubmissão quanto pelo conformismo à ordem civil. Segundo Calvino,

en el día de hoy existen hombres tan desatinados y bárbaros, que hacen cuanto pueden para destruir esta ordenación [gobierno] que Dios ha establecido; y, por su parte, los aduladores de los príncipes, al engrandecer sin límite ni medida su poder, no dudan en ponerlos casi en competencia con Dios. Y así, si no se pone remedio a tiempo a lo uno y a lo otro, decaerá la pureza de la fe.

Mas esta obediência e submissão também são limitadas pela obediência e submissão a Deus. Ainda nas
Institutas, Calvino deixa isso bem claro ao dizer que,

Mas, en la obediencia que hemos enseñado se debe a los hombres, hay que hacer siempre una excepción; o por mejor decir, una regla que ante todo se debe guardar; y es, que tal obediencia no nos aparte de la obediencia de Aquel bajo cuya voluntad es razonable que se contengan todas las disposiciones de los reyes, y que todos sus mandatos y constituciones cedan ante las órdenes de Dios, y que toda su alteza se humille e abata ante Su majestad.

Para Calvino, as pessoas devem submeter-se primeiramente a Deus, o que não abole sua tese de que devem submeter-se também às autoridades, visto serem estas instituídas por Deus para a manutenção da ordem social. Porém, esta submissão primeira a Deus vai evoluir para uma teoria da resistência, visto que o próprio Calvino vai concluir, dando continuidade à sua teoria da submissão a Deus e ao Estado, que

después de Él hemos de someternos a los hombres que tienen preeminencia sobre nosotros; [...] Si ellos mandan alguna cosa contra lo que Él ha ordenado no debemos hacer ningún caso de ella, sea quien fuere el que lo mande. [...] Por el contrario, el pueblo del Israel es condenado en Oseas por haber obedecido voluntariamente a las impías leyes de su rey (Os. 5,11). Porque después que Jeroboam mandó hacer los becerros de oro dejando el templo de Dios, todos sus vasallos, por complacerle, se entregaron demasiado a la ligera a sus supersticiones (1 Re. 12,30), y luego hubo mucha facilidad en sus hijos y descendientes para acomodarse al capricho de sus reyes idólatras, plegándose a sus vicios. El profeta con gran severidad les reprocha este pecado de haber admitido semejante edicto regio.

Se cabe à ordem civil, segundo Calvino, entre outras coisas, .hacernos vivir con toda justicia, [...] instruirnos en una justicia social, ponernos de acuerdo los unos con los otros, mantener y conservar la paz y la tranquilidad comunes.,
toda ordem dada que venha a ferir os principios evangélicos da justiça, da solidariedade, da paz entre os seres humanos deve ser rechaçada, ou melhor, resistida como prova de obediencia a Deus. Calvino termina as Institutas afirmando que .verdaderamente daremos a Dios la obediencia que nos pide, cuando antes consentimos en sufrir cualquier cosa que desviarnos de su santa Palabra.

Já foi visto que para Calvino a Igreja é um meio pelo qual a graça justificadora de Deus visa alcanças os seres humanos e melhorar suas relações sociais. Mas a Igreja, formada por uma parcela da sociedade, continua com resquícios do pecado, não podendo, por isso, restaurar completamente esta sociedade.

Assim, segundo Calvino, Deus estabelece uma outra instituição que irá servir como instrumento de Deus para balizar as relações sociais de homens e mulheres ainda submetidos ao pecado, de maneira que consigam viver em comunidade. Conforme nos diz Biéler, .para evitar, pois, que todas as coisas descambem para a
desordem e o caos, Deus suscita, no quadro geral da sociedade, uma ordem provisória a que Calvino dá o nome de ordem política.

Calvino algumas vezes teve que combater a indiferença política dos cristãos, que muitas vezes queriam reduzir a vida à esfera espiritual. Embora para ele, o reino espiritual de Cristo e o poder civil sejam coisas muito diferentes entre si
112, .esta distinción no sirve para que tengamos el orden social como cosa inmunda y que no conviene a cristianos. Muito pelo contrário, ele entende que a Igreja tem uma missão política a desenvolver na sociedade. Segundo Biéler, o humanismo social de Calvino compreende que

A política não é, pois, sem relação com a ordem de Deus. Ela deve representar, em todas as sociedades, a ordem que mais se aproxima da ordem de Deus, tendo-se em conta o desenvolvimento espiritual dos habitantes em um lugar e um momento dados.

Esta missão política da Igreja pode ser dividida em quatro momentos ou tópicos, segundo Biéler. São eles: .orar pelas autoridades, advertir as autoridades, tomar a defesa dos pobres e dos fracos contra os ricos e poderosos, recorrer à autoridade política na aplicação das sanções disciplinares.
Esta pesquisa privilegiará o segundo e o terceiro tópicos, onde parece estar contida a missão profética da Igreja.

A Igreja tem uma missão profética, porque é ininterruptamente conclamada a denunciar as injustiças sociais, ao apregoar o Evangelho de Jesus Cristo, embora muitas vezes promova, ela mesma, com sua omissão, a desordem social. Para Biéler, a Igreja, de acordo ao humanismo social de Calvino,

é o fermento regenerador da vida social, política e econômica. E se a Igreja é morta, [...] se sua presença não imprime à sociedade total o impulso de sua própria e constante regeneração pela Palavra de Deus, então, ela mesma participa na propagação da desordem social.

Aqui se evidencia a crítica de Calvino àqueles cristãos que, por conformismo, não vivenciam a fé cristã na esfera política.

Aqueles incumbidos de anunciar o Evangelho, por vezes são suspeitos de
desordem social e política. Isto ocorre porque a ordem estabelecida e defendida pelos magistrados, pela ordem civil, está longe de ser uma ordem segundo os preceitos do Evangelho. Para Calvino, aqueles que consideram os cristãos fiéis como suspeitos de propagar a desordem, são os verdadeiros responsáveis por esta. Ao comentar At 17,6 em seus Comentários ao Novo Testamento, ele diz que

Tal é a condição do Evangelho, que os tumultos que Satanás suscita para combate-lo lhe são imputados. Eis também qual a maldade orgulhosa dos inimigos de Jesus Cristo, que lançam a culpa das perturbações sobre os santos e modestos professores, que eles mesmos obtêm.

Ao anunciar a verdadeira ordem que o Evangelho quer estabelecer, a Igreja denuncia a ordem vigente corrupta e a seus mantenedores, o que pode acarretar na perda de privilégios por parte destes. De acordo com Calvino, em sua
dedicatória ao livro dos Atos dos Apóstolos,

muitos príncipes, embora vejam o estado asqueroso de corrupção da Igreja, não tentam nenhum remédio, pois, quando a questão é alijar as corrupções de sua possessão antiga, da qual fruíram tranqüilamente, temem que a novidade e a mudança os ponham em perigo, e esta apreensão os retarda e os impedem de cumprir o seu dever.

Aqui está o cerne da crítica de Calvino ao Estado. No não cumprimento de suas obrigações, torna-se evidente sua corrupção. Por ser corruptível, o Estado não tem autoridade para invadir a área de atuação da Igreja. Fixam-se os limites para ambas as instituições: à Igreja cabe a missão profética de denunciar a corrupção do Estado, e ao Estado a manutenção da ordem política. Segundo Biéler, para o
humanismo social de Calvino,

o Estado, ao qual cabe manter pelas leis e pela coerção a ordem política, não dispõe de outra garantia contra sua própria corrupção. Com efeito, se a Igreja não o chamar constantemente à sua missão, o Estado torna-se também um fator de desordem.

A Igreja, através da denúncia e da resistência à ordem estabelecida, acaba por contribuir com a restauração da sociedade. Pode contribuir se permanecer fiel ao Evangelho, ou seja, seguir firme na sua missão de denunciar as injustiças, muitas vezes promulgadas pela própria ordem civil, colocando-se como defensora dos pobres e dos oprimidos. É o que se pode depreender do comentário de Calvino sobre Jeremias 7,6:

Quanto aos estrangeiros, e órfãos, e viúvas, [...] são quase destituídos de todo socorro e ajuda e estão sujeitos às injúrias de muitos, como se postos por presa. Portanto, cada vez que se faz referência a um governo bom e reto, Deus menciona os estrangeiros, e as viúvas, e os órfãos, por isso que daí se pode facilmente ver qual é a forma da administração pública da justiça. Não é, pois, de surpreender se os outros obtêm seu direito, porque têm eles advogados para defender-lhe as causas [...] Assim, quando alguém pleiteia sua causa, obtém pelo menos alguma parte de seu direito. Se, porém, os estrangeiros, os órfãos e as viúvas não são tratados injustamente, isto é evidência de verdadeira integridade.

É neste sentido que a missão profética da Igreja deve ser exercida em relação ao Estado, ou seja, manter uma certa vigilância sobre este no que diz respeito às suas atribuições, visto que o cumprimento destas tem como conseqüência a existência de uma sociedade mais justa, igualitária e solidária.”


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Fonte:
ABILIO TADEU ARRUDA: "A DOUTRINA TEOLÓGICA E SOCIAL DE CALVINO E A EDUCAÇÃO PARA A SOLIDARIEDADE”. (Dissertação apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, para a obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Jung Mo Sung). São Bernardo do Campo, 2006.

Nota
:
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O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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