Bipedismo: um típico exemplo de especulação darwinista - II

Ainda sobre as especulações relacionadas ao bipedismo, em seu livro “Os Herdeiros de Darwin”, Marcel Blanc faz alguns interessantes comentários sobre o cenário criado por Lovejoy (um dos muitos), baseado no sucesso reprodutivo, via monogamia e família nuclear. Escreveu ele:

“O cenário proposto por Owen Lovejoy parte da constatação de que as espécies de grandes macacos eram muitas e difundidas em toda parte, tanto na Europa como na Ásia, durante o Mioceno entre -25 milhões e -5 milhões de anos (portanto, a partir do nascimento da linhagem hominídea)...

De acordo com ele, a chave encontra-se nas estratégias reprodutivas dessas diferentes espécies. Os pequenos macacos geram em média de duas a três vezes mais filhotes que os grandes macacos durante sua vida adulta. Logo, não é de surpreender, diz Lovejoy, que as populações dos primeiros tenham suplantado as dos últimos. Como a linhagem hominídea não teve essa triste sorte, logo, era preciso que tivesse alguma vantagem em sua estratégia reprodutiva em relação aos grandes macacos.

Como a espécie humana pôde ser mais reprodutiva em descendentes que os grandes macacos, uma vez que a duração de sua vida reprodutiva é quase a mesma (de 20 a 25 anos), que trazem ao mundo apenas um descendente de cada vez e a duração dos cuidados paternos é mais prolongada no homem que no chimpanzé? É porque, responde Lovejoy, a distância entre nascimentos é menor no Homo sapiens: é apenas de 2,5 ao invés de 3 anos, no chimpanzé. Portanto, ao todo, para uma duração de vida reprodutiva igual, a espécie humana é capaz de produzir mais descendentes. Mas como o homem ou, antes, seus ancestrais chegaram a este resultado? É aqui que intervém o surgimento do bipedismo. Lovejoy acredita, como Darwin, que ele permite efetivamente liberar as mãos da tarefa da locomoção. Mas não para fazer armas ou ferramentas, uma vez que estas só apareceram muito depois, como comprovam os arquivos fósseis (lembreinos que a data de nascimento da linhagem hominídea é de -7 a -5 milhões de anos e que as primeiras pedras talhadas surgiram somente há -2,5 milhões de anos). Segundo Lovejoy, a vantagem do bipedismo consistiu em permitir aos machos levar m suas mãos o alimento para prover suas fêmeas e seus filhos...

O cenário de Lovejoy apresenta alguns aspectos verossimilhantes (iremos retomá-lo) e outros extremamente forçados (como a história da interrupção do aleitamento em prol do mingau de cereais pré-mastigados pelos pais!). Nisso lembra as histórias que contam os sociobiólogos. Aliás, ele tem em comum com a sociobiologia a insistência no valor adaptativo de um comportamento, o de aprovisionamento das fêmeas e de seus filhotes pelos machos, correlacionado à monogamia. Na realidade, isso quer dizer que este comportamento, assim como o modelo da família nuclear, foi fixado no patrimônio genético dos primeiros hominídeos. Lovejoy o diz expressa- mente na conclusão de seu artigo publicado na Science de 1981: seu cenário sobre a origem do bipedismo “dá conta da família nuclear humana”, ou seja, tal como é hoje. Em outros termos, supõe realmente que a monogamia e a família nuclear estão inscritas no patrimônio genético humano. Como no caso da sociobiologia, uma explicação ultradarwinista da origem do bipedismo faz com que concebamos, portanto, uma natureza humana determinada geneticamente.

Diversas críticas foram feitas contra o cenário proposto por Lovejoy e publicadas na forma de cartas à revista americana Science. Em primeiro lugar, parece que seus números sobre a distância dos nascimentos no homem e o chimpanzé eram um tanto discutíveis: provavelmente aquela distância nos caçadores-coletadores existentes ainda hoje (dando prosseguimento aos modos de produção mais antigos da humanidade) seria, antes, de quatro anos (portanto, superior à dos chimpanzés). Em segundo lugar, não parece necessário que se estabeleça um elo entre o bipedismo, um comportamento de aprovisionamento pelos machos e a monogamia...” (p. 234-244).

É isso!

Fonte:
Marcel Blanc: "Os Herdeiros de Darwin". Tradução: Mariclara Barros. Scritta Editora. São Paulo, 1994.

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