Ciência, racismo e preconceito

Dentre as muitas tolices que já li da galerinha de Darwin na Internet, uma foi essa:

“A ciência não abre margem ao racismo.”

Obviamente na mente dessa pessoa a ciência em última instância seria uma entidade totalmente isenta das influências políticas e sociais da sociedade em que está inserida; seria, portanto, uma instituição acima de qualquer preconceito, e que, por seu caráter ímpar, não estaria sujeita à mácula do racismo.

Bem, embora esta visão simplista, romântica e distorcida da ciência tenha sido partilhada por muita gente, diante da realidade histórica, ela se desmonta completamente, pois como bem diz Lewontin:

“O problema com o qual a ciência lida, as idéias que ela usa para investigar esses problemas, até mesmo os resultados científicos, tão alardeados, decorrentes da investigação científica, são todos profundamente influenciados por predisposições que derivam da sociedade na qual nós vivemos. Os cientistas não começam as suas vidas como cientistas e como seres sociais imersos na família, no Estado, na estrutura produtiva, e suas visões da natureza são feitas através das lentes que foram moldadas por suas experiências sociais" (LEWONTIN, 1992, p. 4).

Outro cientista (e esse um respeitado darwinista) que também desmistifica o papel da ciência na sociedade, é Stephen Jay Gould. Em seu recomendadíssimo livro “
A Falsa Medida do Homem”, ele deixa patente sua posição em relação ao assunto:

“Este livro procura demonstrar a debilidade científica e os contextos políticos dos argumentos deterministas. Contudo, não pretendo estabelecer um contraste entre deterministas perversos, que se afastam do caminho da objetividade científica, e antideterministas esclarecidos, que abordam os dados com mente aberta e, portanto, enxergam a verdade. Em vez disso, critico o mito que diz ser a ciência uma empresa objetiva, que se realiza adequadamente apenas quando os cientistas conseguem libertar-se dos condicionamentos da sua cultura e encarar o mundo como ele realmente é.
Entre os cientistas, foram poucos os ideólogos conscientes que tomaram partido nessa disputa. Os cientistas não têm necessidade de se tornar apologistas explícitos de sua classe ou cultura para refletir esses insidiosos aspectos da vida. Não é minha intenção afirmar que os deterministas biológicos eram maus cientistas ou que estavam sempre errados, mas, antes, a crença de que a ciência deve ser entendida como um fenômeno social, como uma empresa corajosa, humana, e não como o trabalho de robôs programados para recolher a informação pura. Além disso, apresento esta concepção como uma nota de advertência para a ciência, não como um lúgubre epitáfio para uma nobre esperança sacrificada sobre o altar das limitações humanas.
A ciência, uma vez que deve ser executada por seres humanos, é uma atividade de cunho social. Seu progresso se faz por meio do pressentimento, da visão e da intuição. Boa parte das transformações que sofre ao longo do tempo não corresponde a uma aproximação da verdade absoluta, mas antes a uma alteração das circunstâncias culturais, que tanta influência exercem sobre ela. Os fatos não são fragmentos de informação puros e imaculados; a cultura também influencia o que vemos e o modo como vemos. Além disso, as teorias não são induções inexoráveis obtidas a partir dos fatos. As teorias mais criativas com frequência são visões imaginativas aplicadas aos fatos, e a imaginação também deriva de uma fonte marcadamente cultural.
Acho que este argumento, embora ainda constitua um anátema para muitas pessoas dedicadas à atividade científica, seria aceito de bom grado pela maior parte dos historiadores da ciência. Ao propô-lo, contudo, não me coloco ao lado de uma extrapolação hoje bastante difundida em determinados círculos de historiadores: a tese puramente relativista de que a modificação científica apenas reflete a modificação dos contextos sociais, de que a verdade é uma noção vazia de significado quando considerada fora de uma dada premissa cultural, e de que a ciência, portanto, não é capaz de fornecer respostas duradouras.
Na condição de cientista praticante, compartilho o credo de meus colegas: acredito que existe uma realidade concreta e que a ciência pode nos fornecer informações sobre essa realidade, embora o faça muitas vezes de maneira obtusa e irregular. Não foi durante um debate abstraio sobre o movimento lunar que mostraram a Galileu os instrumentos de tortura. As suas ideias ameaçaram o argumento convencional invocado pela Igreja para justificar a estabilidade social e doutrinária: a ordem estática do mundo, com os planetas girando em torno da Terra, os sacerdotes subordinados ao Papa e os servos ao seu senhor. Mas a Igreja não tardou em fazer as pazes com a cosmologia de Galileu. Não havia outra escolha; a Terra realmente gira em torno do Sol.

[...]

Em segundo lugar, muitas questões são formuladas pêlos cientistas de maneira tão restrita que qualquer resposta legítima só pode confirmar uma preferência social. Boa parte do debate sobre as diferenças raciais no que diz respeito à capacidade mental, por exemplo, baseava-se na premissa de que a inteligência é uma coisa que existe na cabeça. Enquanto essa crença não foi eliminada, nenhuma acumulação de dados foi capaz de abalar a firme tradição ocidental de ordenar elementos relacionados na forma de uma cadeia do ser de caráter hierárquico.
A ciência não consegue escapar à sua curiosa dialética. Apesar de estar inserida numa cultura, ela pode se tornar um agente poderoso no questionamento e até mesmo na subversão das premissas que a sustentam. A ciência pode oferecer informações para reduzir o desequilíbrio entre dados e importância social. Os cientistas podem esforçar-se por identificar os pressupostos culturais do seu ofício e indagar como as respostas seriam formuladas a partir de premissas diferentes. Os cientistas podem propor teorias criativas capazes de forçar seus atónitos colegas a rever procedimentos até então inquestionáveis. Mas o potencial da ciência como instrumento para a identificação dos condicionamentos culturais que a determinam só poderá ser completamente desenvolvido quando os cientistas abrirem mão do duplo mito da objetividade e do avanço inexorável rumo à verdade. Na realidade, é preciso que conheçamos bem nossos próprios defeitos antes de apontarmos os de outrem. Uma vez reconhecidos, esses defeitos deixam de ser impedimentos e tornam-se instrumentos do saber” (p. 5, 6).

Fonte:
Stephen Jay Gould. "A
Falsa Medida do Homem". Editora Martins Fontes. São Paulo, 1991.

Ainda neste mesmo livro, Gould demonstra com exemplos históricos que a ciência não é uma entidade que por si mesma faz a verdade triunfar. Ela é feita por pessoas com posições ideológicas firmes; pessoas as quais podem manipular dados “científicos” a fim de corroborar suas “verdades”, suas crenças e seus preconceitos. Ele faz menção, por exemplo, de vários nomes (criacionistas e darwinistas) de cientistas os quais a seu tempo defenderam posições racistas em nome da ciência, tais como: Louis Agassiz, George Morton, Francis Galton, Paul Broca, Lombroso, Lewis M. Terman, Goddard, R.M. Yerkes, Sir Cyril Burt, Chlarles Spearman, L.L. Thrstone, Arthur Jensen, Charles Darwin, entre outros. Todos esses fizeram de algum modo uso de dados “científicos” para justificar suas ideologias, bem como o sentimento de que pertenciam a uma classe “superior”.

Referindo-se à relação entre ciência e racismo no Brasil (em “Quase pretos, quase brancos"), a antropóloga Lilia Schwarcz faz menção do próprio evolucionismo como fator de influência.
Escreve ela:

“Aqui, o que houve? Um casamento de teorias que em outros lugares acabaria em desastre. Claro que são as teorias do evolucionismo com as teorias mais deterministas raciais, porque o determinismo racial supõe o quê? Não há como misturar. O evolucionismo prevê o quê? A idéia de que certas misturas podem ser benéficas e outras não. Há uma seleção. Não foi uma cópia, mas uma tradução”.

E, discorrendo, por exemplo, sobre o preconceito da ciência em relação aos epiléticos, aqui no Brasil, a historiadora a Margarida de Souza Neves (da PUC-RJ) faz este alerta:

"Nosso estudo é importante para analisar qualquer preconceito, que pode estar presente em pessoas comuns e médicos que lidam com doenças crônicas como hanseníase, AIDS, hepatite, herpes, entre outras que ainda estigmatizam seus portadores”. Segundo ela, a epilepsia foi e continua sendo uma doença fortemente marcada por preconceitos: ”Ao desconhecer a etiologia da doença, os médicos do século 19 associavam a epilepsia a questões morais, ao controle dos corpos, e mesmo a uma propensão inata ao crime”.

Por tudo isso tentar atribuir à ciência uma isenção quanto às influências da sociedade, é tão é tão verdade quanto atribuir verdade ao mito da mula-sem-cabeça. Lembrando ainda o mau uso da ciência por ditadores cruéis como Stalin e Hitler.

É isso!

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