Os Judeus de Portugal


“Sob muitos aspectos, a história dos judeus portugueses é uma exceção, no quadro de violências que caracteriza a Baixa Idade Média; as condições específicas do país permitiram um grau de tolerância muito superior ao do resto da Europa.

Portugal surge na história no ano de 1128, quando, na esteira das derrotas muçulmanas, o Condado Portucalense se liberta da tutela islâmica. Já havia judeus naquela região, viven­do exatamente como os demais da Península Ibérica. Portugal foi o primeiro país europeu a reconhecer os direitos judaicos, regulando sua autonomia comunitária desde o século XII. Dedicavam-se eles ao cultivo da vinha e da oliveira, ao comércio e ao empréstimo de dinheiro, como em Castela e Aragão. Expor­tavam também mel, trigo e azeite para o Norte da África, utilizando a localização geográfica do reino para dinamizar o comér­cio marítimo. O elo de ligação entre a Corte e os judeus — cerca de 40.000 em 1300 — era o "Arrabi Moor", ou rabino-mor, nomeado pelo rei e .gozando dos privilégios de um funcio­nário real. Como em Castela, os reis portugueses utilizavam os serviços de médicos e administradores judeus, sendo o Arrabi Moor por vezes o ministro da Fazenda. O número me­nor de judeus e sua dispersão por todo o reino, porém, fez que a concorrência feita por eles aos burgueses fosse menos notada, evitando a propagação do preconceito que observamos em Castela e Aragão. A utilidade dos judeus para a Coroa impediu que os distúrbios de 1391 atingissem também o reino português; com efeito, o rei D. João I concordou em receber muitos exilados de Castela, mediante um imposto especial. Os artesãos que trabalhavam o ferro — armeiros, ferreiros e outros — puderam entrar livremente em Portugal, pois suas habilida­des eram muito necessárias à expansão marítima que então se iniciava.

A participação dos judeus portugueses na epopéia das nave­gações foi extremamente importante. Astrônomos como Abraão Zacuto e José Vizinho prepararam as tabelas celestes que os navegadores levavam consigo; outros construíram instrumen­tos mais aperfeiçoados, como astrolábios e sextantes, de gran­de utilidade para as viagens. Cartógrafos como Judá Cresques prepararam os mapas indispensáveis àquela aventura. Quando da invenção da imprensa, os judeus foram os primeiros a intro­duzi-la no reino; com efeito, o primeiro livro impresso em Portugal foi uma Bíblia hebraica (1487).

Com o aumento das perseguições em Castela, Portugal tornou-se o país de asilo preferido pêlos emigrados. Durante o século XV, a hostilidade contra eles vai aumentando, mas sem atingir o grau explosivo que observamos na Espanha. Com a expulsão de 1492, dezenas de milhares de judeus buscam refúgio em Portugal, que recebe mais de 50.000 deles quase da noite para o dia. É então que a tensão lentamente gerada nas décadas anteriores vai explodir com violência. Em 1496, o rei D. Manuel contrata seu casamento com a filha dos Reis Católicos. Esta exige, para efetivar o matrimônio, que o país seja limpo dos judeus e de hereges. Ao rei português não interessava seguir o exemplo do país vizinho, pois, com toda a hostilidade popular contra os judeus, eles eram ainda indispen­sáveis às empresas da Coroa, então voltada de corpo e alma para as navegações. Por outro lado, a aliança com Castela tam­bém era vantajosa. D. Manuel concebeu então um plano maquiavélico: decretou a expulsão dos judeus, mas negou-lhes navios suficientes para partir. Como de Portugal só se podia sair por mar, muito poucos foram os que conseguiram lugar para a viagem; o resto ainda estava em Lisboa quando expirou o pra­zo para que abandonassem o país. D. Manuel então batizou-os à força, fazendo que os frades aspergissem água benta sobre a multidão reunida no cais. Iniciava-se assim o capítulo dos cristãos-novos em Portugal, cujas repercussões seriam ainda mais profundas que no caso espanhol, refletindo-se inclusive na história do Brasil.

Tudo o que afirmamos dos cristãos-novos espanhóis aplica-se aos seus congêneres portugueses, com mais intensidade ainda, porque as oportunidades econômicas eram maiores em Portugal, graças ao comércio marítimo. Com a descoberta das índias e do Brasil, numerosos cristãos-novos receberam a con­cessão de monopólios reais, como Fernando de Noronha, que explorou o pau-brasil nos primeiros anos do século XVI. Os cristãos-novos representavam um perigo para a nobreza, que vivia de pensões reais, porque o fato de participarem do setor mais dinâmico da economia lhes conferia influência considerá­vel. Assim como na Espanha, e até mais ainda, constituíam eles um grupo claramente visível, circunstância agravada pelas prá­ticas judaizantes que se explicavam pela falsidade da conver­são. Á reação da classe dominante, ameaçada em seus privi­légios, não se fez esperar: em 1536, introduzia-se em Portugal o Tribunal do Santo Ofício, sobre cujas atividades no reino e nas colônias, incluindo o Brasil, tornaremos a falar em outro capítulo deste livro.

O caso dos judeus portugueses é representativo do que ocorre em toda a Europa Ocidental a partir do século XI: quan­do as tensões sociais geradas pela transformação econômica atingem um ponto crítico, elas explodem sobre a minoria judai­ca. O apoio dado pêlos judeus às monarquias centralizadas, sob a forma de impostos próprios ou de arrecadação fiscal para a Coroa, acaba voltando-se contra eles, pois desperta a hostili­dade dos burgueses. Como os reis necessitam da burguesia para vencer os senhores feudais, a exigência burguesa de elimi­nar os judeus é atendida. Variam as formas: na Inglaterra e na França a expulsão, na Espanha e em Portugal a conversão forçada e a expulsão, na Alemanha e na Itália o confinamento nos guetos. Em Portugal, esta evolução ocorre nas poucas décadas finais do século XV; muito rápida, ela não é por isto menos explosiva. E a solução da conversão, encontrada para manter os judeus e abolindo o judaísmo, não resolve nada, além de criar o problema dos cristãos-novos.”


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Fonte:
Renato Mezan: “Caminhos do Povo Judeu”, Vol. III. Federação Israelita do Estado de São paulo. São paulo, 1982, p. 189-191.

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