O Projeto Humanista da Sociologia Weberiana


O Projeto Humanista da Sociologia Weberiana

Após nos guiarmos, em todo o desenvolvimento anterior, pela caracterização do instrumental que uma teoria crítica necessita para perseguir seu objetivo de favorecer práticas emancipatórias – mas já nos fazendo adentrar, como visto, em diversos temas substantivos –, passaremos agora a nos preocupar mais especificamente em interpretar Marx e Weber a partir dos esforços nesse sentido encontrados em Habermas e especialmente na Teoria da Ação Comunicativa. Esperamos com isso oferecer uma apropriação mais fértil quanto aos temas explorados por esses autores e, afinal, quanto ao valor destes temas para uma contemporânea ancoragem sociológica da dialética da reificação e da emancipação.

Em um momento intermediário, nos desviaremos para uma apresentação da obra de Habermas no contexto mais amplo da disciplina sociológica, com o fito de determinar previamente as correntes de reflexão teórica (novo movimento teórico e teoria crítica) nas quais se insere o acolhimento pelo mesmo do pensamento de ambos os autores. Por ora, destinaremos algumas linhas para já fixar algumas das vantagens de se inserir Weber na composição hodierna da teoria crítica.

Consideremos, inicialmente, o fato de que a sociologia clássica da modernidade deixou uma marca importante no campo das ciências sociais, o que é por Habermas reconhecido e colocado em destaque. Se acreditamos que os ímpetos elementares da sociologia crítica são, inseparavelmente, o pathos da emancipação e a vocação sóbria de decifrar objetivamente o moderno, ou seja, a preocupação humanista com a autodeterminação e o exame científico da sociedade burguesa, isto se deve principalmente às pesquisas exemplares e às construções teóricas que Marx e Weber legaram à tradição da disciplina. Qual o significado da modernidade, qual o conteúdo normativo de suas promessas, que tipo de crítica pode a ela ser dirigida, como se deve lidar com sua herança – os dois autores formularam essas perguntas de um modo que até hoje não perdeu a validade, e que as torna tão úteis para a pesquisa e para a orientação da práxis quanto o foram em sua época. Com efeito, tais questões permanecem no centro de qualquer programa de “Teoria Crítica da Sociedade”, e Habermas, por seu lado, propõe respondê-las traduzindo em uma teoria comunicativa os temas clássicos de Marx e Weber.

Com relação a Marx, diz o autor: “Uma teoria da modernização capitalista que se valha dos meios de uma teoria da ação comunicativa se atém [...] integralmente ao modelo de Marx” (Habermas, 1999b, p. 529). Como esperamos já ter deixado bastante claro, a perspectiva marxiana de fazer ciência e de pautar a pesquisa pela objetividade não permite que se exclua em nenhum momento de sua obra o escopo da emancipação. Já no pensamento weberiano, como queremos repisar, algumas dificuldades aparecem.

É verdade que em Weber predomina o pathos simmeliano do desespero, e seu “projeto humanista” de uma sociologia compreensiva que favorece a ética da responsabilidade – proposta como a forma de as elites políticas de um regime parlamentar integrarem em sua ação as racionalidades formal e substantiva (e fonte de um “paradoxal” reforço da tese habermasiana de uma aproximação entre Weber e a ética dialógica) – fica obstruído devido a essa tendência fatalista que, ao fim e ao cabo, “exclui a possibilidade mesma da ruptura da reificação”. (Vandenberghe, 1997, p. 207, v. também pp. 161, 165 e 201)

Por outro lado, há uma especificação dos conceitos de reificação e alienação em Marx e em Weber que merece ser feita antes que possamos continuar. São, de fato, noções “freqüentemente associadas, e mesmo confundidas”. Em Marx a alienação tem o significado de perda de liberdade ou de reificação, mas para Weber essa perda de liberdade – cujo sentido de “redução de um conceito multidimensional da ação ao conceito unidimensional de ação estratégica” imprime maior refinamento científico-social ao achado de Marx – se distingue da alienação, que agora significa perda de sentido ou desencantamento do mundo. (Vandenberghe, 1997, pp. 21, 167-9, 173).

Isto posto, há um aspecto em que podemos discordar do comentador, mobilizando seus próprios argumentos. Pode até mesmo ser que “a tese da perda de sentido não [deva] ser interpretada nos termos do pessimismo cultural” de um Horkheimer, mas, na medida em que se perfaz a dialética de “reencantamento, desencantamento e desumanização do mundo” – ou em que as imagens de mundo caem por terra diante do politeísmo dos valores e levam consigo não só o nexo entre interesses e idéias (ou entre interesses e valores) como, com isso, a possibilidade de um questionamento prático da ação unidimensional –, torna-se difícil tirar de vista a convergência entre perda de sentido e perda de liberdade e não recair em algum tipo de pessimismo fatalista. Em outras palavras, não há como afirmar que “aquilo que nós perdemos em certeza moral [com a perda de sentido reflexivo], nós o ganhamos, segundo Weber, em liberdade e responsabilidade pessoais” se a irreversível institucionalização da racionalidade formal (perda de liberdade) desloca para o passado a referência a valores (perda de sentido como impeditiva da intervenção prática que poderia reverter a perda de liberdade). (Vandenberghe, 1997, pp. 170, 196)

Certamente, este é um aspecto contraditório da própria obra de Weber. De todo modo, a perda de sentido reflexivo só seria suportável se não convergisse com a perda de liberdade, se não fossem, estas, duas “tendências que se interpenetram e reforçam mutuamente” (Habermas, 1999b, p. 464). Habermas, ao assimilar esses conceitos de Weber respectivamente ao “empobrecimento cultural” e à “reificação induzida sistemicamente”, destaca que os dois processos, de distintas causas e remédios, levam conjuntamente a uma prática cotidiana mutilada em sua dimensão simbólica – a um mundo da vida “desertificado” (a racionalidade especializada da alta cultura se retrai diante das tradições moribundas que vagam pela hermenêutica cotidiana) e “atrofiado” (colonização ou invasão de imperativos sistêmicos sobre os núcleos sociais da racionalidade comunicativa, com alastramento de “uma realidade vazia de conteúdo normativo”).

Por fim, podemos destacar a maneira específica, já mencionada, como Habermas atualiza o “materialismo interdisciplinar” formulado pela Escola de Frankfurt nos anos 1930 (v., por exemplo, Honneth, 1999). Para o autor, a teoria social pode abandonar a idéia de que os “conteúdos normativos” enraizados na cultura moderna só poderiam ser apreendidos depois de submetidos à crítica das ideologias – conceito frágil se desatrelado da filosofia da história, a qual garantia subterraneamente o estatuto não-ideológico dos conteúdos normativos de partida –, confiando em que, “com o conceito de razão comunicativa, de uma razão imanente ao uso da linguagem quando este uso se endereça ao entendimento”, uma filosofia que se proponha a “realizar o trabalho preliminar para uma teoria da racionalidade” pode retomar à luz do dia as “relações de cooperação” com a teoria crítica (Habermas, 1999b, p. 563).

Dessa maneira, temos a reflexão filosófica operando em conjunto com a teoria crítica para formular uma reconstrução abstrata da lógica de reprodução imanente aos níveis comunicativos da realidade social. Ao que poderíamos acrescentar a contabilização, nesse esforço, dos aportes empíricos da pesquisa científico-social – pois a teoria crítica, como qualquer teoria social, é apenas uma lente que define o foco da ciência social e de suas ramificações (Habermas, 1999b, p. 542) – sobre as condições reais de desenvolvimento da referida lógica. Cumpre observar que essa combinação entre pesquisa empírica e orientação filosófica oferece, nas fronteiras que o pensamento crítico for capaz de abrir entre o nível teórico e o das decisões práticas do cotidiano, a possibilidade de uma tomada de posição mais condizente com uma ética da responsabilidade (exatamente como na Ciência como Vocação de Weber) que, na era da modernização reflexiva e da sociedade de riscos, deixa de se aplicar apenas às elites do poder político e se torna imputável não só aos especialistas em geral – atribuindo um sentido mais radical à “integridade intelectual” de que falava Weber –, como para todo indivíduo, cujas escolhas mais corriqueiras da esfera privada estão impregnadas de conseqüências produtoras de riscos.

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Fonte:
MAXIMILIANO VIEIRA FRANCO DE GODOY: “EMANCIPAÇÃO E RACIONALIZAÇÃO: SOCIOLOGIA CRÍTICA EM MARX, WEBER E NA “TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA” DE HABERMAS”. (Dissertação apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Sociologia. Orientador: Prof. Dr. Luiz Jorge Werneck Vianna). Rio de Janeiro, 2007.

Nota
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