O espelho fraturado de Brás

“Como já foi salientado, nas palavras de Brás Cubas, o que o mata não é o “golpe de ar”, nem a doença em si, mas sua invenção – a mesma na qual ele depositava o desejo de imortalidade e que vai alterar tal ordem, matando-o. Porém, sua invenção não o condena ao anonimato, já que, como afirma Juracy Assmann Saraiva, “ao situar-se no reino dos mortos, ele adere ao fictício, ao mundo ilusório de um jogo de aparências, que lhe permite instituir-se como sujeito e auto-enunciar-se”. Sendo assim, de acordo com a autora, a morte se afigurará a Brás Cubas como um novo nascimento, sendo, portanto, a gênese do narrador e condição do ato narrativo.

A morte marcaria uma distinção entre narrador e protagonista, permitindo ao primeiro um distanciamento dos eventos narrados e da historicidade e possibilitando-lhe, assim, o desvendamento de sua vida, mostrando suas ambivalências e o que ela foi, efetivamente. Uma vez que a morte o separou de sua história, Brás Cubas nasce novamente (a campa foi seu outro berço) e, longe do peso do olhar da opinião de sua época, poderá escrever a sua vida, desnudando-a e revelando-a de forma mais crua.

Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: – amor da glória.

O projeto malogrado de aliviar a melancolia da humanidade, que resultou na morte de Brás Cubas, carrega em si o riso irônico de Machado de Assis, revelando como, por detrás de atos cristãos (“Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão”) e filantrópicos, escondem-se autênticos interesses pessoais. A morte do personagem, sendo a condição pela qual ele nasce como narrador, institui a verdade que será construída ficcionalmente. A este respeito Saraiva afirma que

“Contar é igual a viver [...] A narrativa é igual à vida; a ausência de narrativa, à morte”. Aceito esse princípio do relato primitivo, Brás Cubas não posterga a morte, mas, transpondo-a, faz dessa passagem o princípio orientador do narrar. Tanto Scherazade quanto Brás Cubas são narradores que vivem na medida em que narram, mas somente Brás Cubas encontra, na superação da vida, a possibilidade de interpretá-la. Pela morte, consolida-se, pois, a vida do narrador, e se define seu estatuto enquanto enunciador e protagonista do relato; ao mesmo tempo, sobre a morte funda-se a convenção tácita, firmada entre narrador e leitor, que repousa na adesão deste universo ficcional instaurando aquele.

Com a morte do personagem e, portanto, o nascimento do narrador, opera-se uma transformação no próprio indivíduo, que se constitui em enunciador e protagonista do relato e, respectivamente, em sujeito e objeto do discurso narrativo. Tal acontecimento provoca, pois, uma cisão do eu de Brás Cubas, sendo que entre o eu passado, que será revisto, e o eu presente, há a lacuna dessa cisão – lacuna onde se inscreve a circunstância da morte como fundamento da alteridade do narrador.

Ocorre, portanto, uma “divisão do eu em outro”, garantindo uma experiência de alteridade, na qual Brás Cubas poderá tomar a si mesmo como objeto de investigação, diferentemente do que se com os narradores memorialistas (os escritores de autobiografias, por exemplo), uma vez que o narrador memorialista normalmente encontra-se preso à sua subjetividade, a um eu que não tem o distanciamento necessário para se olhar de fora, do exterior, constituindo-se em uma barreira que se defende e resiste à própria análise, compreensão e julgamento, de modo que o sujeito, para evitar o sofrimento, “escolhe” por desconhecer-se.

A questão do eu também será analisada – mas desta vez com um enfoque maior sobre os protagonistas dos relatos – por Kátia Muricy, no livro A razão cética, Machado de Assis e as questões de seu tempo. Segundo Muricy, “a experiência da fragmentação da identidade e da não-linearidade do tempo, vividas pelos personagens machadianos, em especial por esses narradores [Brás Cubas, Dom Casmurro e Conselheiro Aires], relaciona-se à vivência na cidade grande – do Rio de Janeiro – no alvorecer de sua modernidade". A autora, ao referir-se ao narrador Brás Cubas e também ao personagem Bentinho, de Dom Casmurro, usa o termo “fragmentação do eu” para assinalar que

Também é em Memórias póstumas de Brás Cubas que o herói tem uma sensação física dessa fragmentação de seu eu ao narrador, no capítulo “As pernas”, quando, com o pensamento na amante, as pernas o levam, sem que ele se dê conta, a jantar no hotel Pharoux, dividindo sua consciência entre a dama e as conveniências do estômago e das alegrias mundanas. As pernas também conduziram Bentinho, contra sua vontade, a Capitu: “Que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços e valem de si mesmas, quando as cabeças não as rege por meio de idéias”. O corpo fragmenta-se também para dar à “sensação esquisita” de não se contar com a unidade de sentimentos, de idéias ou do comportamento – enfim, de uma unidade da consciência – em que se reconheça o mesmo sujeito. E é com uma certa volúpia da perda da consciência, essa ilusão de uma unidade, que o defunto autor inicia suas memórias.

Podemos apreender, das afirmações da autora, que a fragmentação do eu do narrador implica uma divisão de sua consciência – apontando para um sujeito-narrador dividido –, mas, também, que essa experiência se relaciona com uma fragmentação da própria imagem corporal do narrador, rompendo com a “ilusão de uma unidade”.

A fragmentação da identidade pode, ainda, implicar uma divisão temporal do sujeito; pois, para a psicanálise, o sujeito é dividido entre a consciência, lugar de um tempo linear e, portanto, cronológico, e o inconsciente (sujeito do inconsciente), lugar intemporal, no qual a experiência temporal subjetiva é de uma outra ordem, não-linear e não-cronológica.

O inconsciente freudiano é, pois, intemporal como afirma Freud. Se a referência cronológica vincula-se ao sistema consciente, os processos inconscientes, por seu turno, não vão passar por tal ordenação temporal, e os seus diferentes elementos, apresentando-se sem uma ordem cronológica, não levam em consideração a distinção entre passado, presente e futuro. No entanto, para Freud, o desejo, sendo indestrutível, é o que vai, pelo viés da fantasia, entrelaçar o passado, o presente e o futuro.

Nascendo “da defasagem entre a necessidade e a demanda” e mantendo no seu fundamento relação com a fantasia, e não com um objeto real (o objeto do desejo está desde sempre perdido), o desejo inconsciente, “ligado a signos infantis indestrutíveis”, não sofre a ação da passagem do tempo. A própria indestrutibilidade do desejo inconsciente, juntamente com o fato de ele enlaçar, através fantasia, os três registros temporais, revela que, na experiência temporal subjetiva, ele é eterno.

Voltando à questão da fragmentação do narrador de Memórias póstumas, podemos perceber como esta incide na não-linearidade do tempo de sua escrita e, concomitantemente, de seu texto. O movimento sinuoso, digressivo e oblíquo da escrita de Brás Cubas, assim como a construção do texto fragmentado de suas memórias, de alguma forma, tem relação com a própria divisão do narrador, que se manifesta em sua fala e em seu modo de narrar.

A divisão do sujeito-narrador, expondo as “aparições do duplo em que se manifestam realidades psíquicas de outro modo heterogêneas”, encontra-se em várias passagens de Memórias Póstumas, e pode ser assinalada pela posição ambivalente de Brás Cubas com relação às mulheres:

Que, em verdade, há dous meios de granjear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de Europa, e o insinuativo, como o cisne de Leda e a chuva de ouro de Dânae, três inventos do padre Zeus, que, por estarem fora da moda, aí ficam trocados no cavalo e no asno.
Essa voz saía de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras, desposá-la. Uma mulher coxa!

Ou, quando ele se refere à divisão de sua consciência ou de seu pensamento, como no referido capítulo “As pernas”:

Ora, enquanto eu pensava naquela gente, iam-me as pernas levando, ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei à porta do Hotel Pharoux. De costume jantava aí; mas, não tendo deliberadamente andado, nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às pernas, que a fizeram. (...)
Aquele caso, porém, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós deixastes à minha cabeça o trabalho de pensar em Virgília, e dissestes à outra: – Ele precisa comer, são horas de jantar, vamos levá-lo ao Pharoux; dividamos a consciência dele, uma parte fique lá com a dama, tomemos nós a outra, para que ele vá direito, não abalroe as gentes e as carroças, tire o chapéu aos conhecidos, e finalmente chegue são e salvo ao hotel.

Em Memórias póstumas, podemos observar, ainda, como a discordância do eu com a realidade é visível em relação ao personagem Brás Cubas, e também como, em determinados momentos, a fragmentação aparece quando se poderia esperar uma unidade do eu, rompendo com uma suposta unidade que não se sustenta o tempo todo. Podemos observar, na seguinte citação, certos fenômenos de despedaçamento ou desintegração do corpo vivenciados por Brás Cubas momentos antes de morrer e relatados pelo defunto- autor:

Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo o soluço das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma.


A vida lhe fora emitindo os últimos sinais através dos sons que lhe iam entrando corpo adentro; a morte se aproximou, cortando-lhe, como uma navalha, os últimos fios da vida; seu peito sacudia como a força de uma grande onda marinha; e o corpo de Brás Cubas começou a se desintegrar em direção ao nada.

Convenhamos que a experiência narrada é radical, pois ela acontece com o impacto da aproximação da morte; no entanto, se é a imagem do outro, vinda de um exterior, que organiza o eu, algo que, em outro momento da existência do sujeito, vindo de fora, o invade, pode também abalar sua unidade imaginária, desorganizando-a. No relato do narrador, os sons que em tese o tranqüilizariam vão gradativamente infiltrando em seus ouvidos, e são esses sons (essa “orquestra da morte”) do choro, da chuva e, sobretudo, de uma navalha sendo amolada, que o invadem com uma força desintegradora, instaurando o processo da morte como algo desagregador, tanto da consciência quanto do corpo.

E é a partir dessa experiência de desagregação que a morte se coloca a Brás Cubas. O inventor do emplastro que salvaria a humanidade da melancolia, tornando-se, com sua invenção, imortal, morre para renascer como um outro, como o narrador atemporal de suas memórias. Instauram-se, assim, as condições de possibilidade da narrativa, no momento em que o personagem pode, de um lugar onde o tempo é abolido, percorrer, com um certo distanciamento, o tempo de suas memórias.

O momento do acontecimento da morte de Brás Cubas pode ser pensado, assim, como o momento de abolição do tempo. Trata-se de um paradoxo, no qual a eternidade é pensada como algo infinito, onde o tempo é abolido; mas, também, como um breve minuto do tempo, um lugar vazio, em que toda a realidade do tempo é percorrida, no instante de um raio.

A respeito da abolição do tempo, Sylvie Le Poulichet, no livro O tempo na psicanálise, faz o seguinte comentário:

Esse momento de abolição do tempo é também, por isso mesmo, um momento privilegiado de afirmação do tempo, pois essa “rasgadura” na trama do tempo justamente presença ao acontecimento. E o anacronismo permite aqui uma forma de identificação, [pois como afirma Blanchot]: “Viver a abolição do tempo, viver esse movimento, rápido como um ‘raio’, (...) é percorrer toda a realidade do tempo; percorrendo-a, experimentar o tempo como espaço e lugar vazio, isto é, livre dos acontecimentos que sempre, habitualmente, o preenchem”.

A morte se instaura para Brás Cubas, portanto, como um acontecimento que rasga o tempo em dois: em um tempo atemporal (lugar do sujeito da enunciação) e em um tempo das lembranças narradas (lugar do sujeito da enunciado). Podemos, ainda, fazer uma correlação entre o lugar atemporal de onde fala Brás Cubas e o lugar do sujeito do inconsciente (Je, segundo Lacan); e entre o lugar do sujeito do enunciado e o lugar do eu consciente (Moi, segundo Lacan). Mostra-se, também, desta forma, como a divisão subjetiva do personagem incide na temporalidade da narrativa.

Na eternidade, há uma ausência (ou um vazio) do tempo, e o narrador, relatando acontecimentos e lembranças, situa-se fora ou deslocado destes. Há, nesse processo, uma ironia e um paradoxo, pois parece que o lugar de imortalidade procurado por Brás Cubas durante sua vida, com sua invenção, vai ser encontrado (ou forjado) com o acontecimento de sua morte, com essa ruptura, esse dilaceramento ou essa rasgadura temporal que o torna um morto-vivo, um defunto-autor que narra suas memórias em um “tempo da ausência de tempo".

Esse “tempo da ausência de tempo”, a que se refere Blanchot, é congruente com o tempo da escrita do inconsciente – corporificada, em Memórias póstumas, no defunto-autor –, uma escrita que põe o tempo cronológico em suspenso e que diz respeito a um trabalho que escapa às determinações do eu ou da consciência daquele que escreve, produzindo um certo apagamento do mesmo.

Mas, seguindo nessa articulação entre tempo e escrita, talvez pudéssemos fazer um desdobramento da questão que viemos trabalhando, operando um desvio da morte do narrador-personagem e autor ficcional Brás Cubas para a do autor Machado de Assis, na medida em que seria este, de fato, que se apagaria no próprio ato de escrever. A esse respeito, sublinhemos, portanto, a seguinte questão: a morte de Brás Cubas não poderia ser tomada como uma metáfora do desaparecimento (ou da morte) do escritor ou do autor Machado de Assis, em função da escrita ou da obra?"

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Fonte:
Jair Rodrigues de Aguiar Júnior: “COMEU O ETERNO E DEIXOU O MINUTO”: O TEMPO DA ESCRITA EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS, DE MACHADO DE ASSIS". (Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, com vista à obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Literatura Brasileira Orientadora: Profª. Drª. Ruth Silviano Brandão Linha de Pesquisa: Literatura e Psicanálise). Belo Horizonte, 2006.

Nota
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A imagem (Machado de Assis – 2008: Biblioteca Nacional Digital do Brasil) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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