Uma sociedade que (se) vê através da televisão



“Temos, todos nós, um apego muito forte à imagem, e a visão é um dos sentidos dos quais mais fazemos uso no nosso cotidiano, uma vez que é através dela que ,temos acesso de modo amplo aos diferentes espaços, figuras, cenas do ambiente no qual estamos inseridos. A visão de um céu escuro em plena manhã indica a iminência da chuva, o sinal vermelho de uma sinaleira nos alerta para a necessidade de usar o freio, a imagem de gotas de água escorrendo por uma lata de refrigerante desperta nossa sede, uma fotografia antiga nos enche de nostalgia, enquanto o reflexo do sol se pondo no Guaíba faz até os mais céticos acreditarem que talvez Deus exista, sim.

Condicionados a fazer um uso excessivo da visão pelas facilidades que ela apresenta, ainda encontramos na imagem uma segurança e uma transparência que facilitam a nossa sobrevivência, num universo cujas manifestações, mesmo atreladas ao olfato ou ao paladar, são legitimadas fortemente pela imagem. Nesse sentido, construímos uma identidade individual e coletiva e desenvolvemos habilidades de percepção e compreensão do mundo a partir da visão, o que delega à imagem um papel de indiscutível relevância em nossas vidas:

A cultura contemporânea é sobretudo visual. Vídeo games, videoclipes, cinema, telenovela, propaganda e histórias em quadrinhos são técnicas de comunicação e de transmissão de cultura cuja força retórica reside sobretudo na imagem e secundariamente no texto escrito, que funciona mais como um complemento,muitas vezes até desnecessário, tal o impacto de significação dos recursos imagéticos
(PELLEGRINI, 2003, p. 15).

É através dos recursos imagéticos, e conseqüentemente em função das habilidades de olhar que permitem que eles sejam percebidos, que alcançamos um maior ou menor grau de conhecimento, um maior ou menos discernimento em relação ao que nos envolve, uma mais ampla ou mais limitada capacidade de diferenciação entre as coisas:

A aptidão da vista para o discernimento – é o que nos faz descobrir mais diferenças – a coloca como o primeiro sentido de que nos valemos para o conhecimento e como o mais poderoso porque alcança as coisas celestes e terrestres, distingue movimentos, ações e figuras das coisas, e o faz com maior rapidez do que qualquer dos outros sentidos. É ela que imprime mais fortemente na imaginação e na memória as coisas percebidas, permitindo evocá-las com maior fidelidade e facilidade
(CHAUÍ, 1995, p. 38).

É a aptidão da vista que permite que conheçamos o Afeganistão sem sequer termos pisado algum dia na Ásia, ou descrever a Torre de Pisa como se tivéssemos crescido num bairro próximo a ela, tal a familiaridade que temos com tais imagens. Essa capacidade de nomear e de reconhecer o que está longe e inalcançável fisicamente é conseqüência da nossa habilidade de visão, em contato cotidiano com meios de comunicação de massa, dentre os quais a televisão pode ser apontada como um dos mais impactantes.

Esse impacto, mais do que ser apontado como um bem ou mal para a humanidade, precisa ser compreendido na complexidade das relações que fizeram e ainda fazem da televisão, uma das maiores invenções da humanidade, conforme o texto da campanha publicitária Verdades:

Já foi dito que a terra era o centro do universo, e que era o sol que girava ao seu redor. Já disseram que virgens deveriam ser sacrificadas, que livros não poderiam ser lidos e que bruxas mereciam ser caçadas. Já foi dito que o homem era incapaz de voar ou de chegar ao fundo do oceano. Já foi dito que negros não poderiam entrar, que judeus não poderiam sair e que só os brancos teriam o direito de ir e vir. Já disseram que gênios eram loucos e que loucos eram brilhantes. Já foi dito que mulheres não deveriam votar, que microorganismos eram lendas e curas impossíveis. Já disseram que a televisão seria apenas mais um eletrodoméstico na sua vida.

Dizer que a televisão é apenas mais um eletrodoméstico na vida das pessoas é desconsiderar as inúmeras funções que ela acabou assumindo ao longo do tempo, as quais, mesmo que de maneira involuntária, acabaram por auxiliar na criação, disseminação e legitimação de verdades e de mentiras, como bem reflete essa campanha publicitária, cujo texto é ilustrado por colagens de imagens clássicas que remetem às concepções, idéias e personagens que ele aborda de maneira direta ou indireta.

Mesmo que descobertas como a de que o sol não girava ao redor da terra ou a de que Leonardo da Vinci não era um louco tenham ocorrido bem antes do advento da televisão, seu uso como exemplo de convicções que se mostraram equivocadas com o tempo faz pensar sobre a participação da TV na construção da história recente da humanidade e sobre o impacto de sua atuação na vida das pessoas.

Esse impacto provocado pela televisão pode ser percebido em função de todo um conjunto de saberes e práticas sociais que são construídos a partir dos recursos da imagem, o que tem como conseqüência uma certa desvalorização da escuta e da leitura como possibilidades de despertar a subjetividade e o aprendizado cotidiano:

É-nos dito que vivemos em um mundo em que tanto o conhecimento quanto muitas formas de entretenimento são visualmente construídos. Um mundo onde o que vemos tem muita influência em nossa capacidade de opinião, é mais capaz de despertar a subjetividade e de possibilitar inferências de conhecimento do que o que ouvimos ou lemos. Fala-se, utilizando uma metáfora bélica que vivemos em um mundo onde as imagens nos bombardeiam
(HERNÁNDEZ, 2007, p. 28/29).

As imagens que nos bombardeiam até podem causar estragos, mas se somos de fato vítimas da sua circulação é assunto que merece ser discutido, uma vez que a produção imagética também é resultado das ações e reações dos seres humanos que constroem o que Hernández (2007, p. 22) identifica como sendo uma cultura visual, a qual “refere-se a uma diversidade de práticas e interpretações críticas em torno das relações entre as posições subjetivas e as práticas culturais e sociais do olhar”.

São as práticas culturais e sociais do olhar que precisam ser discutidas quando se fala em televisão, principalmente se levarmos em conta que, incorporada à rotina das pessoas de variadas maneiras, ela tem sido há muito tempo uma das principais produtoras e mediadoras das imagens que contribuem para a construção dos imaginários coletivos, das noções de individualidade e alteridade, dos princípios e procedimentos que conduzem os rumos da sociedade:

Em cinqüenta anos de produção e reprodução de imagens de televisão no Brasil, período de um desenvolvimento técnico sem precedentes e sem exemplos na história, as formas da vida social – religião, costumes, princípios éticos e políticos – passaram a ser objeto de controvérsia e revisão. Aos poucos, a difusão universal de imagens foi sendo consumida pelas sociedades
(NOVAES, 2005, p. 10).

A difusão universal de imagens, além de ser consumida pelas sociedades, também foi sendo por elas realimentada, num processo constante e imensurável, que tende a se tornar mais dinâmico e imprevisível, à medida que se ampliam as possibilidades de se produzir e compartilhar imagens através dos meios virtuais. Mas, de qualquer maneira, mesmo com a ampliação das estratégias tecnológicas gerando caminhos alternativos para a exploração das imagens, continua sendo a televisão uma das mais populares formas de comunicação em nossa sociedade.

Mesmo com o impacto causado pelos outdoors, muitos deles dotados de invejável capacidade de estabelecer empatia com as pessoas, mesmo com a perenidade de uma foto jornalística, que além de guardada por longos anos pode ser recortada ou observada infinitas vezes, mesmo com a multiplicidade de enquadramentos e de modificações promovida por programas de computador a partir de uma fotografia qualquer, a imagem da televisão ainda é a que com maior intensidade se fixa na memória das pessoas e se insere em seu dia-a-dia. Em função da dinâmica e da amplitude dessa inserção, é preciso cada vez mais estudar a TV como prática social e cultural, como produtora de múltiplos significados:

Tornar a TV objeto de estudo significa adentrar esse mundo da produção de significações, através do estudo de uma linguagem específica, da análise de um meio de comunicação que se tornou para nós, especialmente para nós, brasileiros, absolutamente imprescindível, em termos de lazer e informação
(FISCHER, 2001, p.51-52).

No Brasil, de um modo particular, o alcance da televisão, sua maestria técnica e por vezes ideológica e o impacto de sua programação na vida dos cidadãos a transformam em utensílio obrigatório em todos os lares e em companhia indispensável para inúmeras circunstâncias:

Mesmo em meio às oscilações e crises do setor público, aos problemas sociais graves e o conseqüente e contínuo aumento do índice de pobreza no país, a indústria televisiva brasileira é extremamente bem-sucedida. E o seu desenvolvimento tecnológico e suas relações de produção fazem da TV aberta, ainda hoje, a maior fonte de acesso à informação e à produção cultural para a maioria da população em seu território
(OROFINO, 2006, p. 42).

Mais do que fazer-se presente junto às reuniões de família dos finais de semana, mostrar-se companhia durante uma conversa entre amigos ou revelar-se atrativa fonte de descanso ao final de uma jornada de trabalho, a televisão configura-se, em função de décadas de oferta de som e imagens de singular poder de atração e encantamento, como fonte principal de acesso à produção cultural para grande parte da população.

De acordo com um levantamento do Ministério da Cultura (MinC) em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) analisado em uma reportagem da Revista Aplauso (2007, p. 29), “de todos os seus ganhos, as famílias brasileiras dedicam, em média, 3% para bens culturais”. Mais do que chamar a atenção para os números que refletem o quanto se investe pouco em bens culturais, a reportagem salienta que uma parcela correspondente a 41% desse já baixo investimento é aplicada em produtos audiovisuais: “nos extratos mais altos da sociedade isso significa cinema, aluguel de filmes e compras de aparelhos de DVD, mas, na maioria absoluta da população, leia-se, aí, televisão” (REVISTA APLAUSO, 2007, p. 29).

Segundo a reportagem, oportunamente intitulada O tamanho da tragédia, a maior parte do valor que as pessoas investem em cultura se concentra na aquisição e manutenção de aparelhos de rádio e de televisão, o que se torna um dado preocupante, quando associado a outros de acordo com os quais 70% dos brasileiros nunca visitaram um museu ou foram a um teatro, enquanto que 60% nunca foram ao cinema nem têm o costume de ler livros, jornais ou revistas.

Esses dados podem ser complementados pela análise que a jornalista Inimá Simões faz da rápida transformação da sociedade brasileira, que passou para uma cultura de imagens sem a tradicional mediação dos livros ou revistas, por exemplo:

Costuma-se dizer que o Brasil passou de uma cultura pré- literária para uma cultura de imagens, pós-literária, sem passar pela mediação tradicional dos livros, do teatro, do jornal, da revista. Uma pesquisa patrocinada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) em 2001, revelou que o brasileiro lê 1,8 livro por ano. Publicam-se cerca de três revistas por habitante/ano, e todos os jornais diários somados não têm uma vendagem superior a oito milhões de exemplares/dia, número inferior à tiragem de um único jornal de Tóquio
(REVISTA CULT, 2007, p. 63).

Configurando-se a televisão como a porta através da qual a maior parte dos brasileiros têm acesso à produção e fruição cultural no nosso País, é compreensível que as pessoas encontrem na programação televisiva maior, quando não único, instrumento de atualização e informação a respeito dos fatos e acontecimentos que têm como palco tanto a escola do seu bairro quanto um laboratório farmacêutico no outro lado do mundo. Graças a seu desenvolvimento tecnológico e às suas relações de produção, a televisão alcança os lares mais distantes do país, interage, mesmo que de formas distintas, com praticamente todas as classes sociais, e interfere nas formas de agir e de pensar de acordo com a maior ou menor pluralidade de olhares que favorece.

(...) a TV, na condição de meio de comunicação social, ou de uma linguagem audiovisual específica ou ainda na condição de simples eletrodoméstico que manuseamos e cujas imagens cotidianamente consumimos, tem uma participação decisiva na formação das pessoas – mais enfaticamente, na própria constituição do sujeito contemporâneo
(FISCHER, 2001, p.15).

Em função dessa participação da TV na formação das pessoas, o repertório de informações dos telespectadores pode se tornar mais amplo ou mais restrito, seu interesse pelos assuntos que lhes dizem respeito pode ser mais acentuado ou estar mais próximo da indiferença, sua capacidade de fruição artística e de discernimento cultural pode ser mais apurada ou mais limitada. A constituição do sujeito contemporâneo, múltiplo e multifacetado em suas posturas diante de um universo que exige dele estabelecimentos de inúmeras formas de relação consigo e com os outros, se dá também devido à presença da televisão, como mediadora de representações visuais:

É neste sentido que considero que as representações visuais contribuem, assim como os espelhos, para a constituição de maneiras e modos de ser. As representações visuais derivam-se e ao mesmo tempo interagem de e com as formas de relação que cada ser humano estabelece, também com as formas de socialização e aculturação nas quais cada um se encontra imerso desde o nascimento e no decorrer da vida
(HERNÁNDEZ, 2007, p. 31).

Pode-se dizer que, desde o nascimento todos os indivíduos se encontram, com maior ou menor intensidade, expostos às conseqüências de um fascínio que é atribuído a uma hábil comunhão entre som e imagem. Em função disso, numa sociedade como a nossa, as pessoas muitas vezes delegam à televisão um poder de condução e de determinação de muitas de suas posturas e crenças, num processo de endeusamento, que, apesar do extremismo que trata a relação entre o veículo e o telespectador de maneira unilateral, merece ser analisado.

Nesse sentido, Kehl (2005, p. 246) adjetiva a televisão como “o mais importante meio da sociedade do espetáculo. Onisciente, onipresente, onipotente, ocupa na vida social o lugar que, até pouco mais de dois séculos atrás, era ocupado pela imagem de Deus”, uma vez que ela tem a capacidade de alcançar todos os lugares, de inserir-se em todos os espaços e de produzir discursos para todos os telespectadores:

A tevê ocupa o lugar de Deus como emissora permanente de discursos que podem ser entendidos como um saber sobre o mundo, a vida social e os sujeitos em particular; por ser ao mesmo tempo doméstica e pública, ela estabelece uma ponte entre o público e o privado; é um veículo capaz de se dirigir a cada um e a todos, e de nomear o que deseja dos agentes sociais – que sejam consumidores, é claro
(KEHL, 2005, p.247).

É preciso, no entanto, considerar que as pessoas não são consumistas apenas porque assim quer e determina a televisão, da mesma forma como não é apenas na televisão que são produzidos discursos que podem ser entendidos como os saberes dominantes sobre o mundo. Da mesma forma, mesmo que por vezes a TV pareça ocupar o lugar de Deus, outros setores da sociedade também se dirigem a cada um e a todos, e se utilizam de estratégias específicas para dialogar com os agentes sociais.

Em função disso, pode-se dizer que há entre a televisão e o público, mais do que uma relação de dominação ou de desequilíbrio, uma coexistência que, mesmo em dimensões distintas e com diferentes forças e formas de atuação, reflete uma espécie de pacto:

Mimética e ultra-realista, a televisão constrói seu público a fim de poder refleti-lo, e o reflete para poder construí-lo: no perímetro desse círculo, a televisão e o público estabelecem o pacto de um programa mínimo, tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista ideológico. Para produzir-se como televisão, basta ler o livro do público; para produzir-se como público, basta ler o livro da televisão. Depois o público usa a televisão como lhe parece melhor, ou como pode; e a televisão não deixa de fazer o mesmo
(SARLO, 1997a, p. 83).

Ao longo do processo de cristalização da televisão como bem cultural quase indispensável e de alcance cada vez mais ilimitado, também foi se consolidando uma relação de dependência entre ela e o público, o qual não apenas a acompanha, mas também a modifica, porque faz dela os usos que se tornam possíveis de acordo com seus interesses e necessidades. Pode-se dizer que a TV e as pessoas que a acompanham conhecem-se o suficiente para não serem enganadas e que, com maior ou meno flexibilidade de cumprimento, existe um programa mínimo cujo desenvolvimento satisfaz a ambas, até porque “o processo de comunicação não se conclui com a sua transmissão, senão que propriamente aí se inicia”, conforme reflete Lopes (2002, p.41). A autora destaca ainda que “por outro lado, isto não implica a ausência de uma intencionalidade global política e econômica concreta que se inscreve no discurso social hegemônico” (idem).

Em função desse discurso social hegemônico, muitas práticas televisivas que legitimam saberes sobre o mundo e sobre a vida social interferem de forma significativa na percepção que as pessoas têm de si próprias, o que pode contribuir para comportamentos pouco autônomos e por vezes quase mecânicos, como é possível perceber em relação ao consumismo contemporâneo, cujo incentivo e insistência da televisão são evidentes, tendo em vista que:

Consumo e vida cotidiana são termos coextensivos porque têm na prática e na atividade produtiva o seu ponto de fusão. O consumo implica produção: comprar, usar, ler, cozinhar, assistir televisão são atos de criação, de cultura
(LOPES, 2002, p. 138).

Não se trata de afirmar que os telespectadores consomem apenas porque a televisão lhes convida a tal ou que o fazem apenas de acordo com as regras e possibilidades por elas ofertadas, mas sim de considerar que as produções televisivas apresentam, inseridos de formas mais ou menos explícitas, discursos preocupados com os serviços e produtos aos quais as pessoas podem recorrer.

Considerando esses discursos, é importante destacar as contribuições de Rosa Fischer em suas análises das produções midiáticas, que permitem desmistificar a afirmação de que haveria enunciados escondidos, plenos de intencionalidades duvidosas:

(...) não há enunciados escondidos naquilo que a mídia produz e veicula; o que há são emissores e destinatários dos meios de comunicação (como o rádio, a tevê, as revistas e jornais), que variam conforme os regimes de verdade de uma época, e de acordo com as condições de emergência e de produção de certos discursos
(FISCHER, 2002, p. 87).

É preciso destacar que as condições de emergência e de produção de certos discursos da televisão têm, também, raízes econômicas e políticas, uma vez que a TV sobrevive devido em grande parte às verbas publicitárias que ocupam os intervalos comerciais. No entanto, ao nomear os agentes sociais como consumidores, a televisão também está em busca de ampliar a sua audiência e de preservar seus espaços de interação com as pessoas. Ciente de que precisa, constantemente, reconquistar o olhar do público ao qual destina sua programação, a televisão investe em estratégias de persuasão e de controle, a fim de que o telespectador sinta-se envolvido por ela, a ponto de estabelecer uma espécie de cumplicidade que garanta a continuidade de um diálogo direcionado, normalmente e majoritariamente, por uma das partes apenas.

No entanto, analisar a televisão como mera intermediária de consumos, como se ela tivesse como função primordial a exposição de produtos e de possibilidades de serviços, mesmo que habilmente incorporada à função de lazer e de entretenimento, é desconsiderar a participação do público, para além da compra dos produtos de beleza usados pela protagonista da Novela das Oito ou da abertura de uma poupança num banco, cujas facilidades burocráticas são enfatizadas a cada intervalo do noticiário noturno.

Analisar a televisão exige um olhar que tente se desvencilhar da concepção unidirecional, a partir da qual se construiu uma imagem apática e passiva dos telespectadores, incapaz de compreender suas ações de envolvimento, julgamento e ponderação a respeito dos discursos televisivos. Tomar a televisão como objeto de estudo requer uma preocupação com o dinamismo das formas de acolhimento em função das quais as pessoas aceitam, assimilam e dão um retorno aos produtos audiovisuais aos quais têm acesso, além de um interesse sobre as potencialidades desses produtos, como espaços junto aos quais se dão construções de ordem social e cultural no desenvolvimento das quais o público tem papel fundamental. Ao analisar tais construções, faz-se necessário atentar para uma realidade que costuma responsabilizar os meios midiáticos por veicular os ditames sobre a maneira de ser do indivíduo:

Não há que se pensar, entretanto, na vitimização do indivíduo, como se fosse ele uma marionete ingênua e que apenas fosse atingido por tal realidade. O homem é o construtor da realidade na qual se insere, e, ainda que de forma irrefletida, em determinada intensidade, contribui e retroalimenta este ciclo, na medida em que, com certa consciência, perpetua tal estado de coisas, mantendo-o: ou por considerar-se pouco na luta contra tal situação, que deveria contar com um contingente maior de sujeitos
implicados, ou por acomodar-se em sua vida “segura” (AMORIM, 2007, p. 32-33).

Ao perpetuar um certo estado de coisas, seja por receio de buscar a mudança ou por comodismo, muitas vezes os indivíduos e os grupos sociais permitem que determinadas situações ou permaneçam como estão ou sejam alteradas por outros sujeitos que não eles próprios. Nesse sentido, há inúmeros aspectos que envolvem a relação entre a televisão e os seus telespectadores, configurando uma espécie de co-responsabilidade, que descaracteriza muitos discursos que apontam o ser humano como vítima da TV.

Essa co-responsabilidade apenas pode ser percebida e analisada diante de uma compreensão da televisão para além das concepções habituais que a tratam de forma extremista, qualificando suas produções como boas ou más e determinando quais de seus produtos podem e devem ser assistidos ou rejeitados, quais merecem ser alvo de análise e discussão, desconsiderando o amplo e diversificado conjunto de trabalhos que a constituem:

Creio que já é tempo de pensar a televisão fora desse maniqueísmo do modelo ou da estrutura “boa” ou “má” em si. Quero dizer: é preciso (também) pensar a televisão como o conjunto dos trabalhos audiovisuais (variados, desiguais, contraditórios) que a constituem, assim como cinema é o conjunto de todos os filmes produzidos e literatura é o conjunto de todas as obras literárias escritas ou oralizadas, mas, sobretudo, daquelas obras que a discussão pública qualificada destacou para fora da massa amorfa da trivialidade
(MACHADO, 2001, p. 19).

Diante dessas percepções, faz-se necessário também uma ampliação de olhares que se preocupe com as relações entre televisão e sujeitos sociais, que não se prenda às concepções de que o espaço televisivo é terreno apenas de produções e disseminações ideológicas, e que possa melhor compreender a complexidade presente nas intersecções entre o público e a televisão, entre o cotidiano e os movimentos sociais, sem restringir-se a “influências sobre o consumo”.

Entretanto, uma questão crucial é que, mesmo nestes estudos críticos mais recentes – em que se focalizam as atividades dos receptores – a ação da mídia e da TV ainda permanece como o espaço da ideologia. As lutas em torno da construção dos significados e os mecanismos de resistência são localizados na esfera do consumo, da vida cotidiana e dos movimentos sociais. Em outras palavras: as pessoas podem até ser críticas, mas a TV continua sendo “ruim”
(OROFINO, 2006, p.18).

Mesmo com um acentuado nível de criticidade voltado para as práticas televisivas, muitas vezes chega-se à mesma visão negativa dos conteúdos e programas que as caracterizam, desconsiderando-se que a televisão pode ser mais ou menos qualificada, não em função apenas do tipo de programação ou da habilidade que ela demonstra em ser plural e reflexiva, por meio dos produtos dos quais dispõe, mas também da potencialidade que esses produtos têm de ser trabalhados pelos telespectadores, e da exploração que deles pode ser feita, em direção a uma fruição artística, ética e estética.

Essa fruição, no entanto, não pode ser considerada uma obrigação do telespectador, tampouco uma função própria da televisão, uma vez que ela depende de um conjunto de referenciais que podem (ou não) terem sido construídos com o auxílio de ferramentas imagéticas, cujo desenvolvimento se dá de múltiplas formas e em inúmeros espaços. O trabalho de seleção, assimilação e/ou transformação acerca de muitos conteúdos televisivos, por exemplo, é resultado de variadas forças e formas constitutivas das práticas sociais e culturais, principalmente se entendermos cultura conforme Homi Bhabha (1998), que a compreende numa perspectiva interativa como algo que é freqüentemente recomposto, em função de uma grande variedade de fontes, num processo híbrido e fluido.

A perspectiva interativa proposta pelo crítico hindu-europeu pode ajudar a esclarecer um dos grandes questionamentos acerca dos quais reflete Luc Ferry, o qual, resgatando as inquietações de Hegel sobre as condições nas quais uma religião poderia estar de acordo com as exigências de um povo livre, acredita ser a cultura uma das grandes questões da atualidade:

A questão de Hegel ainda continua sendo, sob muitos aspectos, a nossa. Basta substituir a palavra religião pela palavra cultura (o que pode ser justificado tanto histórica quanto filosoficamente) para que a questão torne a ganhar uma pertinência e uma atualidade impressionantes: em que pode consistir a cultura de um povo democrático? (...)
(FERRY, 1994, p. 21).

Questão de difícil resposta, a cultura de um povo democrático é assunto no qual a televisão não pode deixar de estar presente, principalmente se ela for entendida como “um dispositivo audiovisual através do qual uma civilização pode exprimir a seus contemporâneos os seus próprios anseios e dúvidas, as suas crenças e descrenças, as suas inquietações, as suas descobertas e os vôos de sua imaginação” (MACHADO, 2001, p. 11).

Como meio de expressão de dúvidas e de anseios, de crenças e de descobertas, a televisão permite a uma civilização a manifestação de inúmeros processos culturais, e justamente por serem resultado desses processos culturais, leituras e interpretações provocadas pela televisão vão se mostrar diferentes para cada pessoa. A sensibilidade para deixar-se tocar pelo caráter artístico da TV tem relação com uma particular intersecção entre a imagem e demais linguagens, num veículo cujas ligações com a arte ainda são debatidas hoje:

Definida, inicialmente, por sua atividade de transmissão, ela contém, de fato, potencialmente, todas as artes sem ser uma. Se ela transmite um filme ou um documentário sobre arte ou uma gravação teatral, ou até mesmo uma adaptação de obra literária levada ao estatuto de obra de arte, será atribuído o valor de arte à linguagem pictórica, à linguagem teatral, em caso de absoluta necessidade, à linguagem audiovisual em geral, mas jamais à televisão em si
(JOST, 2006, p. 18).

Pode até ser que a televisão jamais alcance a atribuição de um valor artístico como o que costuma ser dado ao teatro, ao cinema ou às artes plásticas, mas não se pode esquecer que ela manifesta, por meio dos produtos que veicula, contribuições oriundas de muitas dessas práticas, principalmente através das linguagens que costuma explorar. E é da associação dessas linguagens artísticas com as imagens que a presente pesquisa foi desenvolvida, notadamente em virtude de os dois programas baseados na obra de Ariano Suassuna apresentarem imagens com uma ímpar riqueza artística, social e cultural.

Entendo que a imagem televisiva, quando bem produzida e indiscutivelmente sedutora, traz consigo uma considerável gama de possibilidades analíticas, principalmente porque as imagens têm o poder de um duplo movimento: o movimento de ampliar-se para além de si e o movimento de trazer o que está além para dentro, construindo assim a diversidade e a amplitude, fundamentais para o árduo aprendizado de enxergar mais e melhor – o que traz enormes desafios para as pesquisas acadêmicas:

As imagens não são, portanto, apenas, nem mesmo principalmente, um objeto de contemplação do olho e do espírito. É através delas que o olhar se realiza em nós com o que nos vem de fora; da mesma maneira que é através das imagens do espírito que o homem realiza o que está no mundo. As imagens permitem, pois, este duplo
movimento: sair de si e trazer o mundo para dentro de si (NOVAES, 2005, p. 11-12).

Interessado em analisar os diferentes olhares que podem ser direcionados aos produtos da televisão, bem como os múltiplos olhares que a partir desses produtos são desencadeados, tanto para si próprios quanto para o público que os acompanha e os assimila com maior ou menor grau de discernimento estético, este trabalho toma a teledramaturgia brasileira como fonte de pesquisa. Essa análise da produção dramatúrgica feita na televisão, no entanto, apenas será bem sucedida se antes for dedicado um espaço à reflexão acerca das relações entre olhar e imagem, conceitos cuja percepção de aproximações e diferenças é fundamental, quando se trata de analisar a televisão e seus produtos."

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Fonte:
Fernando Favaretto: "A literatura de Ariano Suassuna na TV: um estudo de formação estética". (Dissertação apresentado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profª Drª Rosa Maria Bueno Fischer). Porto Alegre, 2008.

Nota
:
A imagem (www.forumadd.com.ar) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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