Goethe: arte e método em Humboldt



“A primeira e mais importante influência em Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), no que se refere a arte, advém de Winckelmann (1717-1768), que, com seu retorno aos clássicos, recuperou o sentido posto pelos modelos universais gregos ao tempo nascente. Segundo o próprio Goethe, em correspondência enviada a Schiller em 21 de agosto de 1799: “Estudei com afinco a vida e a obra de Winckelmann. Preciso esclarecer em pormenores o mérito e a atuação desse bravo homem” (GOETHE & SCHILLER, 1993, p. 187). O modelo é, para Goethe, parte importante da própria composição da realidade, estabelecer, portanto, uma produção que vise esse ideal da arte nos gregos é caminhar rumo a uma reprodução criadora; é realizar na arte a tarefa maior de aproximar o invariável e universal ao particular e contingente.

É pela descoberta da arte dos antigos como desenvolvimento de uma expressão regrada, regulada pela natureza, que Goethe de elaborar e configurar a sua própria qualidade poética, “o modo grego de poetar”, o modo ingênuo que se distingue do sentimental, distinção assumida mais tarde na oposição entre classicismo e romantismo
. (MOLDER In: GOETHE, 1997, p. 10)

A ligação entre Goethe e Schiller se apóia, sobretudo, nesse aspecto da visão artística: no vínculo que ela estabelece com a transformação da natureza; no papel dos clássicos e, mais ainda, no valor dado ao sensível em oposição à pura abstração. A visão da arte como Ideal é também o que diferencia Goethe do romantismo primeiro alemão. Em Goethe, o invariável, o arquétipo, que, no caso da arte é buscado na obra grega, revela o caráter ideal da obra de arte, a ligação do particular e do geral; nos primeiros românticos, como veremos, a arte se apóia na visão de um medium-de-reflexão, ou seja, as formas se desdobram no processo de sua formação, o que há não é um ideal, mas uma idéia da arte, que, nesse sentido, é afim à reflexão na forma. Além do que, em Goethe é valorizada a intuição como maneira de alcançar a dinâmica no instante, nos primeiros românticos, o desdobramento reflexivo no conceito é que permite a união das formas no Absoluto. (BENJAMIN, 2002)

Importante é que Goethe e Schiller estabeleceram no seu encontro fortuito a interlocução necessária à elevação do pensamento, marcando, por suas correspondências, um período relevante do pensamento alemão. Iniciada em 1794, estas correspondências se estenderam até a morte de Schiller no ano de 1805, como ressalta Cavalcanti (In: GOETHE & SCHILLER, 1993): “Se Goethe em 1817 chamou de ‘feliz acontecimento’ o seu encontro com Schiller, já em 1800 este diria que tê-lo conhecido havia sido o ‘melhor acontecimento’ de toda a sua vida.” (p. 17).

Nessas correspondências o tema da arte nunca é abandonado, mesmo porque nos projetos científicos de Goethe se apresentará sempre uma composição, uma integração entre arte, filosofia e ciência que reflete na forma de aproximação o próprio conteúdo das idéias. Embora se destaque com freqüência o papel de Goethe na arte literária, e se reduza a importância de suas contribuições filosóficas e científicas, ele mesmo nunca as dissociou; entendia como necessidade e forma mais elevada de pensamento a integração destas diferentes esferas; fez de sua vida a concatenação destes campos, e de suas obras o máximo de sua representação. Não definiu apropriadamente uma doutrina filosófica, não segmentou ou compartimentou analiticamente seu pensamento, mas revelou em seus trabalhos, quer científicos, quer literários, uma forma peculiar de entendimento. E é, enfim, essa a temática das correspondências com Schiller (GOETHE & SCHILLER, 1993), uma ligação que terá ainda como ponto importante o valor dado ao empírico, ao sensível, o que os distancia em alguma medida do idealismo que tomará a Alemanha romântica do início do século XIX.

Schiller, como mostramos, dirá que é importante reconhecer a sensibilidade no homem e, mais ainda, encontrar no equilíbrio entre a racionalidade e o sentimento a forma plena de realização da vida e da humanidade. Com Goethe, de uma forma diferente, o mesmo acontece. O empírico, o finito, demonstrará na sua figura uma relação com o infinito; se apresentará a transformação como expressão de um diálogo aberto entre o universal e o particular; visível e invisível se confluem e, nessa confluência, apresenta-se a perspectiva da formação em Goethe e a maneira como ele estruturará seu método morfológico.

O papel da arte em Goethe, assim como em Schiller, assenta na função mediadora, na capacidade da obra de arte concatenar subjetividade e objetividade numa via mais do que explicativa, porque simbólica, e diretamente correlata à própria dinâmica de formação da realidade. O homem é maior na arte, nela penetra e se torna unidade com a natureza, supera a distância entre sensibilidade e razão, conflui em harmonia os pólos antagônicos que exprimem a realidade. A intuição compreende a realidade na sua pura forma; apreende a dinâmica no instante; a ligação permanente entre o todo e as partes. Doravante, é a arte a representação objetiva desse confluir, a interiorização e exteriorização no homem de um processo que forma a realidade. Com a arte, pode o gênio exprimir em si e no mundo a mesma orientação geral posta à natureza. Aquele que pode apreender na intuição e revelar na arte a dinâmica da forma caminha rumo ao verdadeiro saber, que, em realidade, é mais do que saber, é conhecer e ser o que se pretende conhecido. Segundo Goethe (GOETHE IN: GOETHE & SCHILLER, 1993): “(...) a obra de arte deve provir do gênio: o artista deve extrair forma e conteúdo do fundo de sua própria essência, deve proceder como senhor da matéria e aproveitar as influências externas apenas para sua formação.” (p. 167). Esta é a função da arte em Goethe e, como veremos, é por ela, juntamente com as contribuições da ciência e da filosofia, que se tornará possível o método morfológico incorporado por Humboldt.

Na Metamorfose das Plantas (1997) de Goethe, podemos ver a maneira pela qual ele pretende a validação deste método morfológico; é, enfim, nessa obra, que se revela a representação estrutural dessa tentativa de uma nova ciência. A opção pelo reino vegetal é consagrada em função da possibilidade mais pronunciada de reconhecer nele o conjunto dinâmico das transformações em suas diferentes etapas e condições. O anúncio das formas pela germinação e a seqüência de alterações são melhor reveladas na morfologia do mundo vegetal. É também esta forma mais facilmente ligada à representação artística, elemento central nesta reflexão sobre a realidade. Para Humboldt, a valorização do reino vegetal se no aspecto predominante que encerra na contemplação da paisagem; este reino revela de maneira plena a impressão do geral no ato de incorporar a totalidade no instante.

Si es certo que el verdadero carácter de cada region depende á la vez de todos los detalles esteriores; si los contornos de las montañas, la fisionomia de las plantas y de los animales el azul del cielo, la figura de las nubes, la trasparencia total, es preciso reconocer tambien que el adorno vegetal de que se cubre el suelo es la determinante principal de esta impresion
. (1874a, p. 331-332)

Doutra feita, essa vegetação é a origem da dinâmica, o elemento que carrega o princípio elementar da vida, é ela quem agrupa na forma, e aqui o elemento central da morfologia, o processo de formação-transformação que identificamos anteriormente com a regulação ideal do protótipo e do protofenômeno.

As plantas tendem incessantemente a dispor em combinações harmônicas a matéria bruta da terra; têm por ofício preparar e misturar, em virtude de sua força vital, as substâncias que, depois de inúmeras modificações, hão-de-ser elevadas ao estado de fibras nervosas
.(HUMBOLDT, 1952, p. 279)

Humboldt ainda destaca o fato de a vegetação ser a base de sustentação da vida, aquilo que no plano de desenvolvimenmto da natureza representa a fonte primeira de reprodução: “O mesmo olhar com que abraçamos o tapete vegetal que cobre a terra, revela-nos a plenitude da vida animal, alimentada e conservada pelas plantas.” (HUMBOLDT, 1952, p. 279). Mas o caráter fundamental do valor das plantas está na idéia de metamorfose e no modo como ela se desenvolve.

Goethe (1997) atenta para o fato de que as partes externas das plantas se associam e assumem, parcial ou totalmente, a feição das formas próximas. Partindo deste ponto, admite que as partes tenham uma fonte comum, uma matriz pela qual orientam seu desenvolvimento; não obstante, essa matriz geral existente já na semente encontra um conjunto de condições e relações com o ambiente e mesmo com as estruturas que tomam forma com o crescimento da planta. Como órgãos independentes e, ao mesmo tempo, dependentes de uma estrutura geral, modificam-se e iniciam o processo alternado de progresso e regresso que caracteriza o desenvolvimento.

Desde a semente até o mais perfeito desenvolvimento das folhas caulinares, observamos em primeiro lugar uma expansão; em seguida, vimos, através de uma contracção, surgir o cálice; as pétalas, através de uma expansão; as partes sexuais, através de uma contracção; e em breve nos apercebemos da maior expansão no fruto e da maior contracção na semente. Nestes passos, conclui a Natureza irresistivelmente a eterna obra de reprodução bissexuada dos vegetais.
(GOETHE, 1997, p. 48)

Passa então a observar os frutos e procurar neles o mesmo princípio e as mesmas leis atribuídas à metamorfose das outras partes da planta. O fruto revelaria a fecundidade escondida nas folhas, e, mesmo na semente, a formação dele estaria contida em germe. O fruto constitui, para Goethe (1997), o ponto máximo de expansão no desenvolvimento da planta, o ápice pelo qual se reconhece a potência tornada externa. “Em contrapartida, descobrimos que a semente se encontra no mais alto grau de contracção e elaboração do seu interior.” (GOETHE, 1997, p. 49). Nesse processo de expansão e contração se realiza a formação da planta; em cada nó se cumpre o princípio e as leis metamórficas; das condições e limites à potência contida em germe se o desenvolvimento da planta. Segundo Humboldt: “Deixando certa liberdade ao desenvolvimento anômalo das partes, o organismo, em virtude de um poder primordial, submete todos os seres animados e todas as plantas a tipos definidos que se reproduzem eternamente.” (HUMBOLDT, 1952, p. 283).

Considerada particular, essa planta é ainda um geral nos seus domínios; ao mesmo tempo, se liga a tudo o mais, e sua formação não pode dissociar-se do conjunto da natureza, da relação com a totalidade e consigo mesma. Apreender essa relação é o desafio: como proceder diante de um objeto que, na verdade, esta em constante construção, em contínua relação com a totalidade? Como explicar um objeto se essa tentativa é a tomada do objeto pelo sujeito, é um relacionar-se e exerce-se como agente na relação com o que se pretende investigar? É então que se apresenta o método morfológico goethiano.

Buscando no empírico o invariável, no exame recorrente do particular o universal, o método de Goethe será a expressão de uma nova forma de agir cientificamente. Na verdade, ciência, arte e filosofia se integrariam na busca por intuir na forma a dinâmica de uma relação todo-partes, subjetivo-objetivo, expansão e contração. Apreender as transformações não é possível por um procedimento que ignore as forças aí atuantes; bem entender a realidade é, antes de tudo, proceder de maneira ampla e condizente com os ditames de uma realidade sempre móvel. A representação não pode nunca alçar-se à realidade como ela se manifesta, mesmo porque este estado efêmero se esvai na tentativa de um caminho explicativo; não pode ainda corresponder à representação ao que de fato existe pelo aspecto restritivo de se tomar pelo sujeito o que é resultado de uma confluência entre este e o objeto. O olhar do artista-filósofo-cientista é, portanto, um ponto necessário na execução desse fim, desse empreendimento que se mostra numa difícil e prolongada missão. “Encontramos, por conseguinte, no curso da arte, do saber e da ciência, várias tentativas para fundar e desenvolver uma doutrina, a que gostaríamos de chamar Morfologia.” (GOETHE apud MOLDER In: GOETHE, 1997, p. 68) Para Humboldt, a arte pode e deve fazer parte das análises científicas, seus esforços são justamente no sentido de reagrupar estes domínios e fundar uma ciência capaz de compreender a dimensão artística na construção do conhecimento.

Papel fundamental nesse processo tem a intuição, ela é a captação da dinâmica no instante; é a forma de se apropriar de uma relação ampla por um penetrar do sujeito no objeto, por uma ligação do ser com a totalidade; é, enfim, a maneira do homem apresentar-se como parte dessa dinâmica. A valorização da arte está justamente na concepção que se atrela a ela de uma correspondência com a unidade geral da realidade; proposta que, anunciada pela estética kantiana, é em Goethe e no idealismo romântico alemão do século XIX levada ao extremo. Nesse sentido, não pode um homem da ciência, pelas vias formais da razão, compreender o que quer que seja, na medida em que força a realidade a falar o que ele quer ouvir, impondo seu procedimento e fazendo calar a voz da natureza. Humboldt (1952) aponta essa questão nos Quadros da Natureza:

As plantas doentes, encerradas em nossas estufas, não representam senão muito incompletamente a majestade da vegetação tropical; mas, na perfeição da linguagem, na brilhante fantasia da poesia, e na arte imitadora da pintura, manancial abundante de compensações onde nossa imaginação pode encontrar as imagens vivas da natureza exótica
(p. 299)

Entender a realidade é nela penetrar, buscar in situ as condições de manifestação da realidade; incorporar-se ao conjunto de coisas e delas retirar o que lhe cabe no momento da reflexão; proceder pela via de uma comunicação sempre aberta e integrada entre o sujeito e o objeto; reconhecer o que há de si mesmo na forma e o que da forma acaba por lhe tocar; é, enfim, mais do que fazer ciência, é estar-se ligado com um mundo que modifica e é modificado constantemente por cada elemento que nele existe. Passivo e ativo, o sujeito que observa também atua, intui a totalidade no instante; age na transformação desse conjunto; torna-se também ele um particular no geral e, por sua arte, reproduz para além da explicação essa ampla relação inexprimível.

As observações da natureza satisfazem-me muito. Parece estranho, mas é natural, que por último deva aparecer uma espécie de conjunto subjetivo. Na verdade, torna-se, como quer o senhor, ‘o mundo do olho’, que é esgotado através de forma e cor. Pois se atentar bem, então precisarei só muito pouco dos recursos dos outros sentidos, e toda a racionalidade transforma-se numa espécie de representação.
(GOETHE & SCHILLER, 1993, p. 92-93)

Também na sua Doutrina das Cores (1993) Goethe exprimirá essa idéia de uma relação sempre aberta entre o sujeito e o objeto, demonstrando o papel crucial do, ao mesmo tempo, observador e agente. A postura de Goethe (1993) nessa obra é a de quem procura enfrentar o racionalismo científico no seu maior domínio: a física.

Parte ele, nesse enfrentamento da ciência da natureza racionalista, de um ponto fundamental do seu método e do filosofar que o subjaz, a idéia de que há uma relação inelutável entre o sujeito e o objeto. A proposta newtoniana (NEWTON, 1979b) para a compreensão do fenômeno cromático é de origem mecânica, aplica as constatações inferidas por estudos experimentais sobre o comportamento fenomênico da luz e suas propriedades refratárias e reflexivas na formação das cores. Goethe (1993), primeiramente, considerará três formas de manifestação dos fenômenos cromáticos: a primeira fisiológica, ligada à condição do olho são na receptividade e atividade que resulta na formação das cores; a segunda física, correlata às idéias apresentadas pelo procedimento newtoniano, ou seja, tomada pelas propriedades reflexivas e refratárias na apresentação das cores, e a terceira, chamada química, atribuída à propriedade dos corpos em sua composição.

O sujeito é considerado na formação das cores; o que fora relevado por Newton somente na perspectiva negativa, ou seja, como uma deturpação do que se apresentava de fato na experiência, aparece em Goethe como elemento central da explicação do fenômeno É evidente que se trata aqui de uma diferença metodológica e filosófica, já que a forma como se entende os fenômenos é totalmente diferente, sendo a postura newtoniana estritamente mecânica e filosoficamente dogmática, ao passo que a de Goethe está diretamente ligada à noção de uma causalidade não-linear envolvendo todo e partes e articulada ao papel fundamental do sujeito na consagração do objeto. Mais do que simplesmente apreender o mundo de uma forma particular ou do alto de uma categoria, a proposta goethiana visa apresentar o sujeito como ativo: o olho tem luz própria; por sua condição recebe e age sobre o campo dos fenômenos; é parte e cria, na sua relação com a totalidade, a cena que pretende analisar e exprimir.

Goethe estava convencido de que a totalidade da natureza se revela, como que através de um espelho, ao sentido da visão. Se tanto luz quanto cor pertencem à natureza que por sua vez se mostra particularmente na visão, é esta última, portanto, que contém a solução do enigma. De modo análogo à revolução copernicana de Kant, Goethe transfere o olhar divino de Plotino, até então simbolizado pela luz, para o interior da nossa visão. O olho se torna luminoso...
(GIANOTTI In: GOETHE, 1993)

No caso da perspectiva física não uma reprodução da concepção newtoniana, muito pelo contrário; os fenômenos são entendidos a partir de um fenômeno primordial (GOETHE, 1993, p. 90). Esse fenômeno é o ideal na relação com o empírico, no caso das cores, o equilíbrio dinâmico entre claro e escuro; luz e sombra, do qual se media a formação gradativa cromática.

Na perspectiva química se atribuí cores aos corpos, que podem ser modificadas, intensificadas ou transmitidas pelas relações existentes entre estes; são marcadas por sua durabilidade em relação aos outros dois anteriores. A composição é dada pela junção das cores básicas, que, nas diferentes gradações formam uma mistura real ou aparente, compreendendo, assim, a totalidade das cores dos corpos. Neste sentido é que Goethe (1993) vai atacar a noção de que o branco é formado a partir da conjunção das cores, uma vez que estas são sempre mais escuras do que o branco e se distanciam progressivamente desse pólo na linha gradativa entre claro e escuro. A importância do reino vegetal é novamente destacada por Goethe (1993) nesse trabalho, admite ele que são as plantas e seu processo de formação que melhor compreendem esta transformação química das cores, chamando mesmo a alteração das cores no reino vegetal de “operação química superior” (GOETHE, 1993, p. 114).

A formação das cores representaria, portanto, a ligação harmônica na escala gradativa de claro escuro, de modo que essa unidade é em si uma totalidade. Além de reagrupar harmonicamente os pólos gradativos, a cor representa a junção do sujeito que apreende-atua sobre o que se torna objeto da sua observação. “Apresentando-se ao olho em sua grande variedade, a cor se torna, na superfície dos seres vivos, uma parte importante dos signos exteriores, através dos quais percebemos o que se passa no interior deles.” (GOETHE, 1993, p. 132).

É, em poucas palavras, a ligação que Humboldt introduz na construção de uma ciência inovadora. O sujeito está em plena relação com o objeto; não se trata aqui de simplesmente observar à distância e com imparcialidade, ao contrário, é o anuncio de uma via aberta, o reconhecimento que se coloca em Goethe de uma dupla troca entre o observador e o que se dispõe à observação.

Muitas vezes, a impressão que nos causa a vista da natureza, deve-se menos ao próprio caráter da região do que ao dia em que nos aparecem as montanhas e as planuras aclaradas pelo azul transparente dos céus, ou velados pelas nuvens que flutuam perto da terra. Do mesmo modo as descrições da natureza impressionam-nos tanto mais vivamente, quanto mais em harmonia com a nossa sensibilidade; porque o mundo físico reflete no íntimo do nosso ser em toda a sua verdade.
(HUMBOLDT, 1952, p.211-212)

Aquilo que também se coloca pelo papel da filosofia da natureza de Schelling, ou seja, a relação existente entre o espírito e a natureza, é percebido aqui no plano científico. O que aponta Goethe em sua Doutrina das Cores, em detrimento de uma análise restrita da física newtoniana é o papel dessa Naturphilosophie numa nova forma de fazer ciência. Já não se pode impunemente falar de um mundo sem reconhecer a medida do humano nele. É por isso que, como fizemos questão de frisar anteriormente, não se pode falar numa exclusão do humano na análise que Humboldt faz acerca da natureza, afinal, trata-se de uma relação indissociável. O homem, na sua relação com o mundo, deixa-se influenciar ao tempo que também influencia.

Tudo quanto caráter individual à paisagem: o contorno das montanhas que limitam o horizonte num longínquo indeciso, a escuridão dos bosques de pinheiros, a corrente que se escapa de entre as selvas e bate com estrépito nas rochas suspensas, cada uma destas coisas tem existido, em todos os tempos, em misteriosas relações com a vida íntima do homem
. (HUMBOLDT, 1952, p. 212)

O objeto externo é dado em comunhão com a subjetividade, com aquilo que se apresenta no íntimo de cada um que se coloca a contemplação e compreensão da natureza. Mais do que um dado, a natureza é para o homem um elemento de construção, uma articulação que pressupõe não um fato, um acabado objeto, mas o remetimento ininterrupto à sua produção, aquele processo de formação-transformação que liga definitivamente homem e natureza.

Todo cuanto nuestros sentidos percíben vagamente, todo cuanto los parajes románticos presentan de mas horrible, puede llegar á ser para el hombre manantial de goces; su imaginacion encuentra en todo medios de ejercer libremente un poder creador. En la vaguedad de las sensaciones, cambian las impresiones com los movimentos del alma, y, por una ilusion tan dulce como fácil creemos recibir del mundo exterior lo que nosotros mismos sim saberlo hemos depositado en él.
(HUMBOLDT, 1874a, p. 05-06)

Essa nova ciência humboldtiana está assentada na idéia inovadora de ciência em Goethe. Ciência, filosofia e arte devem confluir, devem mostrar na análise da forma que a natureza está em dinâmica, que ela se orienta por uma finalidade; devem suscitar pelo método a visão de um homem que não é só razão, mas também sensibilidade; devem, igualmente, aclarar que na arte, na representação da bela forma, se dispõe a relação inviolável entre o sujeito e o objeto que se lhe apresenta. Maior, esse homem e sua ciência são o passo novo no sentido de uma humanidade plena, a representação máxima de uma natureza tomando, no sentido schellinguiano, “consciência de si”.

Entender este processo é compreender o papel da arte no sentido pleno da humanidade, e, nesse caminho, se torna fundamental compreender a concepção de arte no romantismo alemão, bem como o valor que ela assume na sistemática filosófica de Schelling."

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Fonte:
ROBERISON WITTGENSTEIN DIAS DA SILVEIRA: “As influências da filosofia kantiana e do movimento romântico na Gênese da Geografia Moderna: os conceitos de espaço, natureza e morfologia em Alexander von Humboldt”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Vitte). Campinas – SP, 2008.

Nota
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