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Casa onde morreu...

Vão a seguir algumas fotografias de locais onde alguns grandes vultos da história tombaram para sempre.
Casa onde morreu o escritor MACHADO DE ASSIS,  à Rua Cosme Velho, 42 (Rio de Janeiro), no dia 29 de setembro de 1908 - Arquivo Nacional, data imprecisa.
O Palácio do Itamarati, local onde morreu o grande diplomata BARÃO DO RIO BRANCO, na cidade do Rio de Janeiro, no dia 10 de fevereiro de 1912 - Fotografia de 1912
Casa onde morreu o PADRE CÍCERO, em Juazeiro do Norte, no dia 20 de julho de 1934 - Fotografia de 1944.
Casa onde morreu o jurista RUI BARBOSA, em Petrópolis (Rio de Janeiro), no dia 1 de março de 1923 - Fotografia de 1939.
Casa onde morreu o General OSÓRIO, no  Rio de Janeiro, no dia 4 de outubro de 1879 - Fotografia de 1929.
Casa onde morreu o militar revolucionário BENTO GONÇALVES, em  Pedras Brancas (Rio Grande do Sul), no dia 18 de julho de 1847 - Fotografia de 1934.
Casa onde morreu o escritor português EÇA DE QUEIRÓS, em  Neuilly-sur-Seine (França), no dia 16 de agosto de 1900 - Ilustração de 1922.
Casa onde morreu o navegador CRISTÓVÃO COLOMBO, em  Valladolid (Espanha), no dia 20 de Maio de 1506 - Imagem de 1941


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Fonte:
Revista O Cruzeiro - nº 08 - ano 1944
Revista da Semana - nº 051 - ano 1939.
Revista da Semana  - nº 044 - ano 1929.
A Noite - nº 314 - ano 1935.
Pelo Mundo - nº 07 - ano 1922.
Almanach Eu Sei Tudo - Ano 1941.

Machado de Assis e os críticos de seu tempo


O texto, a seguir, foi extraído da revista “Kosmos”, em sua edição nº 4, de abril do ano de 1909, portanto, um ano após a morte do nosso genial Machado de Assis. Trata-se de uma crítica feita ao nosso romancista, de autoria de um tal José Maria de A. Bello, cujo nome já  se perdeu no trânsito da história...
Segundo um pensamento atribuído a Sibelius: “Não devemos dar demasiada atenção ao que os críticos dizem. Nunca foi erguida uma estátua em honra de um crítico.” A crítica do nosso José Maria parece exemplificar em maestria esta importante reflexão. Lá pela tantas diz ele do grande Machado de Assis:  “Machado de Assis não teve e nem terá nunca uma larga repercussão no nosso meio”. Incrível como a crítica literária às vezes é tão burra e cega, baseando-se exclusivamente numa visão restrita ao seu tempo! Hoje Machado de Assis é a referência máxima de nossa literatura, sendo inclusive de elevado prestígio nos âmbitos literários em todo o mundo. Mais adiante diz ainda o mesmo crítico: “Machado de Assis não é nosso pois, não está na curva da nossa evolução intelectual...” Como se pode notar Machado de Assis não fora muito bem aceito por determinada elite tupiniquim, e sua condição social e étnica explicam um pouco esta aversão ao nosso gênio literário.
Machado é o nosso grande escritor e merece todos os méritos, pois, além de tudo, tornou-se num maravilhoso exemplo de uma pessoa verdadeiramente batalhadora, que lutou contra as intempéries da vida, que, no seu caso, era sua condição social humilde, sua cor e sua doença, a epilepsia. VIVA MACHADO DE ASSIS!!!


O enterro de Machado de Assis, em 1908
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Bem cedo, o grande morto do ano passado vai sendo esquecido.
A última vez, que se falou dele foi, parece-me, na bela conferencia do sr. Oliveira Lima, que o Jornal da Comércio nos deu integralmente.
No entanto, ninguém em nosso meio, como Machado de Assis, consegue despertar o interesse literário.
Nulo se o lê impunemente; é uma figura estranha entre nós.
Normalmente, a cultura brasileira não permitiria o seu aparecimento; ele paira numa esfera superior ao seu tempo e á sua raça.
Como se tem dito mais de uma vez, foi um grego ou um francês das antigas tradições, prendendo-se através de Anatole France e de Rénan ao grande século de Luiz XIV.
A obra literária representa, tanto quanto a personalidade do escritor, as idéias, os costumes, as aspirações ambientes; aquele se torna, inconscientemente, o mais alto expoente da inteligência e dos sentimentos do seu meio. Machado de Assis, não. Isola-se dos seus, foge a corrente da literatura nacional; pelo seu refinado intelectualismo, pela sua arte originalíssima é um produto esporádico, uma espécie de anomalia.
Se não tem escolas nem épocas literárias, a humanidade de, seus 1ivros não é propriamente uma humanidade ideal sem limites geográficos ou históricos. Neles se retrata urna sociedade, que já foi uma geração extinta, que nós, os novos, não conhecemos e quase não compreendemos hoje:
Não quer isto dizer que Machado de Assis tivesse sido um escritor de romances nacionais ou um novelista indígena, no estreito ponto de vista de Macedo ou de Alencar.
O Brasil se resumia para ele no Rio de Janeiro, onde, como  todos os centros cosmopolitas, as originalidades de raça se perdem, na imitação inconsciente das civilizações modelares.
Assim pois, ele colheu o homem na sua formação definitivas como um produto completo, de que não quis conhecer os fatores.
O mundo físico quase que não existe na sua arte; aproximando-se de Sthendal, neste ponto, o homem só lhe valia como uma complicada máquina cerebral, que ele psicólogo sutil se comprazia em movimentar.
Não foi um romancista; os seus livros não são romances, na acepção nítida e moderna do termo, depois de Flaubert e de Zola.
A ele, o senhor da suprema harmonia no estilo, o mestre querido da medida e da sobriedade literárias, faltava a lógica do conjunto, a arte, talvez um pouco mecânica, da confecção externas como lhe faltou também o talento descritivo  e o poder de imaginação.
E preciso aceitá-lo, tal qual se revelou, com os defeitos de suas virtudes.
Deixou-se influir muita pela liberdade de forma de De Maistre e, mais ainda, dos humoristas ingleses Sterne e Dichens foram de certo, seus ídolos literários.
Eu sei que a novela romântica ou os romances lógicos, medidas e justos de Flaubert, Zola e Bourget se tem tornado de unia banalidade fatigante, em França, sobretudo, onde os psicólogos subtis de anomalias sentimentais se multiplicam espantosamente.
Os livros de Anatole France demonstram a reação, que se vai fazendo em bem da graça, da bula e da sobriedade, que são os apanágios eternos do espírito francês.
Entretanto não creio que “Thais”  ou os “Contes de Jacques Tournebroche” representem a forma definitiva e vitoriosa da literatura.
Na intensidade da vida moderna, o intelectualismo se aniquila; a arte se torna, inevitavelmente, utilitária e democrática.
O romance tende pois a se resumir numa espécie de monografia científica, num estudo breve e incisivo de patologia social ou humana.
Mas nós não passamos pela fase primeira. Machado de Assis é pois, um prematuro na nossa evolução literária e, sobretudo, um entranho.
Ninguém foi menos nacional do que ele. Não sentiu nunca a influencia deletéria, para a arte, da natureza violenta dos trópicos.
De origem humilde, mestiça e tipógrafo, jornalista e burocrata depois, dir-se-ia que se encerrava em si mesmo, criando-se um mundo intangível e a parte.Sua timidez congênita seu bom gosto inato salvaram-no.
Num país, em que o estilo é a pompa, a adjetivação desvairada, a frase voluptuosa e quente, que causam arrepios de volúpia e calafrios de gozo, foi um sóbrio e um harmônico.
Colocando-se alguém, num ponto de vista de critica dogmática não o compreenderia. Com a sua timidez, no ambiente social, em que viveu, deveria ter feito unia literatura de comendador solene e besta.
Mestre de sua língua respirando a atmosfera envenenada por um século de romntisrno, seria antes um retórico genial ao modo de Ruy Barbosa.
No encanto, nem uma nem outra coisa. Mesmo nos seus primeiros livros, em “Helena”, em “Histórias sem data”, ou em “Papeis avulsos”, eivados ainda de certas ficções românticas, o artista impecável de “Braz de Cubas”, ou de Dom Casmurro, se revela já, na ironia amarga e suave, simultaneamente, na psicologia aguda, na limpidez do estilo e sobretudo na correção da língua.
O cético e o humorista da “Teoria do medalhão”, e do “Alienista” valem bem o cético e o humorista do “Braz Cubas”, que é, sem dúvida, a sua obra prima.
Para conhece-lo, é suficiente talvez ler esse livro de ouro, relê-lo duas, três vezes nas entrelinhas, nos capítulos, que não escreveu... enfim, nas suas subtilezas todas, na sua ironia branda, no seu pessimismo, que ele embalde, tenta ocultar.
Não lhe esqueçamos o fim: “não tive filhos, não transmitir  a nenhuma criatura o legado de nossa mesina...”
Como ele próprio o diz, foi este o único saldo que Braz Cubas encontrou na morte ou no outro lado do mistério.
Esta historia singela sem episódios românticos, espécie de diário de uma vida burguesa e vulgar é, no fundo, um livro doloroso e triste, o livro de um descrente, quase uma apologia da inércia.
É preciso censura-lo por isso? Não. Machado foi sincero, a sua filosofia, que, no dizer do sr, O. Lima, consiste no modo de ver e compreender o universo, era aquela.
E quem poderá dizer que não seja a verdadeira e negar a inanidade de todos os esforços a eterna importância humana?
Spencer nos “Primeiros Princípios”, depois da sistematização genial de urna filosofia viril e triunfante, cabe na dúvida, que lhe é um desmentido, na descrença, que é uma irmã da inércia.
Quando se lê Machado de Assis, um pesar único se tem; o de não ter descido mais na análise de nossas misérias, de não ter desnudado melhor a alma humana, que tão bem soube conhecer:
Machado de Assis, psicólogo de raça, não teve nunca esta grande vista de conjunto, este poder de síntese e de generalização filosóficos, um pouco dogmáticas talvez, que constituem o grande mérito de Zola, por exemplo. Sua critica se contenta em ferir de leve; não quis descer ao ámago das cousas.
Parece que o abismo da alma humana lhe causa medo e que a animalidade nossa lhe produz um movimento intinctivo de poder delicado e feminismo.
Está no seu gênio de tímido, de uma timidez sincera, senhora um pouco excessiva e que foi sempre um braço característico de si. Já se disse algures que essa timidez era um produto de sua vida banal de burocrata; traria assim para os seus livros um reflexo do convencionalismo e de respeito às causas aceitas, às hierarquias sociais.
Foi um pouco injusta a critica; ela he era orgânica. Se se lhe fosse buscar uma origem qualquer, seria, de certo, no seu ceticismo, no seu desprezo de artista pela imbecilidade humana. Com maior verdade se disse de Machado de Assis, que encontra um certo prazer em zombar do seu leitor, Sente-se-lhe o riso mudo nas entrelinhas, não o riso sarcástico e irreverente de Eça ou o ritus amargurado de Schopenhauer; é antes um riso piedoso e condescendente de avô cético...
A tolice nossa não lhe causa os gritos de revolta, o desespero agressivo de Eça de Queiroz; quando muito, lhe faz aflorar um ligeiro sorriso. É um paralelo interessante a se fazer, este, entre as dois maiores escritores da nossa língua. Dotados ambos de igual poder de observação, no entanto, a diferença entre os seus temperamentos e processos de artistas, é radical e profunda.
Eça, nervoso e irreverente, iconoclasta por índole e pela educação, chicoteou impiedosamente todo um povo, Caricaturista genial de uma sociedade degenerada, não conhecem limites à ironia, excedendo-se, por vezes, em prejuízo de sua impassibilidade superior de artista.
O cretino ou o imbecil lhe causam desespero e ódio. Temperamento de combate, violento e implacável, senhor de uma língua, que foi sua unicamente, mais do que escreveu, fotografou, mais de que romances de costumes, fez processos dessa sociedade de Acácios, Pachecos e Gouvarinhos, que foi portuguesa e é nossa hoje. Elegante e requintado, vivendo nas civilizações superiores do velho mundo, foi o maior patriota do seu tempo. Regenerou pelo ridículo, destruiu um mundo pela ironia. Machado de Assis, tão argusto e mais amargo do que seu confrade portuguuês, não teria nunca esse jacobinismo destruidor, essa irreverência atrevida, que já dizia João do Ega, é uma condição de progresso.
Ele fere, sem deixar a chaga sangrenta da autor dos “Maias”; a sua ironia é como um estilete agudo, que mal se sente. Faltava-lhe a ousadia de prosélito; não tentaria nunca destruir a ordem das cousas, aceitando a imbecilidade ambiente com uma bonomia de aparência ao menos.
Foi puramente, absurdamente, um intelectual nesta terra em que o intelectualismo é uma palavra vã, uma ficção para uso externo, nas conferencias de um patriota, como o sr. Oliveira Lima, fazendo indiretamente uma piedosa propaganda de sua gente...
Em casa se pode ser mais franco...  Machado de Assis não teve e nem terá nunca uma larga repercussão no nosso meio; sua obra foi superior á nossa cultura, estranha ao nosso gosto.
A nossa democracia, niveladora e exagerada, é impiedosa para as cousas de espírito, como aliás a são todas as democracias. Estigmatizadas de origem, com uma perniciosa educação política, sem vida social, asfixiados, sob a violência da natureza, numa fase ainda de formação e, assim, de imitação inconsciente, a nossa literatura tem de ser o que é, genuíno produto de todos esses fatores, uma literatura incolor, sem relevos, oscilando entre o indigenismo banal de Alencar e a obra vibrante, porém desarmônica de Coelho Neto, como seus melhores tipos, de um lado, e o plágio servil dos livros franceses, de outro lado.
Machado de Assis não é nosso pois, não está na curva da nossa evolução intelectual, de que o gênio do sr, Ruy Barboza é o ponto supremo.
O outro ático, que se lhe aproxima, o sr. Joaquim Nabuco, explica-se. Viveu longe do nosso meio, sentiu de perto o contágio indelével de Rénan, é um filho direto da cultura francesa. A campanha abolicionista, que o trouxe á rua á multidão ruidosa e bárbara, não conseguiu avilta-lo como artista, nobilitando-o, como homem.
Para ser justo, poderia excetuar ainda, Raul Pompéia, o grande artista do “Ateneu”,  talvez o livro mais perfeito da nossa literatura, e hoje os srs. Graça Aranha e Euclides da Cunha.
Mas esses dois últimos representam outra corrente literária, a da preocupação social, dos altos problemas da vida, invadindo a arte, mostrando-lhe a função futura e nobilíssima; assim me não é permitido estuda-los aqui, de afogadilho, nos modestos limites, que a mim próprio tracei. “Canaã” e, sobretudo, os “Sertões” são livros de sábios e de sociólogos.
O sr, Oliveira Lima não disse essas cousas, que todos nós sentimos.
Falando perante um auditório estrangeiro, s. exa. quis mostrar Machado de Assis, em si somente, através de seus livros e de sua vida íntima. Não lhe importou a anomalia, que ele representa nas nossas letras.
Sobre o escritor dificilmente algo se poderia dizer de novo, maximé depois dos estudos do erudito sr, José Veríssimo e da conferência do nosso digno diplomata.
Relendo-lhe a obra e esta conferência, fui tentado a dizer as minhas impressões, todas pessoais, sem pretensões a crítica dogmática, já se vê...
Eu sei bem que é uma irreverência, quase uma afronta a sua memória sagrada a nós todos, mas ele, que, como “Braz Cubas”, se encontra, agora, no outro lado do mistério, de certo, me perdoará, na sua condescendência de sempre, embora lhe sinta o sorriso cético e piedoso e mais este “incomensurável desdém dos mortos”...

Rio — Agosto —  1909.
JOSÉ MARIA DE A. BELLO

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Fonte do texto:
Revista "Kosmos", ano VI, nº 4, abril de 1909, disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil

Machado de Assis e a liberdade religiosa

Embora fosse católico, Machado de Assis nutria de grande tolerância por qualquer religião. Em uma de suas deliciosas crônicas, de 22 de novembro de 1864, publicada num jornal carioca, ele faz menção de um caso ocorrido naquele mesmo ano, no qual um vendedor de Bíblia, um evangélico metodista, quase que foi linchado por uma turba católica (na época o catolicismo era religião oficial do Brasil). Machado critica veementemente o jornal católico “O Cruzeiro”, que condenou o governo por este ter protegido o vendedor contra a ira popular: “Nada do que diz o Cruzeiro é novo; mas nem por isso deixa de ser lamentável que se imprimam coisas tais em um país onde a liberdade religiosa, se não é completa, está já adiantada”. No dia 29 de novembro do mesmo ano, ele fez uma dura crítica à constituição vigente na época: “O defeito da constituição está em não ter completado a liberdade, tirando os entraves que lhe impõe, e em declarar a religião católica como religião do Estado”. E continua: “No dia em que se tiver saído da tolerância para a liberdade completa, teremos dado o último passo neste assunto. Que os leitores me permitam a figura, - a tolerância assemelha-se a uma gaiola de papagaio, aberta por todos os lados, sem aparências mesmo de gaiola, mas onde a ave fica presa por uma corrente que lhe vem do pé ao poleiro. Quebre-se a corrente, uma vez por todas, e dê-se a liberdade ao pobre animal. Um sistema político como o nosso que, a pretexto de proteger os rouxinóis, protege cem papagaios por cada rouxinol, parece incrível que nutra tanta aversão a este judicioso conselho”.

É isso!

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Fonte da imagem:
Revista BA-TA-CLAN, edição de 1867, disponível digitalmente no site da biblioteca: Brasiliana - USP

Capítulo dos Chapéus


Como já havíamos escrito acerca dos chapéus, é sabido que durante décadas foi ele um utensílio que revelava inclusive a classe social de seu possuidor. O conto, a seguir, intitulado "Capítulo dos Chapéus", do nosso genial escritor Machado de Assis, gira em torno desse objeto que caracterizou toda uma época, assim como foi a peruca no século XVII na França. Na fina ironia de Machado de Assis, a escolha de um chapéu não é lá uma tarefa assim tão simples, em vez disso, ela é regida por um "princípio metafísico", que não se dá mediante um ato voluntário: "— A escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um princípio metafísico. Não cuide que quem compra um chapéu exerce uma ação voluntária e livre; a verdade é que obedece a um determinismo obscuro. A ilusão da liberdade existe arraigada nos compradores, e é mantida pelos chapeleiros que, ao verem um freguês ensaiar trinta ou quarenta chapéus, e sair sem comprar nenhum, imaginam que ele está procurando livremente uma combinação elegante. O princípio metafísico é este: — o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab æterno; ninguém o pode trocar sem mutilação. E uma questão profunda que ainda não ocorreu a ninguém. Os sábios têm estudado tudo desde o astro até o verme, ou, para exemplificar bibliograficamente, desde Laplace... Você nunca leu Laplace? desde Laplace e a Mecânica celeste até Darwin e o seu curioso livro das Minhocas, e, entretanto, não se lembraram ainda de parar diante do chapéu e estudá-lo por todos os lados. Ninguém advertiu que há uma metafísica do chapéu. Talvez eu escreva uma memória a este respeito. São nove horas e três quartos; não tenho tempo de dizer mais nada; mas você reflita consigo, e verá... Quem sabe? pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu..."

Mas, vamos ao Machado e aos chapéus...

Machado de Assis: “Capítulo dos Chapéus”


Géronte
Dans quel chapitre, s'il
vous plaît?
Sganarelle
Dans le chapitre des
chapeaux.
Moliére.

Musa, canta o despeito de Mariana, esposa do bacharel Conrado Seabra, naquela
manhã de abril de 1879. Qual a causa de tamanho alvoroço? Um simples chapéu, leve, não deselegante, um chapéu baixo. Conrado, advogado, com escritório na rua da Quitanda, trazia-o todos os dias à cidade, ia com ele às audiências; só não o levava às recepções, teatro lírico, enterros e visitas de cerimônia. No mais era constante, e isto desde cinco ou seis anos, que tantos eram os do casamento. Ora, naquela singular manhã de abril, acabado o almoço, Conrado começou a enrolar um cigarro, e Mariana anunciou sorrindo que ia pedir-lhe uma coisa.

— Que é, meu anjo?
— Você é capaz de fazer-me um sacrifício?
— Dez, vinte...
— Pois então não vá mais à cidade com aquele chapéu.
— Por quê? é feio?

— Não digo que seja feio; mas é cá para fora, para andar na vizinhança, à tarde ou à noite, mas na cidade, um advogado, não me parece que...

— Que tolice, iaiá!
— Pois sim, mas faz-me este favor, faz?

Conrado riscou um fósforo, acendeu o cigarro, e fez-lhe um gesto de gracejo, para desconversar; mas a mulher teimou. A teima, a princípio frouxa e súplice, tornou-se logo imperiosa e áspera. Conrado ficou espantado. Conhecia a mulher; era, de ordinário, uma criatura passiva, meiga, de uma plasticidade de encomenda, capaz de usar com a mesma divina indiferença tanto um diadema régio como uma touca. A prova é que, tendo tido uma vida de andarilha nos últimos dois anos de solteira, tão depressa casou como se afez aos hábitos quietos. Saía às vezes, e a maior parte delas por instâncias do próprio consorte; mas só estava comodamente em casa. Móveis, cortinas, ornatos supriam-lhe os filhos; tinha-lhes um amor de mãe; e tal era a concordância da pessoa com o meio, que ela saboreava os trastes na posição ocupada, as cortinas com as dobras do costume, e assim o resto. Uma das três janelas, por exemplo, que davam para a rua vivia sempre meio aberta; nunca era outra. Nem o gabinete do marido escapava às exigências monótonas da mulher, que mantinha sem alteração a desordem dos livros, e até chegava a restaurá-la. Os hábitos mentais seguiam a mesma uniformidade. Mariana dispunha de mui poucas noções, e nunca lera senão os mesmo livros: — a Moreninha de Macedo, sete vezes; Ivanhoé e o Pirata de Walter Scott, dez vezes; o Mot de l'énigme, de Madame Craven, onze vezes.

Isto posto, como explicar o caso do chapéu? Na véspera, à noite, enquanto o marido fora a uma sessão do Instituto da Ordem dos Advogados, o pai de Mariana veio à casa deles. Era um bom velho, magro, pausado, ex-funcionário público, ralado de saudades do tempo em que os empregados iam de casaca para as suas repartições. Casaca era o que ele, ainda agora, levava aos enterros, não pela razão que o leitor suspeita, a solenidade da morte ou a gravidade da despedida última, mas por esta menos filosófica, por ser um costume antigo. Não dava outra, nem da casaca nos enterros, nem do jantar às duas horas, nem de vinte usos mais. E tão aferrado aos hábitos, que no aniversário do casamento da filha, ia para lá às seis horas da tarde, jantado e digerido, via comer, e no fim aceitava um pouco de doce, um cálice de vinho e café. Tal era o sogro de Conrado; como supor que ele aprovasse o chapéu baixo do genro? Suportava-o calado, em atenção às qualidades da pessoa; nada mais. Acontecera-lhe, porém, naquele dia, vê-lo de relance na rua, de palestra com outros chapéus altos de homens públicos, e nunca lhe pareceu tão torpe. De noite, encontrando a filha sozinha, abriu-lhe o coração; pintou-lhe o chapéu baixo como a abominação das abominações, e instou com ela para que o fizesse desterrar.

Conrado ignorava essa circunstância, origem do pedido. Conhecendo a docilidade da mulher, não entendeu a resistência; e, porque era autoritário, e voluntarioso, a teima veio irritá-lo profundamente. Conteve-se ainda assim; preferiu mofar do caso; falou-lhe com tal ironia e desdém, que a pobre dama sentiu-se humilhada. Mariana quis levantar-se duas vezes; ele obrigou-a a ficar, a primeira pegando-lhe levemente no pulso, a segunda subjugando-a com o olhar. E dizia, sorrindo:

— Olhe, iaiá, tenho uma razão filosófica para não fazer o que você me pede. Nunca lhe disse isto; mas já agora confio-lhe tudo.

Mariana mordia o lábio, sem dizer mais nada; pegou de uma faca, e entrou a bater com ela devagarinho para fazer alguma coisa; mas, nem isso mesmo consentiu o marido, que lhe tirou a faca delicadamente, e continuou:

— A escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um princípio metafísico. Não cuide que quem compra um chapéu exerce uma ação voluntária e livre; a verdade é que obedece a um determinismo obscuro. A ilusão da liberdade existe arraigada nos compradores, e é mantida pelos chapeleiros que, ao verem um freguês ensaiar trinta ou quarenta chapéus, e sair sem comprar nenhum, imaginam que ele está procurando livremente uma combinação elegante. O princípio metafísico é este: — o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab æterno; ninguém o pode trocar sem mutilação. E uma questão profunda que ainda não ocorreu a ninguém. Os sábios têm estudado tudo desde o astro até o verme, ou, para exemplificar bibliograficamente, desde Laplace... Você nunca leu Laplace? desde Laplace e a Mecânica celeste até Darwin e o seu curioso livro das Minhocas, e, entretanto, não se lembraram ainda de parar diante do chapéu e estudá-lo por todos os lados. Ninguém advertiu que há uma metafísica do chapéu. Talvez eu escreva uma memória a este respeito. São nove horas e três quartos; não tenho tempo de dizer mais nada; mas você reflita consigo, e verá... Quem sabe? pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu...

Mariana venceu-se afinal, e deixou a mesa. Não entendera nada daquela nomenclatura áspera nem da singular teoria; mas sentiu que era um sarcasmo, e, dentro de si, chorava de vergonha. O marido subiu para vestir-se; desceu daí a alguns minutos, e parou diante dela com o famoso chapéu na cabeça. Mariana achou-lho, na verdade, torpe, ordinário, vulgar, nada sério. Conrado despediu-se cerimoniosamente e saiu.

A irritação da dama tinha afrouxado muito; mas, o sentimento de humilhação subsistia. Mariana não chorou, não clamou, como supunha que ia fazer; mas, consigo mesma, recordou a simplicidade do pedido, os sarcasmos de Conrado, e, posto reconhecesse que fora um pouco exigente, não achava justificação para tais excessos. Ia de um lado para outro, sem poder parar; foi à sala de visitas, chegou à janela meio aberta, viu ainda o marido, na rua, à espera do bond, de costas para casa, com o eterno e torpíssimo chapéu na cabeça. Mariana sentiu-se tomada de ódio contra essa peça ridícula; não compreendia como pudera suportá-la por tantos anos. E relembrava os anos, pensava na docilidade dos seus modos, na aquiescência a todas as vontades e caprichos do marido, e perguntava a si mesma se não seria essa justamente a causa do excesso daquela manhã.

Chamava-se tola, moleirona; se tivesse feito como tantas outras, a Clara e a Sofia, por exemplo, que tratavam os maridos como eles deviam ser tratados, não lhe aconteceria nem metade nem uma sombra do que lhe aconteceu. De reflexão em reflexão, chegou à idéia de sair. Vestiu-se, e foi à casa da Sofia, uma antiga companheira de colégio, com o fim de espairecer, não de lhe contar nada.

Sofia tinha trinta anos, mais dois que Mariana. Era alta, forte, muito senhora de si. Recebeu a amiga com as festas do costume; e, posto que esta lhe não dissesse nada, adivinhou que trazia um desgosto e grande. Adeus, planos de Mariana! Daí a vinte minutos contava-lhe tudo. Sofia riu dela, sacudiu os ombros; disse-lhe que a culpa não era do marido.

— Bem sei, é minha, concordava Mariana.
— Não seja tola, iaiá! Você tem sido muito mole com ele. Mas seja forte uma vez; não faça caso; não lhe fale tão cedo; e se ele vier fazer as pazes, diga-lhe que mude primeiro de chapéu.
— Veja você, uma coisa de nada...
— No fim de contas, ele tem muita razão; tanta como outros. Olhe a pamonha da Beatriz; não foi agora para a roça, só porque o marido implicou com um inglês que costumava passar a cavalo de tarde? Coitado do inglês! Naturalmente nem deu pela falta. A gente pode viver bem com seu marido, respeitando-se, não indo contra os desejos um do outro, sem pirraças, nem despotismo. Olhe; eu cá vivo muito bem com o meu Ricardo; temos muita harmonia. Não lhe peço uma coisa que ele me não faça logo; mesmo quando não tem vontade nenhuma, basta que eu feche a cara, obedece logo. Não era ele que teimaria assim por causa de um chapéu! Tinha que ver! Pois não! Onde iria ele parar! Mudava de chapéu, quer quisesse, quer não.

Mariana ouvia com inveja essa bela definição do sossego conjugal. A rebelião de Eva embocava nela os seus clarins; e o contato da amiga dava-lhe um prurido de independência e vontade. Para completar a situação, esta Sofia não era só muito senhora de si, mas também dos outros; tinha olhos para todos os ingleses, a cavalo ou a pé. Honesta, mas namoradeira; o termo é cru, e não há tempo de compor outro mais brando. Namorava a torto e a direito, por uma necessidade natural, um costume de solteira. Era o troco miúdo do amor, que ela distribuía a todos os pobres que lhe batiam à porta: — um níquel a um, outro a outro; nunca uma nota de cinco mil-réis, menos ainda uma apólice. Ora este sentimento caritativo induziu-a a propor à amiga que fossem passear, ver as lojas, contemplar a vista de outros chapéus bonitos e graves. Mariana aceitou; um certo demônio soprava nela as fúrias da vingança. Demais, a amiga tinha o dom de fascinar, virtude de Bonaparte, e não lhe deu tempo de refletir. Pois sim, iria, estava cansada de viver cativa. Também queria gozar um pouco, etc., etc.

Enquanto Sofia foi vestir-se, Mariana deixou-se estar na sala, irrequieta e contente consigo mesma. Planeou a vida de toda aquela semana, marcando os dias e horas de cada coisa, como numa viagem oficial. Levantava-se, sentava-se, ia à janela, à espera da amiga.

— Sofia parece que morreu, dizia de quando em quando.

De uma das vezes que foi à janela, viu passar um rapaz a cavalo. Não era inglês, mas lembrou-lhe a outra, que o marido levou para a roça, desconfiado de um inglês, e sentiu crescer-lhe o ódio contra a raça masculina — com exceção, talvez, dos rapazes a cavalo. Na verdade, aquele era afetado demais; esticava a perna no estribo com evidente vaidade das botas, dobrava a mão na cintura, com um ar de figurino. Mariana notou-lhe esses dois defeitos; mas achou que o chapéu resgatava-os; não que fosse um chapéu alto; era baixo, mas próprio do aparelho eqüestre. Não cobria a cabeça de um advogado indo gravemente para o escritório, mas a de um homem que espairecia ou matava o tempo.

Os tacões de Sofia desceram a escada, compassadamente. Pronta! disse ela daí a pouco, ao entrar na sala. Realmente, estava bonita. Já sabemos que era alta. O chapéu aumentava-lhe o ar senhoril; e um diabo de vestido de seda preta, arredondando-lhe as formas do busto, fazia-a ainda mais vistosa. Ao pé dela, a figura de Mariana desaparecia um pouco. Era preciso atentar primeiro nesta para ver que possuía feições mui graciosas, uns olhos lindos, muita e natural elegância. O pior é que a outra dominava desde logo; e onde houvesse pouco tempo de as ver, tomava-o Sofia para si. Este reparo seria incompleto, se eu não acrescentasse que Sofia tinha consciência da superioridade, e que apreciava por isso mesmo as belezas do gênero Mariana, menos derramadas e aparentes. Se é um defeito, não me compete emendá-lo.

— Onde vamos nós? perguntou Mariana.
— Que tolice! vamos passear à cidade... Agora me lembro, vou tirar o retrato; depois vou ao dentista. Não; primeiro vamos ao dentista. Você não precisa de ir ao dentista?
— Não.
— Nem tirar o retrato?
— Já tenho muitos. E para quê? para dá-lo "àquele senhor"?

Sofia compreendeu que o ressentimento da amiga persistia, e, durante o caminho, tratou de lhe pôr um ou dois bagos mais de pimenta. Disse-lhe que, embora fosse difícil, ainda era tempo de libertar-se. E ensinava-lhe um método para subtrair-se à tirania. Não convinha ir logo de um salto, mas devagar, com segurança, de maneira que ele desse por si quando ela lhe pusesse o pé no pescoço. Obra de algumas semanas, três a quatro, não mais. Ela, Sofia, estava pronta a ajudá-la. E repetia-lhe que não fosse mole, que não era escrava de ninguém, etc. Mariana ia cantando dentro do coração a marselhesa do matrimônio.

Chegaram à rua do Ouvidor. Era pouco mais do meio-dia. Muita gente, andando ou parada, o movimento do costume. Mariana sentiu-se um pouco atordoada, como sempre lhe acontecia. A uniformidade e a placidez, que eram o fundo do seu caráter e de sua vida, receberam daquela agitação os repelões do costume. Ela mal podia andar por entre os grupos, menos ainda sabia onde fixasse os olhos, tal era a confusão das gentes, tal era a variedade das lojas. Conchegava-se muito à amiga, e, sem reparar que tinham passado a casa do dentista, ia ansiosa de lá entrar. Era um repouso; era alguma coisa melhor do que o tumulto.

— Esta rua do Ouvidor! ia dizendo.
— Sim? respondia Sofia, voltando a cabeça para ela e os olhos para um rapaz que estava na outra calçada.

Sofia, prática daqueles mares, transpunha, rasgava ou contornava as gentes com muita perícia e tranqüilidade. A figura impunha; os que a conheciam gostavam de vê-la outra vez; os que não a conheciam paravam ou voltavam-se para admirar-lhe o garbo. E a boa senhora, cheia de caridade, derramava os olhos à direita e à esquerda, sem grande escândalo, porque Mariana servia a coonestar os movimentos. Nada dizia seguidamente; parece até que mal ouvia as respostas da outra; mas falava de tudo, de outras damas que iam ou vinham, de uma loja, de um chapéu... Justamente os chapéus, — de senhora ou de homem, — abundavam naquela primeira hora da rua do Ouvidor.

— Olha este, dizia-lhe Sofia.

E Mariana acudia a vê-los, femininos ou masculinos, sem saber onde ficar, porque os demônios dos chapéus sucediam-se como num caleidoscópio. Onde era o dentista? perguntava ela à amiga. Sofia só à segunda vez lhe respondeu que tinham passado a casa; mas já agora iriam até ao fim da rua; voltariam depois. Voltaram finalmente.

— Uf! respirou Mariana entrando no corredor.
— Que é, meu Deus? Ora você! Parece da roça...

A sala do dentista tinha já algumas freguesas. Mariana não achou entre elas uma só cara conhecida, e para fugir ao exame das pessoas estranhas, foi para a janela. Da janela podia gozar a rua, sem atropelo. Recostou-se; Sofia veio ter com ela. Alguns chapéus masculinos, parados, começaram a fitá-las; outros, passando, faziam a mesma coisa. Mariana aborreceu-se da insistência; mas, notando que fitavam principalmente a amiga, dissolveu-se-lhe o tédio numa espécie de inveja. Sofia, entretanto, contava-lhe a história de alguns chapéus, — ou, mais corretamente, as aventuras. Um deles merecia os pensamentos de Fulana; outro andava derretido por Sicrana, e ela por ele, tanto que eram certos na rua do Ouvidor às quartas e sábados, entre duas e três horas. Mariana ouvia aturdida. Na verdade, o chapéu era bonito, trazia uma linda gravata, e possuía um ar entre elegante e pelintra, mas...

— Não juro, ouviu? replicava a outra, mas é o que se diz.

Mariana fitou pensativa o chapéu denunciado. Havia agora mais três, de igual porte e graça, e provavelmente os quatro falavam delas, e falavam bem. Mariana enrubesceu muito, voltou a cabeça para o outro lado, tornou logo à primeira atitude, e afinal entrou.

Entrando, viu na sala duas senhoras recém-chegadas, e com elas um rapaz que se levantou prontamente e veio cumprimentá-la com muita cerimônia. Era o seu primeiro namorado.

Este primeiro namorado devia ter agora trinta e três anos. Andara por fora, na roça, na Europa, e afinal na presidência de uma província do sul. Era mediano de estatura, pálido, barba inteira e rara, e muito apertado na roupa. Tinha na mão um chapéu novo, alto, preto, grave, presidencial, administrativo, um chapéu adequado à pessoa e às ambições. Mariana, entretanto, mal pôde vê-lo. Tão confusa ficou, tão desorientada com a presença de um homem que conhecera em especiais circunstâncias, e a quem não vira desde 1877, que não pôde reparar em nada. Estendeu-lhe os dedos, parece mesmo que murmurou uma resposta qualquer, e ia tornar à janela, quando a amiga saiu dali.

Sofia conhecia também o recém-chegado. Trocaram algumas palavras. Mariana, impaciente, perguntou-lhe ao ouvido se não era melhor adiar os dentes para outro dia; mas a amiga disse-lhe que não; negócio de meia hora a três quartos. Mariana sentia-se opressa: a presença de um tal homem atava-lhe os sentidos, lançava-a na luta e na confusão. Tudo culpa do marido. Se ele não teimasse e não caçoasse com ela, ainda em cima, não aconteceria nada. E Mariana, pensando assim, jurava tirar uma desforra. De memória contemplava a casa, tão sossegada, tão bonitinha, onde podia estar agora, como de costume, sem os safanões da rua, sem a dependência da amiga...

— Mariana, disse-lhe esta, o Dr. Viçoso teima que está muito magro. Você não acha que está mais gordo do que no ano passado?... Não se lembra dele no ano passado?

Dr. Viçoso era o próprio namorado antigo, que palestrava com Sofia, olhando muitas vezes para Mariana. Esta respondeu negativamente. Ele aproveitou a fresta, para puxá-la à conversação; disse que, na verdade, não a vira desde alguns anos. E sublinhava o dito com um certo olhar triste e profundo. Depois abriu o estojo dos assuntos, sacou para fora o teatro lírico. Que tal achavam a companhia? Na opinião dele era excelente, menos o barítono; o barítono parecia-lhe cansado. Sofia protestou contra o cansaço do barítono, mas ele insistiu, acrescentando que, em Londres, onde o ouvira pela primeira vez, já lhe parecera a mesma coisa. As damas, sim, senhora; tanto o soprano como o contralto eram de primeira ordem. E falou das óperas, citava os trechos, elogiou a orquestra, principalmente nos Huguenotes... Tinha visto Mariana na última noite, no quarto ou quinto camarote da esquerda, não era verdade?

— Fomos, murmurou ela, acentuando bem o plural.
— No Cassino é que a não tenho visto, continuou ele.
— Está ficando um bicho-do-mato, acudiu Sofia rindo.

Viçoso gostara muito do último baile, e desfiou as suas recordações; Sofia fez o mesmo às dela. As melhores toilettes foram descritas por ambos com muita particularidade; depois vieram as pessoas, os caracteres, dois ou três picos de malícia; mas tão anódina, que não fez mal a ninguém. Mariana ouvia-os sem interesse; duas ou três vezes chegou a levantar-se e ir à janela; mas os chapéus eram tantos e tão curiosos, que ela voltava a sentar-se. Interiormente, disse alguns nomes feios à amiga; não os ponho aqui por não serem necessários, e, aliás, seria de mau gosto desvendar o que esta moça pôde pensar da outra durante alguns minutos de irritação.

— E as corridas do Jockey Club? perguntou o ex-presidente.

Mariana continuava a abanar a cabeça. Não tinha ido às corridas naquele ano. Pois perdera muito, a penúltima, principalmente; esteve animadíssima, e os cavalos eram de primeira ordem. As de Epsom, que ele vira, quando esteve em Inglaterra, não eram melhores do que a penúltima do Prado Fluminense. E Sofia dizia que sim, que realmente a penúltima corrida honrava o Jockey Club. Confessou que gostava muito; dava emoções fortes. A conversação descambou em dois concertos daquela semana; depois tomou a barca, subiu a serra e foi a Petrópolis, onde dois diplomatas lhe fizeram as despesas da estadia. Como falassem da esposa de um ministro, Sofia lembrou-se de ser agradável ao ex-presidente, declarando-lhe que era preciso casar também porque em breve estaria no ministério. Viçoso teve um estremeção de prazer, e sorriu, e protestou que não; depois, com os olhos em Mariana, disse que provavelmente não casaria nunca... Mariana enrubesceu muito e levantou-se.

— Você está com muita pressa, disse-lhe Sofia. Quantas são? continuou voltando-se para Viçoso.
— Perto de três! exclamou ele.

Era tarde; tinha de ir à câmara dos deputados. Foi falar às duas senhoras, que acompanhara, e que eram primas suas, e despediu-se; vinha despedir-se das outras, mas Sofia declarou que sairia também. Já agora não esperava mais. A verdade é que a idéia de ir à câmara dos deputados começara a faiscar-lhe na cabeça.

— Vamos à câmara? propôs ela à outra.
— Não, não, disse Mariana; não posso, estou muito cansada.
— Vamos, um bocadinho só; eu também estou muito cansada...

Mariana teimou ainda um pouco; mas teimar contra Sofia, — a pomba discutindo com o gavião, — era realmente insensatez. Não teve remédio, foi. A rua estava agora mais agitada, as gentes iam e vinham por ambas as calçadas, e complicavam-se no cruzamento das ruas. De mais a mais, o obsequioso ex-presidente flanqueava as duas damas, tendo-se oferecido para arranjar-lhes uma tribuna.

A alma de Mariana sentia-se cada vez mais dilacerada de toda essa confusão de coisas. Perdera o interesse da primeira hora; e o despeito, que lhe dera forças para um vôo audaz e fugidio, começava a afrouxar as asas, ou afrouxara-as inteiramente. E outra vez recordava a casa, tão quieta, com todas as coisas nos seus lugares, metódicas, respeitosas umas com as outras, fazendo-se tudo sem atropelo, e, principalmente, sem mudança imprevista. E a alma batia o pé, raivosa... Não ouvia nada do que o Viçoso ia dizendo, conquanto ele falasse alto, e muitas coisas fossem ditas para ela. Não ouvia, não queria ouvir nada. Só pedia a Deus que as horas andassem depressa. Chegaram à câmara e foram para uma tribuna. O rumor das saias chamou a atenção de uns vinte deputados, que restavam, escutando um discurso de orçamento. Tão depressa o Viçoso pediu licença e saiu, Mariana disse rapidamente à amiga que não lhe fizesse outra.

— Que outra? perguntou Sofia.
— Não me pregue outra peça como esta de andar de um lugar para outro feito maluca. Que tenho eu com a câmara? que me importam discursos que não entendo?

Sofia sorriu, agitou o leque e recebeu em cheio o olhar de um dos secretários. Muitos eram os olhos que a fitavam quando ela ia à câmara, mas os do tal secretário tinham uma expressão mais especial, cálida e súplice. Entende-se, pois, que ela não o recebeu de supetão; pode mesmo entender-se que o procurou curiosa. Enquanto acolhia esse olhar legislativo ia respondendo à amiga, com brandura, que a culpa era dela, e que a sua intenção era boa, era restituir-lhe a posse de si mesma.

— Mas, se você acha que a aborreço não venha mais comigo, concluiu Sofia. E, inclinando-se um pouco:
— Olhe o ministro da justiça.

Mariana não teve remédio senão ver o ministro da justiça. Este agüentava o discurso do orador, um governista, que provava a conveniência dos tribunais correcionais, e, incidentemente, compendiava a antiga legislação colonial. Nenhum aparte; um silêncio resignado, polido, discreto e cauteloso. Mariana passeava os olhos de um lado para outro, sem interesse; Sofia dizia-lhe muitas coisas, para dar saída a uma porção de gestos graciosos. No fim de quinze minutos agitou-se a câmara, graças a uma expressão do orador e uma réplica da oposição. Trocaram-se apartes, os segundos mais bravos que os primeiros, e seguiu-se um tumulto, que durou perto de um quarto de hora.

Essa diversão não o foi para Mariana, cujo espírito plácido e uniforme, ficou atarantado no meio de tanta e tão inesperada agitação. Ela chegou a levantar-se para sair; mas, sentou-se outra vez. Já agora estava disposta a ir ao fim, arrependida e resoluta a chorar só consigo as suas mágoas conjugais. A dúvida começou mesmo a entrar nela. Tinha razão no pedido ao marido; mas era caso de doer-se tanto? era razoável o espalhafato? Certamente que as ironias dele foram cruéis; mas, em suma, era a primeira vez que ela lhe batera o pé, e, naturalmente, a novidade irritou-o. De qualquer modo porém, fora um erro ir revelar tudo à amiga. Sofia iria talvez contá-lo a outras... Esta idéia trouxe um calafrio a Mariana; a indiscrição da amiga era certa; tinha-lhe ouvido uma porção de histórias de chapéus masculinos e femininos, coisa mais grave do que uma simples briga de casados. Mariana sentiu necessidade de lisonjeá-la, e cobriu a sua impaciência e zanga com uma máscara de docilidade hipócrita. Começou a sorrir também, a fazer algumas observações, a respeito de um ou outro deputado, e assim chegaram ao fim do discurso e da sessão.

Eram quatro horas dadas. Toca a recolher, disse Sofia; e Mariana concordou que sim, mas sem impaciência, e ambas tornaram a subir a rua do Ouvidor. A rua, a entrada no bond completaram a fadiga do espírito de Mariana, que afinal respirou quando viu que ia caminho de casa. Pouco antes de apear-se a outra, pediu-lhe que guardasse segredo sobre o que lhe contara; Sofia prometeu que sim.

Mariana respirou. A rola estava livre do gavião. Levava a alma doente dos encontrões, vertiginosa da diversidade de coisas e pessoas. Tinha necessidade de equilíbrio e saúde. A casa estava perto; à medida que ia vendo as outras casas e chácaras próximas, Mariana sentia-se restituída a si mesma. Chegou finalmente; entrou no jardim, respirou. Era aquele o seu mundo; menos um vaso, que o jardineiro trocara de lugar.

— João, bota este vaso onde estava antes, disse ela.

Tudo o mais estava em ordem, a sala de entrada, a de visitas, a de jantar, os seus quartos, tudo. Mariana sentou-se primeiro, em diferentes lugares, olhando bem para todas as coisas, tão quietas e ordenadas. Depois de uma manhã inteira de perturbação e variedade, a monotonia trazia-lhe um grande bem, e nunca lhe pareceu tão deliciosa. Na verdade, fizera mal... Quis recapitular os sucessos e não pôde; a alma espreguiçava-se toda naquela uniformidade caseira. Quando muito, pensou na figura do Viçoso, que achava agora ridícula, e era injustiça. Despiu-se lentamente, com amor, indo certeira a cada objeto. Uma vez despida, pensou outra vez na briga com o marido. Achou que, bem pesadas as coisas, a principal culpa era dela. Que diabo de teima por causa de um chapéu, que o marido usara há tantos anos? Também o pai era exigente demais...

— Vou ver a cara com que ele vem, pensou ela.

Eram cinco e meia; não tardaria muito. Mariana foi à sala da frente, espiou pela vidraça, prestou o ouvido ao bond, e nada. Sentou-se ali mesmo com o Ivanhoe nas palmas, querendo ler e não lendo nada. Os olhos iam até o fim da página, e tornavam ao princípio, em primeiro lugar, porque não apanhavam o sentido, em segundo lugar, porque uma ou outra vez desviavam-se para saborear a correção das cortinas ou qualquer outra feição particular da sala. Santa monotonia, tu a acalentavas no teu regaço eterno.

Enfim, parou um bond; apeou-se o marido; rangeu a porta de ferro do jardim. Mariana foi à vidraça, e espiou. Conrado entrava lentamente, olhando para a direita e a esquerda, com o chapéu na cabeça, não o famoso chapéu do costume, porém outro, o que a mulher lhe tinha pedido de manhã. O espírito de Mariana recebeu um choque violento, igual ao que lhe dera o vaso do jardim trocado, — ou ao que lhe daria uma lauda de Voltaire entre as folhas da Moreninha ou de Ivanhoe... Era a nota desigual no meio da harmoniosa sonata da vida. Não, não podia ser esse chapéu. Realmente, que mania a dela exigir que ele deixasse o outro que lhe ficava tão bem? E que não fosse o mais próprio, era o de longos anos; era o que quadrava à fisionomia do marido... Conrado entrou por uma porta lateral. Mariana recebeu-o nos braços.

— Então, passou? perguntou ele, enfim, cingindo-lhe a cintura.
— Escuta uma coisa, respondeu ela com uma carícia divina, bota fora esse; antes o outro.

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Fonte:
ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884, disponível digitalmente no site: Domínio Público

Fonte da imagem:
Revista "Para Todos", edição de 1923,
disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil

Machado de Assis por seus contemporâneos: Euclides da Cunha


EUCLIDES DA CUNHA (1866-1909)
Euclides da Cunha nasceu nasceu em Cantagalo, Rio de janeiro, no dia 20 de janeiro de 1866, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 15 de agosto de 1909. Foi jornalista, engenheiro, professor, ensaísta, historiador, sociólogo e poeta, autor da famosa obra “Os Sertões”, escrita por ocasião da Guerra de Canudos, no fim do século XIX. O site daAcademia Brasileira de Letras,em sua Biografia, discorre sobre a questão: “Quando irrompeu o movimento de Canudos, São Paulo colaborou com o país na repressão do conflito, mandando para o teatro da luta o Batalhão Paulista. Euclides foi encarregado pelo jornal Estado de S. Paulo para acompanhar como observador de guerra o movimento rebelde chefiado por Antônio Conselheiro no arraial de Canudos, em pleno sertão baiano. Estava ele no teatro de operações de 1o a 5 de outubro de 1897 e ali assistiu aos últimos dias da luta do Exército com os fanáticos de Antonio Conselheiro. Em Salvador, havia procedido a um profundo estudo prévio da situação no que respeita aos aspectos geográfico, botânico e zoológico da região, bem como aos antecedentes sociológicos do conflito. Documentou-se de modo exaustivo e exato, formando sobre o caso um juízo imparcial e objetivo. Enviou então para o jornal as suas reportagens, que iriam transformar-se no seu grande livro, Os sertões.”


Machado de Assis aos 25 anos

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A última visita

Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o triste desenlace da sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dava o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras ontem meninas que ele carregava nos braços carinhosos, hoje nobilíssimas mães de famílias comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados nos álbuns caprichosos. As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a palidez completa no recinto onde a saudade glorificava uma existência, além da morte.

No salão de visitas viam-se alguns discípulos dedicados, também aparentemente tranqüilos.

E compreendia-se desde logo a antilogia de corações tão ao parecer tranqüilos na iminência de uma catástrofe. Era o contágio da própria serenidade incompatível e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário escritor. Realmente, na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um gemido e uma contração mais viva o sofrimento, Apressava-se em pedir desculpas aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um descuido ou involuntário deslize. Timbravam em sua primeira e última dissimualação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo de sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir, e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranqüila e soberana.

E gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heróico na morte...

Desapontamento. Mas aquela placidez augusta despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Octavio, comentários divergentes. Resumia-os um amargo desapontamento. De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu as outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas –, que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional.

Era pelo menos desanimador tanto descaso – a cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade de uma existência complexa – quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem 40 anos de literatura gloriosa...

Neste momento, precisamente ao anunciar-se esse juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada.

Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 ou 18 anos, no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dize-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus Livros, que o encantavam. Por isso, ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o pensamento de visita-lo. Relutara contra essa idéia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograva vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se lhe não era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas de seu estado.

E o anônimo juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.

A porta, José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.

Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.

Ele saiu – e houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma transfiguração.

No fastígio de certos estados morais concretizam-se às vezes as maiores idealizações.

Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade...

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Fonte:
Publicado no Jornal do Commercio em 30 de setembro de 1908 (também a imagem) estão
disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil

Machado de Assis por seus contemporâneos: Araripe Júnior



ARARIPE JÚNIOR (1848-1911)
Araripe Júnior nasceu na cidade de Fortaleza, no Estado do ceará, no ano de 27 de junho de 1848, e faleceu na capital do Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 1911. Foi um conhecido crítico literário. Segundo consta em sua Biografia publicada no site da Academia Brasileira de Letras: “Não é o ficcionista, mas o crítico literário que constitui a importância de Araripe Júnior na literatura brasileira. Dotado de grande sensibilidade para o fato estético e de grande acuidade para a análise; dono de vasta cultura geral e literária, aplicou-se a estudar a literatura brasileira na obra de seus autores representativos: José de Alencar, Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo, e outros. Assim, deixou vasta obra crítica, formando com Sílvio Romero e José Veríssimo a trindade crítica da época positivista e naturalista. Sua obra crítica, dispersa pelos periódicos, desde os tempos do Ceará, só em parte foi publicada em livro, durante sua vida. No último livro, Ibsen e o espírito da tragédia (1911), sem abandonar a preocupação nacionalista, alçou-se a um plano de universalidade, buscando a razão de ser da tragédia humana, através da obra dos grandes trágicos, da Grécia ao século XIX. Como crítico, era um conselheiro amável e cheio de compreensão, sobretudo pelos estreantes.”



Escultura de Machado de Assis

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Sobre Machado de Assis, de Sílvio Romero

O último trabalho de tomo, dado aos prelos por Sílvio Romero, foi um estudo sobre Machado de Assis.

Um fenômeno curioso é o que se nota nesse estudo. Sílvio Romero, a cada instante, declara que mudou de temperamento, amainou as velas e acha-se predisposto a uma grande complacência. Machado de Assis não lhe parece ser o homem impossível que ele atacava em 1872 e 1880. Tem qualidades e representa um bom esforço literário. Todas estas declarações, porém, são ilusórias; e o crítico, que, segundo me parece, não quis concentrar o seu espírito na obra, já bastante extensa, do autor de Brás Cubas, faz ressurgir suas antigas antipatias, recorrendo ao seu processo predileto de esbordoar os outros com essa clava de Hércules chamada Tobias Barreto.

Com justa razão, geralmente se achou extravagante que o crítico escolhesse o falecido lente de criminologia do Recife para confrontar com o nosso, pode-se dizer, único humorista. Se ainda o fizesse para mostrar o contraste dessas duas naturezas, vá; mas não se deu isto: o autor da História da Literatura Brasileira pretendeu, antes de tudo, mostrar que Tobias era um humorista valente e incomparável, diante das deliqüescências de Machado de Assis.

Não sei se deva dizer que o que ali se expende, a respeito do autor de Dias e Noites, causou a impressão de um corpo estranho metido à força numa garrafa de azeite. O livro, na sua maior parte, repete o que Sílvio Romero já disse vinte vezes sobre o talento indisputável do grande sergipano; apenas acrescenta algumas novas considerações relativas ao seu temperamento alegre. Tobias, porém, podia ser tudo, menos um humorista; e nem ao crítico apadrinham as opiniões de Schérer e Taine, quando definem esse gênero de literatura.

Que pode haver de comum entre esse excentricismo ou humorismo anglosaxônio e a alegria ruidosa de Tobias? Conheci o ilustre morto nos seus melhores tempos; e posso garantir, pelo que observei e tenho lido desse autor, que nunca, sobre a Terra, pisou homem de alma menos tristonha. Tobias era um boêmio incorrigível, genial, talvez, para cujo temperamento maligno nada havia superior, em deleite, ao exercício do espírito de tropa. Nas questões mais intricadas e sérias, raro era que ele não desse largas ao seu gênio e, de súbito, não irrompesse em verdadeiras molecagens para fazer encavacar os seus antagonistas. Ainda tenho presente uma dessas troças. Examinavam um estudante em direito eclesiástico, e Tobias, no impedimento de um dos catedráticos, fazia parte da mesa-examinadora. Perguntara o lente da cadeira, ao examinando, o que era cardeal. "Cardeal", disse o rapaz, "é uma dignidade da igreja que fica metida entre o Papa e o bispo". Como era natural, o examinador irritou-se com a resposta e começou a invectivar a ignorância do estudante. Tobias ouvira tudo isto sorrindo e puxando um bigode hirsuto. De súbito, brilharam-lhe os olhos! Dirigiu-se, então, ao colega, e, interrompendo-o: "Perdão; agora, eu..." E virou-se para o argüido: "Diga, Sr. estudante, que o seu professor não lhe quer revelar a verdade verdadeira. Respondeu bem. Cardeal é uma espécie de intruso na igreja, que lambe os pés do Papa, enquanto não lhe chega a vez de ser lambido, e que olha de esguelha para o bispo, cuja autoridade não exerce, por ser eunuco, nem respeita, por ser safado. E há outras coisas mais que essa dignidade acumula; mas que só no compêndio de Bocácio o senhor terá ocasião de aprender, logo que se liberte desse direito espoliástico."

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Fonte:
Fragmento de “Sílvio Romero Polemista”. In: ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Araripe Júnior: teoria, crítica e história. Seleção e apresentação de Alfredo Bosi. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Edusp, 1978, (também a imagem), estão
disponível digitalmente no site da Biblioteca Nacional Digital do Brasil