“Ainda na trilha dos narradores oblíquos e dissimulados, para usar uma expressão de José Dias, ou, em outras palavras, enganosos, que demandam do leitor a máxima atenção, sob o risco de ser ludibriado, há Dom Casmurro.
No entanto, curiosamente, nem sempre foi assim. O romance sobre o ciúme, o valor das aparências, do verossímil antes da verdade, começou a ser lido dessa forma somente a partir dos anos sessenta do século XX, ainda que, à época da publicação, José Veríssimo, agudamente, tenha feito certas ressalvas quanto ao narrador, sem aprofundá-las.
Foi a pesquisadora americana Helen Caldwel , em 1960, quem primeiro sistematizou a dúvida sobre a existência ou não do adultério, “uma vez que a culpa ou inocência de Capitu dependem inteiramente do testemunho de Santiago, cujo ciúme, por si só, já torna seu testemunho suspeito” (CALDWELL, 2002, p. 32).
No seu estudo, ela mostra consciência a respeito das questões que envolvem a recepção do romance de Bentinho e Capitu:
Embora Dom Casmurro tenha sido publicado em 1900, nenhuma análise abrangente a respeito foi feita ainda. Os estudiosos de Machado de Assis que mencionaram este romance assumiram, praticamente sem exceção, a heroína como culpada, mas há poucas indicações de que algum estudo tenha realmente dado conta do assunto. (CALDWELL, 2002, p. 13)
Em O Otelo
Uma vez que o conjunto da obra de Machado de Assis apresenta a emergência de um intelecto estável e consistente, com idéias e formas que aparecem, reaparecem e se desenvolvem, mergulhei em suas obras para elucidar um único romance. Visto que o próprio Machado de Assis se referiu diversas vezes a Shakespeare com respeito e suas idéias recorrentes, tentei remontar tais referências (pertinentes) a sua fonte. Mas o núcleo de meu estudo consiste em responder duas questões suscitadas diretamente do próprio Dom Casmurro, uma subsidiária à outra. A questão principal é: “A heroína é culpada de adultério?”; e a subsidiária, “por que o romance é escrito de tal forma a deixar a questão da culpa ou inocência da heroína para decisão do leitor?” (CALDWELL, 2002, p. 13)
As relações intertextuais estabelecidas pela estudiosa entre as duas obras, se mostram semelhanças, também apontam para as necessárias diferenças, que Machado tão bem soube explorar. Assim, o pai de Capitu não é um senador veneziano, como o de Desdêmona, mas um pequeno funcionário do Ministério da Guerra; José Dias, ao contrário de Iago, não tem um cargo político importante, mas vive de favor na casa da mãe de D. Glória; os próprios Bentinho e Capitu já sugerem o que seria este Shakespeare à brasileira: ele nada tem da coragem e força do mouro, sendo mesmo, quando adolescente, um pouco covarde. Já a moça é apenas filha de uma família agregada da casa.
Independente dos acertos de Caldwel a respeito das relações intertextuais, bem como dos estudos onomásticos que ela empreende em seu livro serem ou não completamente procedentes, ou ainda de seu viés às vezes perigosamente cristão (já que acaba por se centrar um pouco além do necessário em assuntos de natureza religiosa), foram seus estudos que deslocaram a visada crítica do tema do adultério para se prender ao do ciúme. Não sendo mais Capitu a única digna de suspeição: culpada ou inocente – é justamente essa dúvida que conferirá nova vida ao romance e a seus estudos críticos subseqüentes.
Um desses estudos é o importante ensaio de Silviano Santiago, “Retórica da verossimilhança”, publicado em 1969 em Uma literatura nos trópicos, procurando relacionar a profissão de advogado de Bento à sua atuação como narrador. Para o crítico, a retórica de que o filho de D. Glória faz uso é a mesma usada nos tribunais para acusação do réu, papel no romance legado a Capitu. E, por não haver nenhuma prova concreta sobre o adultério, ou mesmo um flagrante,
Qualquer das duas atitudes tomadas na leitura de Dom Casmurro (condenação ou absolvição de Capitu) trai, por parte do leitor, grande ingenuidade crítica em que ele se identifica emocionalmente (ou simpatiza) com um dos personagens, Capitu ou Bentinho, e comodamente já se sente disposto a esquecer a grande e grave proposição do livro: a consciência pensante do narrador Dom Casmurro (...) O leitor, esquecendo a consciência pensante do sexagenário, tomava a posição de juiz e se sentia na obrigação de dar o seu veredicto sobre os fantasmas do narrador, quando na realidade o único interesse que deseja despertar Machado de Assis é para a pessoa moral de Dom Casmurro. (SANTIAGO, 2000, p. 29-30)
O estudo de Silviano Santiago dá um passo adiante em relação às formulações de Caldwel , ajudando a configurar um tipo de narrador que faz uso de sua boa educação para tentar convencer o leitor de seu ponto de vista. Se o cerne
Como lembra o crítico, Bento está acostumado com a retórica dos advogados, sendo que, na sua formação, importa mais a verossimilhança, a aparência de verdade, que o conhecimento desta, o que atesta um
(...) duplo cacoete profissional: o desligamento por completo da realidade e por conseqüência a crença no valor supremo das regras da retórica, e, por outro lado, a centralização do motivo do discurso, não no próprio discernimento do orador, mas no de quem escuta. Daí que o ponto de referência para as suas idéias não é a realidade (a constatação, o flagrante – como se diz em termos policiais), mas o provável, o verossímil, que como vimos é a base da retórica de Dom Casmurro. (SANTIAGO, 2000, p. 43)
A pergunta de Bento, se a Capitu adulta (e, para ele, culpada) já se encontrava na jovem de Matacavalos, está de alguma maneira representada na divisão do enredo, que prioriza, em termos de extensão, a primeira fase.
Assim, para Dom Casmurro o essencial era provar (e sair vencedor) que o conhecimento que tinha dos atos de Capitu quando menina lhe possibilitava um julgamento seguro sobre a Capitu adulta e misteriosa. (...) Não é de estranhar, também, como já assinalou Helen Caldwel , que gaste 2/3 do livro descrevendo as suas impressões da Capitu menina e 1/3 da Capitu adulta (...) Esse desequilíbrio estrutural se encontra justificado, para usar de uma expressão familiar, por uma desculpa esfarrapada. (SANTIAGO, 2000, p. 34)
No mais, tal atitude apontaria para um olhar preconceituoso do narrador, ou, ao menos, um que não se baseia em nada a não ser o senso comum.
Toda essa visão da vida em família trai, é claro, certo preconceito, ou neste caso específico, se baseia em provérbios que de certa forma traduzem apenas o bom senso, provérbios como: ‘Tal pai, tal filho’, ou ‘Filho de peixe, peixinho é. (SANTIAGO, 2000, p. 37)
A conclusão é clara, mas não deve ser subestimada. Ela reforça o livro de Caldwel , fazendo desmoronar definitivamente a construção que vigorou na crítica sobre o romance até então, isto é, de se buscar a culpa ou a inocência de Capitu. A questão que passava a importar agora era: que mecanismos e estratégias ideológicas utiliza Bento para fazer valer seus pontos de vista.
Em resumo: os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou a impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de Dom Casmurro. (SANTIAGO, 2000, p. 30)
Em Machado de Assis: impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom Casmurro, publicado originalmente em 1984, John Gledson analisa as relações familiares, sociais, políticas e históricas do romance. Seu objetivo é reconstituir o enredo “verdadeiro” do livro, que muito se diferenciaria daquele fornecido pelo narrador Bentinho. De fato, o estudo do crítico fundamenta-se na concepção de que a narração de Bento é duplamente enganosa, exatamente porque ele, se por um lado nos engana, em certa medida, é enganado, não por Capitu ou Escobar, mas por seus próprios preconceitos e limitações, oriundos, sobretudo, de sua classe e criação.
Seja qual for a “verdade” acerca do adultério, podemos considerar que o romance é um estudo sobre o ciúme de Bento e as condições que o produzem. Tais condições são, com efeito, idênticas àquelas que fizeram com que o casamento se realizasse. A fim de se casar com Bento, Capitu precisa manipulá-lo e dominá-lo, procedimento que, invertendo os papéis tradicionais do homem e da mulher, provoca ciúme e ressentimento. Do ponto de vista psicológico, Bentinho é apenas um menino mimado, habituado a que lhe façam as vontades, e possui a incapacidade da criança mimada para compreender que os outros têm uma existência independente da sua, de modo que quando ele afirma sua independência, como é natural na ordem das coisas, essa afirmação lhe parece uma traição. (GLEDSON, 1991, p. 12)
Assim, mais relevante que saber se Capitu traiu ou não, ou mesmo que acusar Bento de forjar provas, é, para Gledson, debruçar-se sobre a mentalidade do narrador, sua psicologia, demonstrando como ela foi construída socialmente. Compreendê-la é, em certa medida, compreender, a partir de seu âmago, uma parcela da sociedade brasileira oitocentista que a gerou.
Uma grande dificuldade a ser transposta para uma leitura dessa natureza de Dom Casmurro é que Bento não teria, muitas vezes, consciência de tudo que gira a sua volta, como no caso dos bustos de grandes homens no seu escritório. O narrador assume desconhecer a razão da disposição dos medalhões, inventando algum motivo frívolo, o que não deveria privar o leitor de propor suas próprias soluções.
Comecei a ver que, de fato, jamais compreendera a verdadeira natureza das relações sociais no romance, em parte por ela estar dissimulada (o próprio Bento não a compreende, e, assim, não pode descrevê-la de modo direto), mas também porque as categorias essenciais de favor e dependência inexistiam no meu instrumental. (...) Nós nos inclinamos, de preferência, a pensar e a explicar as motivações das personagens em outros termos: de rico e pobre, de bom e mau, de amor, fidelidade e traição. É o que Machado, até certo ponto, nos anima a fazer. (GLEDSON, 1997, p. 10)
A leitura que surge é, notavelmente, cética, sendo a separação entre narrador e autor o procedimento crítico esperado. Machado, assim, não compactuaria com Bento, como não compactuava com Brás Cubas. Só que, diferente das Memórias, que nos deixam já de sobreaviso desde a epígrafe do livro, “para o verme”,
(...) nenhum aviso ao leitor, e o nosso encontro com o narrador não poderia ser mais confortavelmente casual. É como se ele também fosse alguém que acabássemos de encontrar num trem, assim como ele se encontra com o poeta principiante. Pode-se admitir que ele é um tanto excêntrico, um recluso que chegou ao ponto incrível de construir uma cópia de sua casa de infância no subúrbio. Porém, mesmo essa anormalidade, se assim pode ser chamada, é ressalvada pelo fato de ele se sentir constrangido pelo próprio capricho (...). Onde Brás Cubas desafia o leitor, propondo problemas que requerem soluções, e sugere claramente que o narrador é iludido a ponto de estar louco, Dom Casmurro faz de tudo para amenizar o caminho do leitor através do que, na verdade, é um campo minado. (GLEDSON, 1997, p. 23)
Claro que, lido como foi o livro até 1960, podemos imaginar que a técnica deu certo. Para Gledson, não era outro o objetivo de Machado com esse tipo de narrador, veículo de crítica ideológica. O romance acaba assim por descortinar um painel coerente da vida em sociedade do Brasil do século XIX. Mas o faz de maneira, podemos dizer novamente, “oblíqua e dissimulada”, pois parte da narração enganosa de um proprietário que se sente traído, sobretudo porque não compreende de maneira adequada as relações de mando e favor. O adultério, difícil de provar ou negar, é o que importaria menos, nesse contexto. Os silêncios “misteriosos” de Capitu, quando, em menina, refletia, concatenando idéias para atingir seus objetivos (“não aos saltos, mas aos saltinhos”), denunciam, ao narrador desavisado, sua culpa, já que, desde criança, se mostrara fria e calculista. Ela é, de fato, ambiciosa, ao contrário de Bento, que sempre teve tudo que queria e por isso pouca atenção precisava dar ao dinheiro. Porém a relação entre cálculo e adultério é ele quem faz.
Roberto Schwarz, em seu ensaio “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, publicado originalmente em Duas meninas, apropria-se de todas as discussões das obras críticas citadas e, como mais um “herdeiro de Caldwel ”, vai direcionar o olhar não mais para a possível traição, mas para as razões de por que, por mais de meio século, a crítica literária teria, quase que cegamente, acreditado nas palavras do narrador, endossando-a em seus estudos.
O livro tem algo de armadilha, com lição crítica incisiva – isso se a cilada for percebida como tal. Desde o início há incongruências, passos obscuros, ênfases desconcertantes, que vão formando um enigma. A eventual solução, sem ser propriamente difícil, tem custo alto para o espírito conformista, pois deixa mal um dos tipos de elite mais queridos da ideologia brasileira. Acaso ou não, só sessenta anos depois de publicado e muito reeditado o romance, uma professora norte-americana (por ser mulher? por se estrangeira? por ser talvez protestante?) começou a encarar a figura de Bento Santiago – o Casmurro – com o necessário pé atrás. É como se para o leitor brasileiro as implicações abjetas de certas formas de autoridade fossem menos visíveis. (SCHWARZ, 2006, p. 9)
Schwarz entende que a razão da fé irrestrita nas palavras de Bentinho explica-se pela própria classe do narrador:
Se a viravolta crítica não ocorre ao leitor, será porque este se deixa seduzir pelo prestígio poético e social da figura que está com a palavra. Aliás, como recusar simpatia a um cavalheiro distinto e sentimental, admiravelmente bem falante, um pouco desajeitado em questões práticas, sobretudo de dinheiro, sempre perdido em recordações da infância, da casa onde cresceu, do quintal, do poço, dos brinquedos e pregões antigos, venerador lacrimoso da mãe, além de obcecado pela primeira namorada? (SCHWARZ, 2006, p. 10)
Em Dom Casmurro
É neste terceiro que
O nosso cidadão acima de qualquer suspeita – o bacharel com bela cultura, o filho amantíssimo, o marido cioso, o proprietário abastado, avesso aos negócios, o arrimo da parentela, o moço com educação católica, o passadista refinado, o cavalheiro bel e époque – ficava ele próprio sob suspeição, credor de toda a desconfiança disponível. (SCHWARZ, 2006, p. 13)
Nesses estudos críticos apontados, Schwarz e Gledson mostram-se interessados na questão da impossibilidade do relacionamento amoroso entre o representante da classe abastada e a agregada, tema que reaparece na ficção machadiana com certa insistência e que tem
O salto artístico dado por Machado
Superavam-se as certezas edificantes próprias ao ciclo de formação da nacionalidade, certezas segundo as quais a atualização artística e a aquisição de aptidões literárias seriam serviços inquestionáveis prestados à pátria pelos seus dedicados homens cultos. Quando, pela primeira vez em nossas letras, com Machado de Assis, a inteligência da forma bem como as idéias modernas comparecem livres de inadequação e diminuição provinciana, já não é dentro do anterior espírito de missão. Por exemplo, os excelentes recursos intelectuais vinculados a Bento Santiago não representam uma contribuição a mais para civilização do país, e sim, ousadamente, a cobertura cultural da opressão de classe. (SCHWARZ, 2006, p. 13)
Para uma melhor apreensão de tais obras, é preciso levar em conta seus narradores, que, claramente, demonstram ter interesses de classe a cumprir e honrar, interesses muitas vezes obscuros e escusos, até mesmo para si próprios. A verdade, assim, jamais é dada de imediato, e talvez nem ao menos possa de fato ser alcançada em sua completude. Mas o que parece mais importante ressaltar é a curiosa capacidade de os narradores encontrarem ecos para seus pontos de vista nos corações e mentes de quem os lê, indício cabal de que Machado conhecia seu público, seus preconceitos e modos de entender a realidade, mais até do que talvez imaginemos. Com os estudos recentes sobre Dom Casmurro, percebemos com mais clareza esse procedimento, que, ao mesmo tempo em que desvela as contradições da sociedade, também atesta nossas próprias limitações, enquanto leitores, para percebê-las."
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Fonte:
WOLMYR AIMBERÊ ALCANTARA FILHO: "HISTÓRIA E POLÍTICA NO MEMORIAL DE AIRES, DE MACHADO DE ASSIS". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre
Nota:
A imagem (Machado de Assis: Biblioteca Nacional Digital do Brasil) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Dom Casmurro: O leitor entra no jogo
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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