Escrevendo acerca dos defensores do determinismo genético, ou seja, dos que postulam que determinados comportamentos humanos sejam meros resultados da ação dos genes, Marcel Blanc sintetiza, em “Os Herdeiros de Darwin”, um pouco da fragilidade desta falácia:
“Eles não têm, na maioria das vezes, nenhuma prova direta de que este ou aquele comportamento examinado é determinado geneticamente. Apenas, postulam-no por uma necessidade da teoria. Por exemplo, se a guerra intertribal permite a um grupo propagar seus genes de modo mais eficaz (após o extermínio do grupo rival), então deve haver genes da guerra da conquista. Mas com este tipo de raciocínio pode-se ir longe. Wilson, por exemplo, supõe que há nos seres humanos genes para a homossexualidade, a crença em Deus, a disposição para se deixar doutrinar ou para se conformar com a opinião da maioria. Pode-se da mesma forma supor que existem genes que predispõem a trabalhar, a fazer política, comércio, filosofia, poesia..., uma vez que os seres humanos fazem tudo isso há muito tempo e que sempre podemos imaginar que todas essas atívidades beneficiam a sobrevivência do grupo social (e a propagação dos genes pre-senlrs nesse grupo).
Na verdade, nenhum estudo demonstrou que existe um determinismo genético de algum traço, mesmo que seja da personalidade humana. Os únicos estudos que poderiam ter um valor de demonstração aos olhos dos geneticistas são os que tratam dos gêmeos univitelinos separados. Estes tem exatamente o mesmo patrimônio genético e, se forem separados suficientemente cedo (como consequência de problemas familiares), pode-se tentar ver se seu desempenho intelectual, se seus traços de personalidade (introversão, humor, etc.) são influenciados prioritariamente por sua família adotiva ou por seu patrimônio genético. Em geral, os estudos sobre gêmeos univitelinos separados têm demonstrado que há uma grande semelhança em seu desempennho e em seus traços de personalidade sugerindo a preponderância da hereditariedade sobre o meio de adocão. O que leva muitos cientistas a dizerem que o determinismo genético da inteligência e dos traços de personalidade é, portanto, muito forte. Porém, o psicólogo americano L. Kamim demonstrou claramente que, na maior parte desses estudos, os gêmeos univitelinos não eram realmente separados (por exemplo, eram hospedados por famílias da vizinhança, logo, viam-se com frequência, etc.). Além disso, como assinalou o geneticista R. Lewontin, nenhum desses estudos é suficientemente rigoroso: não há realmente diversidade nos meios de adocão dos gêmeos univitelinos separados, de maneira que a semelhança de comportamento pode ser atribuída a uma semelhança de seus respectivos ambientes” (Editora Scritta, 1994, p. 202, 203).
Outro que também teceu duras críticas ao determinismo genético, foi Ulisses Capozolli, diretor (na época) da revista Scientific American Brasil, numa entrevista concedida a Claudio Tognolli, em seu livro “A falácia Genética”:
TOGNOLLI: Como o senhor tem lido as notícias que relatam, por exemplo, a descoberta de “genes do homicídio":
CAPOZOLLI: Eu acho que há duas questões aí. A primeira é um esforço, uma tentativa, de localizar as coisas como se você as pontuasse geograficamente, na verdade uma visão reducionista da ciência, você vai num determinado lugar, abre uma arca e as coisas estão todas ali, e você tira, e não expõe aos olhos digamos devassadores da ciência. Não se leva em conta o balanço das coisas, do mundo. O gene é como qualquer coisa do mundo, tem uma história, ele é produto de uma história, ele é moldado numa interação com o ambiente, por exemplo. E nada disso é novo. Esse tipo de coisa não é considerado, isto é, dizer que algo é genético é fazer uma simplificação, você coloca dentro dessas questões e você retira disso todo um processo histórico, como se não tivesse espaço, história, ambiente, memória, não tem nada, é um negócio que está ali. Isso é um pouco parecido com a visão cartesiana do universo, um sistema de mecanismos de relógio, e quando Isaac Newton chega e diz há uma força agindo à distância, eles o chamam de bruxo, porque a coisa não batia com a visão cartesiana. O outro lado dessa questão é uma reação da ciência moderna contra a visão teológica, você tinha uma visão do mundo, na Idade Média, e quando a revolução científica se manifesta no século XVII houve uma nova disposição. Foi muito interessante isso, no sentido de varrer toda a falsa ciência. Então, por exemplo, toda a vez que aparecia um cometa as igrejas tocavam os sinos e os poderosos e os pobres, todos com peso de consciência, iam lá, especialmente os ricos, e faziam as doações e a Igreja aceitava, se bem que o mundo fosse acabar. Então vejamos, quando Newton anuncia o princípio de gravitação, há um ordenamento no cosmos e ao mesmo tempo são varridos todos esses demónios do obscurantismo. Mas toda essa racionalização do mundo faz uma figura muito genérica, muito ampla, e você escamoteia uma série de questões. O problema do vitalismo, por exemplo: você tem duas árvores, uma viva e a outra morta. O que uma árvore viva tem que a morta não tem mais? Tem uma energia vital, e a isso o velho Aristóteles responderia sem dificuldades. Se você fizer a mesma pergunta para alguém hoje, a pessoa vai te responder o seguinte: que o fungo matou, que o pesticida matou, que a praga matou, mas escamoteia a resposta, vai te dizer do que ela morreu, mas não era essa a tua pergunta. Então eu acho que com o gene aconteceu a mesma coisa, a ideia do vitalismo foi varrendo e chegamos na estrutura genética. Então temos agora essa visão puramente mecanicista e reducionista da vida. Existe um certo receio hoje de se olhar para outras possibilidades, e na cabeça dessas pessoas o outro extremo é a ideia de Deus, o do que o Papa ou o Pastor falam. Temos hoje um confinamento num par de pólos opostos. Você não tem uma visão intermediária no meio disso que evoque o profundo mistério do mundo. Então eu acho que essa é uma dificuldade da imprensa mas é também uma dificuldade da academia, especialmente de uma academia com uma tradição e uma herança positivista como a nossa" (Escrituras Editora, 2003, 218, 219).
Igualmente Stephen Jay Gould, que sempre se mostrou um severo crítico da "ideologia do DNA". Por exemplo, em seu livro “Darwin e os Grandes Enigmas da Vida”, escreveu:
“Os partidários do determinismo biológico asseveram que a ciência pode deslindar todo um emaranhado de superstições e sentimentalismos e instruir-nos sobre nossa verdadeira natureza. Suas afirmações, porém, têm tido um efeito diferente: são usadas pêlos líderes de sociedades de classes estratificadas para afirmar que uma ordem social vigente deve prevalecer porque é uma lei da natureza. Naturalmente que nenhuma opinião deve ser rejeitada porque não gostamos de suas implicações. A verdade, como a entendemos, deve ser o critério primeiro. No entanto, as asserções dos deterministas sempre acabaram mostrando-se especulações preconceituosas e não fatos comprovados — a antropologia criminal de Lombroso é o melhor exemplo que conheço” (p. 220).
“Uma vez mais o determinismo biológico faz alarde, cria uma onda de debates e conversas inconsequentes e desaparece por falta de provas. Por que somos tão fascinados por hipóteses que envolvem disposição inata? Por que o desejo de impingir a responsabilidade por nossa violência e sexismo em nossos genes? A marca registrada da humanidade não é só nossa capacidade mental, é também nossa flexibilidade mental. Fizemos o mundo e podemos mudá-lo” (p. 225).
“Quais seriam, então, as razões não-científicas que favoreceram o ressurgimento do determinismo biológico? Variam, suspeito eu, de metas vulgares como o pagamento de polpudos royalties a best sellers a tentativas perniciosas de reintroduzir o racismo como ciência respeitável. Seu denominador comum deve estar em nosso mal-estar atual. É muito satisfatório descarregar a responsabilidade pela guerra e violência em nossos ancestrais, presumivelmente carnívoros. É muito conveniente culpar os pobres e famintos por sua condição — antes que nos vejamos forçados a culpar nosso sistema econômico ou nosso governo pelo fracasso abjeto em garantir uma vida decente para todos. E que argumento conveniente para aqueles que controlam o governo e que, por sinal, fornecem o dinheiro de que precisa a ciência para sua própria existência!” (Editora Martins Fontes, 1999, p. 236).
E, por fim, Nélio Bizzo, que destila "venenosamente" sua ironia sobre os sociobiólogos darwinistas:
"Dentro dessa ótica, o comportamento social humano seria apenas e tão somente o resultado da expressão de genes incrustrudos em nosso material genético, que a seleção natural teria cuidado de apurar com o decorrer das gerações. Seria possível agora entender a disputa entre Aquiles e Agamenon, na llíada, por uma bela escrava, e porque os filhos nascidos dessas conquistas eram tolerados pelas esposas legítimas, sendo homens livres e utilizando o nome do pai biológico.
A “psicologia evolucionista” poderia até mesmo transformar em paradigma biológico, verdadeiro objetivo perseguido pela natureza, a mulher grega da época heróica de Homero, a reprodutora que cuida da casa, dos filhos e das escravas, que o marido transforma em concubinas a seu bel-prazer. Da mesma forma, a prostituição, protegida pelo Estado em Atenas, poderia também ser um imperativo biológico. Os jônios, quem diria, poderiam agora ter seu comportamento sexual e sua organização social explicados pela “nova ciência” e, ainda por cima, verem-se transformados em exemplos modelares da evolução biológica do comportamento moral.
É bem verdade que esta não seria a primeira tentativa. Basta lembrar que há pouco mais de vinte anos manchetes anunciavam uma nova ciência e um livro revolucionário: “Sociobiologia: A nova síntese”. Seu autor, Edward Wilson, de Harvard, pretendia explicar os comportamentos sociais humanos, e a própria organização social, sob a ótica do darwinismo.
Os supostos genes que determinariam a riqueza dos indivíduos, posição social, sucesso empresarial e até mesmo a cultura (!), profetizados na época pela sociobiologia, provaram ser apenas mais um exercício de ficção científica ou de proselitismo ideológico” ("Darwinismo, ciência e ideologia”. In: “Pesspectivas em Epistemologia e História das Ciências”. Universidade Estadual de Feira de Santana, 1997).
É isso!
É isso!
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