Eta vida besta



Eta vida besta

Será outro país? O governo o pilhou? O tempo o corrompeu?
No país dos Andrades, secreto latifúndio, A tudo pergunto e invoco; mas o escuro soprou; e ninguém me secunda.
(“No País dos Andrades”, A Rosa do Povo)

Significativa ainda nessa primeira fase provinciana de Drummond, correspondente à fase denominada por Sant’Anna como “Eu maior que o Mundo”, é o poema “Lanterna Mágica” (AP), verdadeiro “cartão postal”, (MINAS GERAIS, 1981), ou espécie de “mosaico cultural”, na expressão de Fernando Correia Dias (1971). Dividido em oito partes, as cinco primeiras dedicadas à província, as duas seguintes a Nova Friburgo e ao Rio de Janeiro, e a última, apesar de ter como título “Bahia”, não fala dela diretamente, pois o poeta confessa nunca ter estado lá, revelando ironicamente uma crítica a um princípio estético: a impossibilidade de poetizar um espaço desconhecido. O poema pode ser interpretado como uma tentativa do poeta em abarcar, simbolicamente, o universo inteiro. Perseguindo “a idéia mítica de que o universo inteiro poderia ser condensado e contemplado a partir de um foco mágico” (BOLLE, 2000, p. 365). Nesse sentido, explica-se o título “Lanterna Mágica”.

Mesmo que a atenção, nesse momento, esteja voltada para o quarto poema, denominado “Itabira”, não é possível desconsiderar os poemas relativos a outras províncias mineiras, pois mesmo as referências a Sabará e a São João Del-Rei, feitas no poema “Lanterna Mágica”, podem ser interpretadas e transportadas para Itabira.

O primeiro poema, dedicado a Belo Horizonte, será analisado mais tarde. O segundo poema descreve Sabará, uma “cidadezinha calada, entrevada”, “A dois passos da cidade importante”. Suas casas são “velhas” e “encardidas”, nelas só “há velhas nas janelas”. No “Rio das Velhas”, corre uma “água suja, barrenta”, “água cansada”. As referências à cidade histórica e colonial estão presentes nos “bancos janelas fechaduras lampiões” e na alusão a Aleijadinho. O tempo nessas cidades típicas do interior passa devagar, lentamente, bem “de mansinho” e contrasta com o “trem bufando”, rápido, engolindo as cidades. Apenas o trem parece revelar movimento, velocidade, progresso, indícios de modernidade. E também o “cartaz de cinema com fita americana” que parece entrar nesse cenário meio sem querer: “de repente dá um salto”. De resto, a ausências de “Siderúrgica”, da “Central”, de “forde” compõem o cenário das sonolentas cidades do interior mineiro.

No poema “Caeté” surge novamente o trem, símbolo de velocidade e progresso. A igreja aparece “de costas para o trem”, ressaltando seu conservadorismo. As casas aparecem “torcidas”. No quinto poema, “São João Del-Rei”, surge mais uma vez a referência a Aleijadinho, contribuindo para seu aspecto de cidade colonial, como também a alusão a crença em “mulas-sem-cabeça” que denuncia as lendas antigas. Em todos os três poemas, “Sabará”, “Caeté” e “São João Del-Rei” surge a imagem de igrejas, mas é nesse último que aparece uma expressão que parece ser apropriada também a Itabira: “cidade paralítica”. No quarto poema está Itabira:

Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.
Na cidade toda de ferro
as ferraduras batem como sinos.
Os meninos seguem para a escola.
Os homens olham para o chão.
Os ingleses compram a mina.

Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota
incomparável.

O poema, construído por sete versos, retrata a rotina e o cotidiano dessa pequena cidade do interior. No primeiro verso, o pico do Cauê surge ainda inteiro e imenso. Lembrança constante na poesia drummondiana, pois era imagem diária na vida do menino. “Da sacada do seu quarto (...) ele via o pico do Cauê, na época ainda intacto, uma espécie de descomunal toldo de circo feito de ferro, e que sempre foi o símbolo de Itabira” (CANÇADO, 2006, p. 36). Em seguida uma característica fundamental e mais conhecida da cidade, que ressoa na personalidade de seus habitantes e do poeta Drummond: a “cidade toda de ferro”, característica que reaparecerá no poema “Confidência do Itabirano”. Em suas ruas de ferro, apenas passam cavalos, e o barulho das ferraduras batendo lembram sinos. O primeiro carro só aparecerá na cidade em 1925. Eurico Camilo, farmacêutico culto da cidade, inaugurara “a primeira estrada de automóvel ligando Itabira a Santa Bárbara. Acabou com a era do cavalinho de viagem. Com a ‘condução’, como se dizia” (DRUMMOND, 1987, p. 16-17). Os carros, no entanto, demorariam a substituir o trajeto feito pelo lombo dos animais, como constata o poeta:

Carro não havia em parte alguma do Brasil, naquele tempo, salvo no Rio, e talvez em São Paulo. (...) Havia o de Chico Osório, (...) que foi realmente o primeiro em Itabira. É de 1925. Luz, eu conheci menino, instalada pela Câmara Municipal de que meu pai fazia parte como vereador (CRUZ, 2000, p. 102-103).

O surgimento do primeiro carro, anunciando o despertar para uma “nova aurora”, não é esquecido por Drummond, que relembra o fato no poema “Primeiro Automóvel” (BT):

Que coisa-bicho
que estranheza preto-lustrosa
Evém-vindo pelo barro afora?

É o automóvel de Chico Osório
é o anúncio da nova aurora
é o primeiro carro, o Ford primeiro
é a sentença do fim do cavalo
do fim da tropa, do fim da roda
do carro de boi.

Lá vem puxado por junta de bois.

A ironia, tão presente em Drummond, não está ausente nesse poema. O último verso denuncia que o progresso tardaria a chegar na pequena Itabira. Com suas estradas ainda de barro, o automóvel chega puxado pelo antigo, mas eficaz, carro de bois.

O quarto e o quinto versos do poema “Itabira” revelam a rotina da cidade. Os meninos indo para a escola e “Os homens olham para o chão”. Esse olhar preso ao solo, ao chão, denuncia a falta de horizontes dos habitantes de Itabira, cidade montanhosa que, portanto, encurta o olhar. De acordo com Affonso Romano de Sant’Anna (1992), nessa fase inicial, quando o poeta ainda não conhece a metrópole, quando ainda está morando na província, seu olhar caracteriza-se por uma “visão para baixo”, segundo expressão de Roger Bastide, citada por Sant’Anna. A visão de Drummond, sobretudo nos primeiros poemas, caracteriza-se como uma visão para baixo e não para o alto. “O mundo que ele apresenta é o mundo da terra, das pedras: ‘No meio do caminho tinha uma pedra’ – das calçadas, dos velhos porões, das casas; e o que ele vê nas pessoas são as pernas” (SANT’ANNA, 1992, p. 48) – a visão para o solo explica, portanto, o grande número do vocábulo “pernas” no seu livro inaugural, como já expresso anteriormente. Esse olhar inicial, que apenas parece espiar o mundo, depois, na metrópole carioca, se revelará como um olhar menos superficial, interessado em contemplar o mundo.

O verso seguinte do poema “Itabira”, contrapondo-se ao anterior, sem horizontes, revela o início do progresso em Itabira: “Os ingleses compram a mina”. A cidade, que no início do século XX era toda ferro e sossegada, irá ter seu destino mudado com a chegada em 1910 da primeira companhia inglesa para explorar o minério, a Itabira Iron Ore Co. Habitante de Itabira até 1920, Drummond viveu numa cidade ainda tranqüila, sem o intenso barulho das escavações de minério e do movimento dos trens. Em conversa com um casal de Itabira, em 1978, Domingo Gonzalez Cruz registra algumas informações que ajudam a construir o panorama da cidade natal de Drummond. Luís Gonzaga de Freitas nasceu em 1899 sua mulher, Efigênia, em 1903. Habitantes de Itabira antes do processo de aceleração da exploração de minério, eles recordam uma cidade que não existe mais. Falam de um tempo em que ainda se encontravam nas ruas ferreiros, ourives, espora, ferraduras, freios. E o progresso para eles parece ser identificado pela ausência dessas atividades e coisas: “É o progresso. Você vê que hoje a gente quase não acha um ferreiro” (CRUZ, 2000, p. 100). Objetos como esporas e ferraduras, diz Drummond, “Amanhã serão graças/ de museu” (“Agritortura”, BT).

Drummond, numa crônica de 1968, citada por Domingo Gonzalez Cruz (2000), também constata os efeitos do progresso novamente de forma irônica, que fizeram desaparecer a “nobre arte de São José”. Drummond procurava um carpinteiro para consertar pequenos serviços em seu apartamento, “caixilhos de vidraça e outro de porta estragada”, mas encontrava apenas “consertadores de persianas e técnicos de televisão ao mesmo tempo”. Três meses procurando um carpinteiro, Drummond decide dedicar-lhe um dia em outubro, um mês já “tão cheio de dias”:

Pelo quê, disponho-me a promover vasta campanha em favor do Dia do Carpinteiro Especializado em Pequenos Serviços, na esperança de que a homenagem comova um da classe (existe?) e o faça bater à minha porta quebrada ou à minha janela sem caixilhos, com um sorriso e esta declaração: ‘Eu conserto para o meu chapa’ (CRUZ, 2000, p. 115).

Com a chegada da companhia de minério, Itabira foi recebendo várias pessoas, de diferentes lugares, que iam aos poucos alterando a rotina e a paisagem de Itabira. O pico do Cauê, antes lugar preferido dos piqueniques, transformou-se num imenso vazio, escavado pelas máquinas.

A Itabira da infância drummondiana vai, portanto, sofrendo as alterações do tempo. Em nome do progresso e da urbanização, sinônimos de modernidade, a cidade vai se desfigurando. Sua poesia retrata de início a Itabira tranqüila, quase idílica, com suas ruas calmas e silenciosas e o Pico do Cauê imenso a rodear a cidade. Com o tempo, Drummond descobre que sua Itabira não existe mais, foi sendo alterada pelas companhias de minério e pelo progresso. O poeta, contudo, refaz os caminhos de sua infância e adolescência na antiga Itabira, sem esquecer que o tempo passou, pois não sai “Para rever, sai para ver/ o tempo futuro” (“Documentário”, BT).

Enquanto nessa primeira estrofe do poema “Itabira”, os olhos parecem estar voltados para o presente, no último verso, isolado dos demais, está a figura de Tutu Caramujo, “Só”, ensimesmado em seu mundo e com os olhos para o passado, evidenciando uma postura saudosista. E por que Tutu Caramujo?

A sensibilidade do poeta, porém, exigiu um nome capaz de contar a cor local do ambiente provinciano e, certamente, há de se ter lembrado de Tutu Caramujo, que soa como personagem autêntico na paisagem regional. Essa identificação com algo existente valoriza o conteúdo semântico do nome, excitando a imaginação do leitor (MORAES, 1972, p. 237).

O cotidiano monótono de Itabira, desvelado pelo poema “Itabira”, pode também ser interpretado a partir do poema “Cidadezinha Qualquer”, (AP), poema que constitui imagem simbólica da província, mesmo não trazendo em seu texto o nome da cidade grafado:

Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

O poema, dividido em três estrofes, apresenta na primeira o cenário interiorano, casas, bananeiras, laranjeiras e mulheres. A sugestão é de um espaço idílico e bucólico, sem conflitos, mas também sem ação, como confirma a presença dos dois verbos no infinito, “amor” e “cantar”. Os dois primeiros versos revelam a construção típica da poesia drummondiana: a repetição, construída por um substantivo, uma preposição e outro substantivo. Emanuel de Moraes (1972, p. 168) considera nesses versos o processo de enumeração, formada pelos versos iniciais, compreendidas por ele como “orações elípticas”. Assim, os versos “Casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras” “são predicados, ao menos psicológicos, de uma posição de observador do poeta passante, que realmente vê ou memoriza” (MORAES, 1972, p. 168).

Em seguida, sem separação de vírgulas, o que parece ser comum e restar nesse ambiente: “pomar amor cantar”. Na segunda estrofe, a ação se desenvolve devagar, em cenas que se repetem lentamente, denunciando a própria lentidão do tempo, característico da cidade pequena. Assim, homem, cachorro, burro, tudo vai devagar, como a vida e o tempo. Marcando um espaço cotidiano afastado da agitação e tumulto da cidade grande e de suas possíveis contradições, distanciado do movimento característico da modernidade. Nesse mundo, “nesse ‘espaço besta’ as coisas não têm importância. (...) Tudo se dá no mesmo nível: o homem e o vegetal, o homem e o animal, o homem e os objetos” (SANT’ANNA, 1992, p. 76). A cidade é tomada por uma monotonia, por uma falta de pretensões ou por uma ausência de horizontes, que leva a um estado de paralisia, como a imagem da “cidade paralítica” descrita no poema “São João Del-Rei”, em “Lanterna Mágica” (AP). Nessa segunda estrofe, ainda, há um outro tipo de enumeração definido por Moraes (1972, p. 168): a “enumeração de diversos sujeitos para um só predicado (...). O poeta prossegue na sua posição de observador diante da monotonia da vida, explicitando – observação e monotonia – no verso seguinte”: “Devagar... as janelas olham”.

Na persona de um ‘uomo qualunque’, o poeta sabe que a cidade inaugura-se pela pedra e pelas casas, que atendem aos destinos da construção. A cidadezinha existe lenta, entre cenas que se repetem. No jogo da indiferença, é o espaço do mesmo: a desqualificação do indivíduo apagado, desbotado entre burro e homem. O visto liberta-se das hierarquias, e a superioridade dos homens dissolve-se na lentidão, na igualdade possível entre os reinos naturais. Nesse espaço pastoso, o traçado lento do poema capta numa só pincelada mulheres, bananeiras e laranjeiras, recompondo a cidadezinha como o teatro possível da mediania, o exercício vagaroso e fatal da mediocridade (CHAVES, 2002, p. 140).

As cenas descritas são mecânicas, automáticas, como o ritmo do poema, basicamente repetitivo. Nesse instante, quando o poeta ainda está preso ao canto/província, falta-lhe a consciência do tempo. “O mundo está sendo visto de fora. De um canto, da província, de uma perspectiva gauche” (SANT’ANNA, 1992, p. 79). Não há ainda o conhecimento do tempo, pois o poeta desconhece a realidade representada pela metrópole. Apenas com a mudança geográfica, de Itabira para o Rio de Janeiro, se dará a experiência temporal.

De acordo com a classificação de poesia estabelecida por Pound, o poema “Cidadezinha Qualquer” caracteriza-se pela presença da “fanopéia”: “Um lance de imagens sobre a imaginação visual” (POUND, 1997, p. 11). É a projeção de uma imagem. Como se o poema revelasse um quadro desbotado das pequenas cidades do interior, com suas cenas previsíveis e suas personagens típicas. Não se trata, contudo, de um retrato sentimental ou simplesmente lírico. A última estrofe, formada por um verso, revela o teor crítico do poema, “o lance decisivo é a estocada final, de caipirismo irônico” (ACHCAR, 2000, p. 25). A expressão “Eta”, caracteristicamente mineira, está tão presente nesse poema que pode ser interpretada como um tema associado à vida comum e ingênua do interior. Não obstante, não é uma singularidade ou uma invenção drummondiana, mas pode ser vista como uma interpretação de um lugar-comum: “o topos, de gosto acentuadamente modernista, do desprezo urbano pela ‘idiotia rural’, agora transportada para a pequena cidade. ‘Cidadezinha Qualquer’ pode ser lido como um poema antibucólico” (ACHCAR, 2000, p. 26). É a imagem do eu provinciano que, através do efeito crítico do verso final, desvela sua insatisfação com sua geografia. De forma irônica o poeta descreve um modus vivendi interiorano, tranqüilo e sem movimento, que se contrapõe ao asfalto e ao urbano.

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Fonte:
CRISTIAN PAGOTO: “AS CIDADES NO MEIO DO CAMINHO DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: DA VIDA BESTA AO MUNDO GRANDE”. (Dissertação apresentada à Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras, área de concentração: Estudos Literários. Orientador: Prof. Dr. Adalberto de Oliveira Souza). Maringá, 2008.

Nota
:
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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