O maior escritor de Língua Portuguesa, o grande paradigma literário do nosso vernáculo, o poeta Luís Vaz de Camões, foi um dedicado leitor do livro dos cristãos, Bíblia. Em seus poemas, encontramos inúmeras referências a fatos ou passagens bíblicas. Como exemplo, escolhemos dois poemas. No primeiro, o poeta faz uma explícita referência ao episódio no qual, Jacó, um dos filhos de Isaque, por amor a Raquel, filha de Labão, precisou trabalhar em dobro para tê-la como esposa. No outro poema, “Babel e Sião”, Camões, de maneira magistral, refere-se à épica história dos hebreus, que durante séculos foram submetidos ao cativeiro egípcio. Vejamos...
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SETE ANOS DE PASTOR JACÓ SERVIA
Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pertendia.
Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida
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BABEL E SIÃO
Sôbolos rios que vão
Por Babilônia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião
E quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E, tudo bem comprado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
Ali, lembranças contentes
Na alma se representaram;
E minhas cousas ausentes
Se fizeram tão presentes
Como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
Co rosto banhado em água;
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado
Não é gosto mas é mágoa.
E vi que todos os danos
Se causavam das mudanças
E as mudanças dos anos;
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura;
O mal quão depressa vem,
O quão triste estado tem
Quem se fia da ventura.
Vi aquilo que mais vale,
Que então se entende melhor,
Quanto mais perdido for;
Vi ao bem suceder mal
E, ao mal, muito pior.
E vi com muito trabalho
Comprar arrependimento.
Vi nenhum contentamento,
E vejo-me a mim, que espalho
Tristes palavras ao vento.
Bem são rios estas águas
Com que banho este papel;
Bem parece ser cruel variedade de mágoas
E confusão de Babel.
Como homem que, por exemplo,
Dos transes em que se achou,
Depois que a guerra deixou,
Pelas paredes do templo
Suas armas pendurou;
Assim, depois que assentei
Que tudo o tempo gastava,
Da tristeza que tomei,
Nos salgueiros pendurei
Os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
Deixei da vida passada,
Dizendo: - Música amada,
Deixo-vos neste arvoredo,
A memória consagrada.
Frauta minha que, tangendo,
Os montes fazíeis vir
P’ra onde estáveis, correndo,
E as águas, que iam descendo.
Tornavam logo a subir,
Jamais vos não ouvirão
Os tigres, que se amansavam;
E as ovelhas que pastavam,
Das ervas se fartarão
Que por vos ouvir deixavam.
Já não fareis docemente
Em rosas tornar abrolhos
Na ribeira florescente;
Nem poreis freio à corrente,
E mais se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
Nem podereis já trazer
Atrás vós a fonte pura,
Pois não pudestes mover
Desconcertos da ventura.
Ficareis oferecida
A Fama, que sempre vela,
Frauta de mim tão querida;
Porque, mudando-se a vida,
Se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade
Prazeres acomodados,
E logo a maior idade
Já sente por pouquidade
Aqueles gostos passados.
Um gosto que hoje se alcança,
Amanhã já o não vejo:
Assim nos traz a mudança
De esperança em esperança
E de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
que esperança será forte?
Fraqueza de humana sorte,
que quanto da vida passa
está recitando a morte!
Mas deixar nesta espessura
o canto da mocidade!
Não cuide a gente futura
Que será obra da idade
O que é força da ventura.
Que idade, tempo, o espanto
De ver quão ligeiro passe,
Nunca em mim puderam tanto
Que, posto que deixe o canto,
A causa dele deixasse.
Mas em tristezas e nojos,
Em gosto e contentamento,
Por sol, por neve, por vento,
Tendré presente á los ojos
Por quein muero tan contento.
Órgãos a frauta deixava,
despojo meu tão querido,
no salgueiro que ali estava,
Que para troféu ficava
De quem me tinha vencido.
Mas lembranças da afeição
Que ali cativo me tinha,
Me perguntaram então:
que foi daquele cantar
das gentes tão celebrado?
Por que o deixava de usar?
Pois sempre ajuda passar
Qualquer trabalho passado.
Canta o caminhante ledo
No caminho trabalhoso,
Por entre o espesso arvoredo;
E de noite o temoroso,
Cantando, refreia o medo.
Canta o preso docemente,
Os duros grilhões tocando;
Canta o segador contente,
E o trabalhador, cantando,
O trabalho menos sente.
Eu, que estas cousas senti
Na alma, de mágoas tão cheias,
¿Como dirá, respondi,
quem alheio está de si
doce canto em terra alheia?
¿Como poderá cantar
Quem em choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
Canta por menos cansar,
Eu só descansos enjeito.
Que não parece razão
Nem parece coisa idônea
Por abrandar a paixão,
Que cantasse em Babilônia
As cantigas de Sião.
Que, quando a muita graveza
De saudade quebrante
Esta vital fortaleza,
Antes moura de tristeza
Que, por abrandá-la, cante.
Que, se o fino pensamento
Só na tristeza consiste,
Não tenho medo ao tormento:
Que morrer de puro triste,
Que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
O que passo e passei já,
Nem menos o escreverei;
Porque a pena cansará
E eu não descansarei.
Que, se vida tão pequena
Se acrescenta em terra estranha,
E se Amor assim o ordena,
Razão é que canse a pena
De escrever pena tamanha.
Porém se, para assentar
O que sente o coração,
A pena já me cansar,
Não canse para voar
A memória em Sião.
Terra bem-aventurada,
Se, por algum movimento,
Da alma me fores mudada,
Minha pena seja dada
A perpétuo esquecimento.
A pena deste desterro,
Que eu mais desejo esculpida
Em pedra ou em duro ferro,
Essa nunca seja ouvida,
Em castigo de meu erro.
E se eu cantar quiser,
Em Babilônia sujeito,
Jerusalém, sem te ver,
A voz, quando a mover,
Se me congele no peito.
A minha língua se apague
Às fauces, pois de perdi,
Se, enquanto viver assi,
Houver tempo em que te negue
Ou que me esqueça de ti!
Mas, ó tu, terra de Glória,
Se eu nunca vi tua essência,
Como me lembras na ausência?
Não me lembras na memória,
Senão na reminiscência.
Que a alma é tábua rasa
Que com a escrita doutrina
Celeste tanto imagina,
Que voa da própria casa
E sobe à pátria divina.
Não é logo a saudade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do Céu,
Daquela santa Cidade
De onde esta alma descendeu.
E aquela humana figura,
Que cá me pode alterar,
Não é quem se há de buscar:
É raio da Formosura
Que só se deve de amar.
Que os olhos e a luz que ateia
- Não do sol, mas da candeia
– O fogo que cá sujeita,
É sombra daquela idéia
Que em Deus está mais perfeita.
E os cá me cativaram
São poderosos afeitos
Que os corações têm sujeitos;
Sofistas que me ensinaram
Meus caminhos por direitos.
Destes o mando tirano
Me obriga com desatino,
A cantar, ao som do dano,
Cantares de amor profano
Por versos de amor divino.
Mas eu, lustrado co santo
Raio, na terra de dor,
De confusão e de espanto,
¿Como ei de cantar o canto
Que só se deve ao Senhor?
Tanto pode o benefício
Da Graça, que dá saúde,
Que ordena que a vida mude:
E o que tomei por vício
Me faz grau para a virtude.
E fez que este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao real,
Da particular beleza
Para a Beleza geral.
Fique logo pendurada
A frauta com que tangi,
Ó Jerusalém sagrada,
E tome a lira dourada
Para só cantar de ti;
Não cativo e ferrolhado
Na Babilônia infernal,
Mas dos vícios desatado
E cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.
E se eu mãos der a cerviz
A mundanos acidentes,
Duros, tiranos e urgentes,
Risque-se quando já fiz
Do grão livro dos viventes.
E, tomando já na mão
A lira santa e capaz
Doutra mais alta invenção,
Cale-se esta confusão,
cante-se a visão da paz!
Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este acento santo,
Mova-se no mudo espanto;
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto.
A vós se me quero ir,
Senhor e grão capitão
Da alta torre de Sião,
À qual não posso subir,
Se me vós não dais a mão.
No grão dia singular
Que na lira o douto som
Jerusalém celebrar,
Lembrai-vos de castigar
Os ruins filhos de Edom.
Aqueles que tintos vão
No pobre sangue inocente,
Soberbos co poder vão,
Arrasai-os igualmente,
Conheçam que humanos são.
E aquele poder tão duro
Dos efeitos com que venho,
Que incendem alma e engenho;
Que já me entraram o muro
Do livre alvídrio que tenho;
Estes, que tão furiosos
Gritando vêem a escalar-me,
Maus espíritos danosos,
Que querem como forçosos
Do alicerce derrubar-me;
Derrubai-os, fiquem a sós,
De forças fracos, imbeles;
Porque não podemos nós
Nem com eles ir a Vós,
Nem sem Vós tirar-nos deles.
Não basta minha fraqueza
Para me dar defensão,
Se vós, santo Capitão,
Nesta minha fortaleza
Não puserdes guarnição.
E tu, ó carne que encantas,
Filha de Babel tão feia,
Toda de misérias cheia,
Que mil vezes te levantas
Contra quem te senhoreia,
Beato só pode ser
Quem com a ajuda celeste
Contra ti prevalecer,
E te vier a fazer
O mal que lhe tu fizeste;
Quem com disciplina crua
Se fere mais que uma vez,
Cuja alma, de vícios nua,
Faz nódoas na carne sua,
Que já a carne na alma fez.
E beato quem tomar
Seus pensamentos recentes
E em nascendo os afogar,
Por não virem a parar
Em vícios graves e urgentes;
Quem com eles logo der
Na pedra do furor santo
E, batendo os desfizer
Na Pedra, que veio a ser
Enfim cabeça do Canto;
Quem logo, quando imagina
Nos vícios da carne má,
Os pensamentos declina
Àquela carne divina
Que na cruz esteve já;
Quem do vil contentamento
Cá deste mundo visível,
Quanto ao homem for possível,
Passar logo o entendimento
Para o mundo inteligível:
Ali achará alegria
Em tudo perfeita e cheia
De tão suave harmonia,
Que nem, por pouca, escasseia
Nem, por sobeja, enfastia.
Ali verá tão profundo
Mistério na suma Alteza,
Que, vencida a Natureza,
Os mores faustos do mundo
Julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
Minha pátria singular,
Se só com te imaginar
tanto sobe o entendimento,
que fará se em ti se achar?
Ditoso quem se partir
Para ti, terra excelente,
Tão justo e tão pernitente,
Que, depois de a ti subir,
Lá descanse eternamente.
Influência bíblica em Camões
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