Por que existe o mal?

Diante da questão “Se Deus é o sumo Bem, de onde vem o mal?”, Santo Agostinho a ela se referiu em importantes tratados que escreveu, entre os quais, sobretudo, O Livre-Arbítrio, A Verdadeira Religião, Solilóquios e Confissões; em que desenvolveu uma análise ontológica que resultou na sua teoria do mal.

Para Santo Agostinho, Deus é a plenitude do
Ser, é o bem supremo e imutável, assim como a fonte da vida, pois toda vida procede de Deus:

Não existe nenhum ser vivo que não venha de Deus, porque ele é, na verdade, a suma vida, a fonte mesma da vida [...]. Logo, o Criador dos corpos é o princípio de todo equilíbrio. Ele é a forma incriada e a mais bela de todas as formas
(De vera rel., 2, 11, 21).

Mesmo com todos esses atributos, “Haverá então algum outro autor do primeiro gênero do mal, uma vez estar claro não ser Deus?” [conforme questionou Evódio a Santo Agostinho (
De lib. arb., I, 1,1)]. Deus poderia ser o autor do mal? De acordo com o Bispo de Hipona, não, pois tudo o que foi criado, era bom e provinha do sumo Bem:

Ele é bom e, por conseguinte, criou boas coisas. E eis como Ele as rodeia e as enche! Onde está, portanto, o mal? De onde e por onde conseguiu penetrar? Qual é a sua raiz e a sua semente? Porventura não existe nenhuma? Por que recear muito, então, o que não existe? E, se é em vão que tememos, o próprio medo indubitavelmente é o mal que nos tortura e inutilmente nos oprime o coração. Esse mal é tanto mais compreensivo quanto é certo que não existe o que tememos, e nem por isso deixamos de temer. Por conseqüência, ou existe o mal que tememos, ou esse temor é o mal
(Conf., VII, 5, 7).

O próprio pensador – quando de sua fase como maniqueu, doutrina da qual foi adepto durante nove anos confessou que “buscava a origem do mal, mas buscava-a erroneamente” (
Conf., VII, 5, 7) o que, para ele, fora digno de lamentação:

[Evódio] Dize-me entretanto, qual a causa de praticarmos o mal?
[Agostinho] Ah! Suscitas precisamente uma questão que me atormentou por demais, desde quando era ainda muito jovem. Após ter-me cansado inutilmente de resolvê-la, levou a precipitar-me na heresia (dos maniqueus), com tal violência que fiquei prostrado (De lib. arb., I, 2, 4).

Após ter-se tornado bispo da Igreja Católica, Agostinho conceituou o mal como a ausência do ser, isto é, uma privação do bem (
Conf., III, 7, 12). Assim, a criatura, privada de todo o bem, deixaria de existir por completo, e seu último termo seria o nada. Por conseguinte, as criaturas existem e são boas (Conf., VII, 12, 18); além disso, toda criatura era entendida como um bem, e mesmo que fosse tida como um bem inferior, este era belo em seu gênero e continuava sendo um bem: todo ser vivo não é mau até que tenha tendido à morte. Essa morte era o nada (não-ser) para Santo Agostinho, ou seja, um desvio do homem por meio de uma defecção voluntária da lei divina (De vera rel., 2, 11, 21).

O perigo que o homem corre é o de não poder ver este necessário tender para o não-ser (
tendere non esse) de não actualizar a relação retrospectiva e de sucumbir deste modo à morte, ao afastamento (alienatio) de Deus, absoluto e eterno (ARENDT, 1997, p. 86-87).

Assim sendo, o mundo, criado pelo Sumo Bem, presencia o mal. Essa defecção foi denominada no sistema agostiniano como “pecado”, que é sempre um ato voluntário, proveniente do livre-arbítrio (
Conf., VII, 3, 5), devido ao fato de a alma mover-se conforme a sua vontade. Daí, para Santo Agostinho, o mal ser tido como “justo” castigo para o homem, pelo motivo mesmo do padecimento que acarreta. A vontade é, para ele, a causa primeira do pecado, e sem ela não poderia haver pecado (De lib. arb., III, 17, 49).

O mal moral tem sua origem no livre-arbítrio de nossa vontade
(De lib. arb., I, 16, 35a).
De fato, o pecado é mal voluntário [...]. Enfim, se o mal não fosse obra da vontade, absolutamente ninguém deveria ser repreendido ou admoestado [...]. Julgou Deus que assim seriam melhores os seus servidores – se livremente o servissem. Coisa impossível de se conseguir mediante serviço forçado e não livre (De vera rel., 2, 14, 27).
... o livre-arbítrio da vontade ser a causa de praticarmos o mal... (Conf., VII, 3, 5).

Deste modo Agostinho se diferenciou dos maniqueus, que definiram o mal como natureza, ao passo que, como visto, o mal, na análise agostiniana, era danificação e/ou corrupção desta natureza, logo, é contrário a ela. Se o mal fosse uma natureza ele não poderia se autodestruir, como afirmou (COSTA, 2002).

Com isso, Santo Agostinho afirmou que o corpo não podia ser o responsável ou a causa dos males da alma:

Quem pensa procedam do corpo todos os males da alma está em erro. [...].
O motivo é que a corrupção, que acabrunha a alma, não é a causa do primeiro pecado, mas o castigo, nem a carne corruptível fez a alma ser pecadora, e sim a alma pecadora é que fez a carne ser corruptível (De civ. Dei, XIV, 3, 1.2).
... a matéria não representa o declínio da alma, mas a alma o declínio da matéria (De Gen. ad litt., VII, 8, 11).

Diante desse problema do mal, a reflexão agostiniana se lançou na construção da sua teoria sobre o livre-arbítrio, o que permitiu isentar Deus da queda humana e justificar as boas e más ações realizadas pelos homens não como determinadas, mas como escolhas voluntárias. Não isso: essa capacidade da alma humana, a vontade livre, constituiu-se para Santo Agostinho como outro elemento que diferenciava homens e animais (
De lib. arb., III, 5, 15). Aliás, somente existe o livre-arbítrio devido àquele outro elemento que particulariza o homem, a razão:

E é justamente por possuir a razão que o homem tem a capacidade de identificar ou conhecer a “perfeita ordem” dos seres criados, estabelecida por Deus, e, conhecendo-a, poder escolher livremente (livre-arbítrio) entre respeitá-la, contribuindo, assim, para reta ordem, ou transgredi-la, gerando a desordem, ou o mal. Assim, diferentemente dos demais seres do universo, que não têm a capacidade de escolher, mas estão programados deterministicamente para agirem sempre de acordo com a ordem, o homem é livre para seguir ou não a ordem estabelecida por Deus
(COSTA, 2002, p. 288).

O termo
arbitrium apareceu pela primeira vez no livro I, cap. 6, 14 de O Livre-arbítrio com um sentido de decisão autoritária, por estar separado de liberum; mas no decorrer da obra aparece a locução liberum arbitrium (mais de uma dezena de vezes, assim como no título), em que a expressão assumiu o sentido de determinação da vontade a partir de um ato de liberdade psicológica, definição que não era usual na época (ASSIS OLIVEIRA, 2001).

A partir disso, a boa vontade passava a ser o desejo pelo qual o homem procurava atingir a sabedoria, o que na ótica do cristianismo significava a vida reta e a santificação (
De lib. arb., I, 12, 25). O desejo da vida feliz, ou o seu insucesso, com a vida infeliz, dependem então não mais da determinação dos deuses (conforme a cultura greco-romana), mas da vontade dos homens:

[Agostinho] Logo, que motivo existe para crer que devemos duvidar mesmo se até o presente nunca tenhamos possuído aquela sabedoria que é pela vontade que merecemos e levamos uma vida louvável e feliz; e pela mesma vontade, que levamos uma vida vergonhosa e infeliz?
(De lib. arb., I, 13, 28).

Cometer o mal é, para Santo Agostinho, o menosprezo aos bens eternos, ou seja, a escolha por bens mutáveis, passageiros, os quais, por conseguinte, podem ser tirados ou perdidos, o que não acontece com o Bem por excelência: Deus. Dessa forma, a escolha das duas cidades das quais o homem pode ser cidadão – conforme visto no capítulo anterior – também é próprio do livre-arbítrio da vontade:

E as duas classes de homens, uns seguindo e amando as coisas eternas e outros, as coisas temporais. Estabelecemos ainda que é próprio da vontade escolher o que cada um pode optar e abraçar. [...] bens dos quais a alma goza por si mesma e atinge também por si mesma, e aos quais não pode perder, caso os ame de verdade, e ir em busca dos bens temporais, como se fossem grandes e admiráveis
(De lib. arb., I, 16, 34).

Isto posto, o livre-arbítrio concedia ao homem fazer aquilo o que quisesse. Santo Agostinho sintetizou este movimento da alma da seguinte forma:

Quando eu deliberava servir o Senhor meu Deus, como há muito tempo tinha proposto, era eu o que queria e era eu o que não queria; era eu mesmo. Nem queria, nem deixava de querer inteiramente. Por isso me digladiava, rasgando-me a mim mesmo. Esta destruição operava-se, é certo, contra a minha vontade, porém não indicava a natureza de uma alma estranha, mas o castigo da minha própria alma
(Conf., VIII, 10, 22).

Mesmo que no diálogo com Evódio (em O Livre-arbítrio) Santo Agostinho tenha chegado, juntamente com o amigo, à conclusão de que o erro (pecado, ou qualquer que seja o termo) era decorrente e dependia do livre-arbítrio (I, 11a, 21c), não chegaram a uma conclusão sobre a procedência do impulso que levava o movimento da alma (vontade) a ir da perfeição ou felicidade para o pecado ou defecção (II, 20, 54). A única afirmativa que se encontra no colóquio era que tal impulso não provinha nem de um agente supranatural, isto é, Deus - pois neste caso para eles não se poderia identificar o pecado, mas sim, uma “injustiça divina” -, nem de uma força inferior ao homem, por falta de poder. Portanto, o movimento de afastamento provinha somente da vontade da alma. Destarte não se pode falar em destino no pensamento agostiniano, seja na perfeição ou imperfeição humana, mas em um movimento da alma, o livre-arbítrio:

... que seja próprio da vontade aquele movimento pelo qual ela se afasta do Criador e dirige-se às criaturas, para usufruir delas. Se, pois, ao declarar esse movimento culpável (e para ti apenas duvidar disso parecia irrisório), certamente, ele não é natural, mas voluntário [...].
Quanto ao movimento pelo qual a vontade se inclina de um lado e de outro, se não fosse voluntário e posto em nosso poder, o homem não seria digno de ser louvado quando sua vontade se orienta para os bens superiores, tampouco ser inculpado quando, girando, por assim dizer, sobre si mesmo, inclina-se para os bens inferiores. Nesse sentido, não se deveria exortar a desprezar os bens transitórios para adquirir os bens eternos? E a renunciar à má vida para viver honestamente? Ora, quem quer que estime não haver motivo para serem dadas aos homens essas espécies de advertências merece ser excluído do número dos viventes (De lib. arb., III, 1, 2).

Não obstante, ao elaborar esse conceito de livre-arbítrio, concomitantemente surgiu um novo problema para o pensamento agostiniano: seria o livre-arbítrio um mal, uma vez que sem ele o homem não teria pecado? A resposta é negativa, primeiramente porque foi dado por Deus, logo, para ele não poderia ser um mal, e em segundo lugar, como faculdade que permite ao homem a escolha do pecado, garantia-lhe por extensão, a possibilidade da procura da perfeição:

[Agostinho] ... parecia a ti, como dizias, que o livre-arbítrio da vontade não devia nos ter sido dado, visto que as pessoas servem-se dele para pecar. Eu opunha à tua opinião que não podemos agir com retidão a não ser pelo livre-arbítrio da vontade. E afirmava que Deus no-lo deu, sobretudo em vista desse bem
(De lib. arb., II, 18, 47).

Isto posto, Santo Agostinho acreditou resolver essa problemática ao “assegurar” aos homens a possibilidade de serem “perfectíveis” (
De lib. arb., II, 17, 46). Para tal, colocou a vontade livre entre o Bem supremo e os bens mutáveis, logo, classificou o livre-arbítrio como um bem médio, mas um bem (II, 19, 52).

Acrescente-se a isto que chegou a identificar dois livres-arbítrios: o primeiro na terra, que possibilitava ao homem a decisão de pecar ou não; e, um outro no céu, em que não se poderá pecar:

Não se pense que, visto os pecados já não poderem causar-lhes prazer, não terão livre-arbítrio. Serão tanto mais livres quanto mais livres se vejam do prazer de pecar, até conseguirem o indeclinável prazer de não pecar. O primeiro livre-arbítrio concedido ao homem, quando Deus o criou justo, consistia em poder não pecar, mas também podia pecar. O último será superior àquele e consistirá em não poder pecar. Esse será também dom de Deus, não possibilidade de sua natureza. Porque uma coisa é ser Deus; outra, ser partícipe de Deus
(De civ. Dei, XXII, 30, 3).

Por ser de natureza racional, o homem carregava condições de seguir preceitos, obedecendo a eles ou não. Daí a possibilidade da consecução do pecado, ou mesmo da rendição a algum tipo de sedução por outrem.

... o pecado é um mal que consiste em negligenciar: seja o aceitar um preceito, seja de observá-lo; seja de perseverar na contemplação da sabedoria. De onde se pode compreender como o primeiro homem, mesmo tendo sido criado sábio, podia no entanto ser seduzido. E como a esse pecado cometido livremente, seguiu-se justamente o castigo, por disposição divina
(De lib. arb., III, 24, 72).

Desta forma, tudo dependia do movimento da alma, nada havia seguindo um destino ou ordem supranatural para a execução do pecado:

Se essa inclinação para os bens inferiores fosse natural à vontade, isto é, necessária, então não haveria culpa alguma no homem. O movimento pelo qual uma pedra é impelida e cai é-lhe natural; mas o movimento da alma em direção às coisas inferiores não é; diferentemente da pedra, ela pode detê-lo
(CUNHA, 2001, p. 75).

Seguindo esse lastro, para Santo Agostinho o pecado consistia em buscar a essência pelo caminho errado [“caiu a alma do homem” (
Conf., XIII, 8, 9)], logo, deve retornar a Deus (Conf., II, 6, 14). Acrescente-se a isto que, mesmo o pecado sendo voluntário, duas foram as suas fontes:

São duas as fontes do pecado: uma, o pensamento espontâneo; outra, a persuasão de outrem. Penso que é a isso que se refere a palavra do profeta: “De meus pecados ocultos, purificai-me, Senhor, e das faltas alheias preservai vosso servo” (Sl 18, 13.14). Todavia, num e noutro caso, o pecado é sem dúvida voluntário. Isso porque, assim como ninguém ao pensar espontaneamente vem a pecar contra a própria vontade, do mesmo modo, ao consentir a uma má sugestão, certamente não consente sem ser por vontade própria
(De lib. arb., III, 10, 29).

Santo Agostinho foi o grande sistematizador da doutrina do pecado original; todavia, não foi o primeiro a se preocupar com tal doutrina, inclusive toda a sua defesa ele a estabeleceu com base nos textos tidos como sagrados pelo cristianismo, ou seja, a partir de argumentos tirados da fé, e não somente nesses escritos, mas em toda a tradição teológica cristã92 que o precedeu. Segundo Peter Brown (2005), a idéia de uma miséria da condição humana ser decorrente de um “grande pecado” era comum na mentalidade dos homens na Antiguidade tardia, destarte, foi partilhada por cristãos e romanos. A contribuição do pensamento agostiniano a tal questão apresentou o pecado original como ato voluntário. O homem, ao distanciar-se do Criador, tenderia ao não-ser, o mal, e, por ser este algo oriundo quase da gênese humana, origem e pecado acabaram por se confundir:

A sua origem própria confunde-se com o início do mundo no pecado original de Adão. É, ao mesmo tempo, a origem do pecado e da queda, pois a sua proveniência é determinada pelo nascimento (
generatio) e não pela criação (creari). O mundo não é mais o estranho por excelência onde cada um foi atirado pela criação, mas um mundo que, pelo parentesco na generatione, é sempre já familiar, e ao qual cada um pertence desde a origem (ARENDT, 1997, p. 160).

Por decorrência do pecado original, dos primeiros pais do gênero humano (Adão e Eva), segundo a filosofia agostiniana, toda a sua descendência foi colocada como cativa da mesma pena (
De Trin., XIII, 12, 16). Com isso, as fraquezas humanas não podem ser entendidas como verdadeiros pecados, mas são conseqüências do primeiro pecado, ou seja, toda e qualquer fraqueza é decorrente da pena (De lib. arb., III, 19, 54). O homem não possui mais a sua natureza primitiva, qual seja, a de imortalidade, sabedoria e retidão no exercício do livre-arbítrio (De civ. Dei, XXI, 8, 1).

Na verdade, tais são as duas penalidades para toda a alma pecadora: a ignorância e a dificuldade. Da ignorância, provém o vexame do erro; e da dificuldade, o tormento que aflige
(O Livre-arbítrio, III, 18, 52).

Em face disso, Santo Agostinho pode ser considerado um dos primeiros a definir o caráter de culpa como próprio do pecado dos primeiros pais da humanidade, os quais o transmitiram a todos os homens. Por extensão, o
peccatum passa a ser poena peccati. (ASSIS OLIVEIRA, 2001).

Duas penas merecem destaque no pensamento agostiniano. A primeira pena é que o homem, apesar de continuar possuindo o livre-arbítrio, não possui mais a liberdade:

[Agostinho] Tão ferido, sob o peso de tamanhas e tão inconsistentes fábulas [dos maniqueístas], que se não fosse meu ardente desejo de encontrar a verdade, e se não tivesse conseguido o auxílio divino, não teria podido emergir de nem aspirar à primeira das liberdades – a de poder buscar a verdade
(De lib. arb., I, 2, 4).

É indispensável considerar que, na filosofia agostiniana, liberdade não é o mesmo que livre-arbítrio:

Assim, no paraíso terrestre, havia como objeto percebido: vindo do lado superior, o preceito divino, e vindo do lado inferior, a sugestão da serpente. Pois nem o que o Senhor ia prescrever, nem o que a serpente ia sugerir foi deixado ao poder do homem. Contudo, ele estava certamente livre de resistir à vista das seduções inferiores, pois o homem tendo sido criado na sanidade da sabedoria achava-se isento de todos os liames que dificultavam a sua escolha. Podemos compreender isso pelo fato de os próprios insensatos chegarem a vencer-se e se elevarem até à sabedoria, ainda que lhes seja penoso renunciar às doçuras envenenadas de seus hábitos funestos
(De lib. arb., III, 25, 74).

O termo
liberdade na Antiguidade tardia tinha como acepção a viabilidade de propósito (BROWN, 2005), o que na esfera do cristianismo, sobretudo em Santo Agostinho, foi entendido como a possibilidade de se fazer o bem. Logo, para ele, a verdadeira liberdade passava pela escolha e prática do bem (SCIACCA, 2003). Tal teoria lhe deu a qualificação de pensador original sobre o tema. Original porque quando se fala em liberdade na Antiguidade clássica grega, especialmente em Sócrates e Aristóteles, ou mesmo no mundo romano estóico, trata-se de uma liberdade interior, mas nunca de uma liberdade da vontade, conforme o conceito de Santo Agostinho (CUNHA, 2001).

Nesta esteira, a liberdade, enquanto aspecto segundo o qual o homem é capaz de não pecar, somente fora vivenciada por Adão e Eva, que após o pecado perderam este privilégio. Modificou-se então o íntimo do homem (CAPANAGA, 1994) e o pecado foi transmitido dos primeiros pais para seus descendentes:

O livre arbítrio é a simples possibilidade de escolha e a liberdade é o resultado da boa escolha
(SOUZA, 2001, p. 70).
... Agostinho diz que tal realidade é válida unicamente para o primeiro homem Adão –, o qual, antes da queda, gozava de perfeita liberdade, mas que depois perdeu tal condição e, mais do que isso, transmitiu sua natureza decaída aos seus descendentes. [...] A partir de então, Agostinho passa a fazer uma diferença entre liberdade (libertas), que é a necessidade do bem, e livre-arbítrio (liberum arbitrium), que é a possibilidade do bem. O que Adão perdeu com o pecado original e transmitiu a seus descendentes foi a liberdade, e não o livre-arbítrio, que continua sendo a causa do mal no homem. Com isso, Agostinho fechava o ciclo de sua explicação, que, num primeiro momento colocava o pecado (soberba) como causa do mal no homem (malum culpae); agora ele aparece também como efeito ou pena imposta aos homens, descendentes de Adão, pelo primeiro pecado cometido por este (malum poenae) (COSTA, 2002, p. 396).

Em face disso, o homem pode, pelo seu livre-arbítrio, até querer o bem, mas, pela falta de liberdade, não possui eficiência para tal.

A segunda pena consistiu em apresentar o trabalho como castigo do pecado, e não como condição natural, o que permitiu uma justificativa da escravidão no bojo do pensamento agostiniano.

A causa primeira da servidão, é, pois, o pecado, que submete um homem a outro pelo vínculo da posição social [...]. Mas a escravidão penal está regida e ordenada pela lei, que manda conservar a ordem natural e proíbe perturbá-la. Se nada se fizesse contra essa lei, não havia nada a castigar com essa escravidão
(De civ. Dei, XIX, 15).
O próprio trabalho, por útil que seja, é castigo (De civ. Dei, XXII, 22, 2).

Pelo exposto, fica evidente que para Santo Agostinho tudo foi feito bom, e somente à medida que o homem se distancia de sua forma original e de Deus é que se poderia pensar no mal. Portanto, é ao primeiro pecado que o filósofo atribui a “causa” de qualquer mal.

Em relação à queda voluntária, estabeleceu uma analogia entre homens e anjos, que também teriam decaído segundo o mesmo propósito e do mesmo modo são mutáveis. Um anjo, amando-se a si mesmo e separando-se da Essência soberana, arruína-se como os homens. Em face de sua natureza ser boa, perverteu-se voluntariamente, pois é como anjo que é mau, e não enquanto anjo. Do mesmo modo, a natureza do homem enquanto tal é boa, e, como o bem, é proporcional ao ser. O mal, paradoxalmente, não é o ser, ou seja, o mal não é, e se é alguma coisa, é o
menos-ser: Tal certeza deixou expressa em diversos tratados, dentre os quais:

... o mal é nada
(Solil., I, 1, 2)
Logo, a morte não procede de Deus. “Pois Deus não fez a morte, nem tem prazer em destruir os viventes” (Sb 1, 13), porque a soberana essência faz ser tudo quanto existe e é chamado essência [...]. Logo, o corpo (material) está mais sujeito à morte e, portanto, mais próximo do nada. Pelo que, o ser com alma, que pelo gozo material abandona a Deus, tende ao nada e esse é o mal (nequitia) (De vera rel., 2, 11, 22).
... último termo é o nada (Conf., III, 7, 12).
O mal não é substância alguma (Conf., IV, 15, 24).
O mal não tem natureza alguma; a perda do ser é que tomou o nome de mal (De civ. Dei, XI, 9).

É nesse sentido que se pode identificar no sistema agostiniano que o mal residia na “perversão da vontade desviada da substância suprema” (
Conf., VII, 16, 22).

A partir destes argumentos, Santo Agostinho detectou a origem da defectibilidade da alma, quando afirmou: “A primeira deformidade da alma racional é a vontade de executar o que a suma e íntima Verdade lhe proíbe” (
De vera rel., 3, 20, 38). Desse modo, o homem passou dos bens eternos aos temporais quando menosprezou o bem pela desobediência, iniciando com ardor um amor ao mal. Entretanto, não passou do bem substancial ao mal substancial, visto nenhuma substância ser má nem o mal ser uma substância.

Para a filosofia agostiniana, o mal é uma privação decorrente da ação, nunca da substância, conforme resposta dada ao amigo Evódio:

[Agostinho] Certamente, pois o mal não poderia ser cometido sem ter algum autor. Mas caso me perguntes quem seja o autor, não o poderia dizer. Com efeito, não existe um só e único autor. Pois cada pessoa ao cometê-lo é o autor de sua ação. Se duvidas, reflete no que dissemos acima: as más ações são punidas pela justiça de Deus. Ora, elas não seriam punidas com justiça, se não tivessem sido praticadas de modo voluntário
(De lib. arb., I, 1, 1).

Deixou registrado também em sua A Verdadeira Religião:

A defectibilidade da alma vem de seus atos e da pena que padece pelas dificuldades – conseqüência dessa defectibilidade. Todo mal reduz-se a isso. Ora, o agir ou o padecer não são substâncias. Portanto, a substância não é um mal
(3, 20, 38).

Devido ao pecado o mal legará à alma uma pena, em que esta é seduzida ao bem inferior e corporal. Desse modo, as coisas temporais, amadas pelo homem decaído, tiram-no da unidade de Deus (
De vera rel., 3, 21, 41). Dessa forma, toda alma racional é ditosa na boa ação e infeliz no pecado, pois “o mal vem a cada um por sua própria culpa” (3, 23, 44). Quando a alma domina o corpo, não há mais o mal, já que o corpo, como bem inferior, deve ser submisso à alma.

Assim, não é da natureza da alma, o vício. É, sim contra a sua natureza. O vício nada mais é que pecado e a pena do pecado. Compreende-se daí que nenhuma natureza substância, essência ou que se empregue outra palavra melhor – seja mal
(3, 23, 44).

Santo Agostinho classificou o mal em três níveis.

No primeiro nível, o mal tem um sentido
metafísico-ontológico, segundo o qual não existe mal no cosmo, mas graus inferiores de ser em relação a Deus. Isto é, em um universo criado pelo Sumo Bem não há espaço para a existência do mal, pois, “o que chamamos de males ou são apenas os efeitos do mal, ou não passa de uma visão deturpada do universo...” (COSTA, 2002, p. 246).

O segundo nível explanou o mal visto de um sentido
moral, que é o pecado, dependente do juízo da razão, da má vontade. O homem faz mau uso do seu livre-arbítrio pelo fato de ser racional é responsável pelo sucedido –, em decorrência de uma “causa deficiente”, que ao invés de a vontade tender ao Bem supremo, ela tende aos bens inferiores, ou seja, é uma aversio a Deo.

Por último, situa o mal no plano
físico, como as doenças, tormentos do espírito, que soam como conseqüência do pecado original, do mal moral, haja vista a corrupção do corpo ser uma pena do primeiro pecado: não foi “a carne corruptível que fez a alma ser pecadora, e sim a alma pecadora é que fez a carne corruptível” (De civ. Dei, XIV, 3, 1). Dessa forma, o mal não existe ontologicamente, por extensão, não há espaço para um mal físico.

A resposta agostiniana para o mal encontra suas raízes no pensamento neoplatônico, sobretudo em Plotino, para quem o mal não passava de um acidente ou deficiência do bem; e, por isso, foi entendido como não-ser, apropriado por Santo Agostinho no processo de negação e desconstrução do maniqueísmo. No entanto, não assumiu toda a filosofia plotiniana, pois para ele qualquer matéria (hylé) sempre foi, é e será boa (por natureza), ao passo que para o filósofo grego vale o oposto: esta pode se tornar um nada, ou não-ser (COSTA, 2002).

O problema do mal foi uma questão que, desde os tempos dos poetas ao pensamento filosófico greco-romano, nunca havia deixado de estar ausente nas angústias do homem, e que, em Santo Agostinho, apareceu com destaque e originalidade no fim da Antiguidade:

Agostinho chegou à conclusão de que a única causa do mal é o pecado, fruto da má vontade do homem, ou de que o único mal que podemos chamar propriamente mal é o mal ético-moral, pois o mal metafísico não existe, é antes não-ser; e o mal físico não passa de um erro de perspectiva estética, por parte do homem, e é perfeitamente abarcado na totalidade do universo. Nesse momento, Agostinho alcançaria o último estágio de seu pensamento acerca do problema mal, passando de uma explicação ontológico-estético-filosófico-religiosa a uma explicação ontológico-ético-moral-filosófico-religiosa do problema; de uma visão centrada em Deus (enquanto Criador do universo) para uma visão centrada no homem. E é aqui, defendemos, que reside toda a originalidade do pensamento de Agostinho em relação aos filósofos que o antecederam...
(COSTA, 2002, p. 394).

Para ele então, a resposta consistia em isentar Deus da condição de causador e/ou criador do mal, preservando o princípio da bondade de Deus, o que o levou a identificar na natureza criada o princípio do mal, mais precisamente no homem, que, ao romper com o Criador, se esvaziou de sua essência.”

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Fonte:
MARCOS ROBERTO PIRATELI: “A HUMANITAS EM SANTO AGOSTINHO, OU COMO SANTIFICAR O HOMEM NAS RUÍNAS DO IMPÉRIO ROMANO”. (Dissertação apresentada por ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Área de Concentração: Fundamentos da Educação, da Universidade Estadual de Maringá, como um dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr. JOSÉ JOAQUIM PEREIRA MELO). Maringá, 2006.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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