Raça e classe

(...) o racismo é uma desumanização e uma negação da humanidade do outro, uma destruição muito profunda, que a mobilidade social não resolve (MUNANGA, 1996, p.223).

Uma das formas de entender o racismo é relacioná-lo diretamente com a divisão de classes sociais. Em uma leitura marxista, segundo Munanga (1998), raça é entendida como justificativa para a dominação e exploração. Nessa lógica, em uma sociedade não capitalista, não haveria espaço para o racismo. Isto é, a questão não é de discriminação racial ou luta contra o racismo, mas a luta de classes. O racismo seria uma mera desculpa para discriminar alguém de classe inferior. E toda e qualquer discussão que se alongue mais em falar de raça do que em classe é inútil por não chegar ao cerne da questão.

Para pensarmos nessa argumentação, temos que lembrar que no Brasil, historicamente, configurou-se uma estreita relação entre ser negro e ser pobre. Como afirma Bento (2002, p. 27): A pobreza tem cor. Tal percepção pode ser observada nos argumentos contrários às cotas para negros nas universidades, atualmente discutidas no país: não é o racismo que tem que ser discutido, mas o preconceito contra o pobre. Entretanto, a crítica apresentada por Munanga (1998) a esse raciocínio é de que o racismo não pode ser subsumido ao preconceito de classe, pois também países como União Soviética, Cuba etc. têm sérios problemas de ordem racial. Por outro lado, se admitirmos que de fato não tenha existido no mundo uma sociedade realmente igualitária, então não há como comprovar que sem relação de exploração a raça seja desnecessária.

Horkheimer e Adorno (1986) também entendem que a exploração de uma classe sobre outra é uma forma de dominação que persiste mesmo quando tal exploração não é mais necessária. Isso quer dizer que existe algo na forma como os homens se constituem baseado na dominação e no poder que vai além das relações de classe. Nesse sentido, afirmam Baran e Sweezy (1966, p. 279): “A pobreza e a opressão não são mais necessárias, e um sistema que as perpetua só pode parecer, às suas vítimas, ainda mais claramente, como um anacronismo bárbaro”.

Para entender melhor a crueldade desse sistema, vale a pena ouvir as palavras de Depestre (1977, p.344) ao relacionar historicamente a escravidão e o capitalismo:

El ser humano africano, al que el comercio triangular bautizara como negro, pasó a ser el hombre-mineral que garantizaba la acumulación primitiva de la economía capitalista. Esta absoluta reificación, inherente al trabajo servil, trajo por consecuencia una forma de alienación que le era complementaria: el proyecto de asimilación pura y simples del colonizado, la desaparición de su ser psicológico, su zombificación.

Com a citação acima, podemos pensar que a humilhação imposta aos negros com o trabalho escravo foi a pedra angular da posterior organização social capitalista. E é por isso que até hoje existe uma estreita relação entre sistema capitalista e racismo. Aproveitando-se da hierarquia imposta pela escravidão, o capitalismo, de alguma forma, ajudou a perpetuar a estrutura hierárquica, de modo a dificultar uma verdadeira igualdade das relações entre brancos e negros.

Essa antiga e profunda relação entre as categorias raça e classe podem ficar mais claras a partir das reflexões de Baran e Sweezy (1966). A dupla discriminação vivida pelos negros americanos, pelas questões racial e social, os levou a comparar o processo de integração dos diversos grupos imigrantes europeus e os negros. Analisando a história americana, os autores concluíram que tais imigrantes, sobretudo nas cidades, chegavam em situação de pobreza e humilhação que, com o tempo, passavam. Após algumas décadas de processo de integração, tais imigrantes puderam ascender socialmente. No entanto, tal fenômeno não ocorreu com os negros, o que permitiu aos autores chamá-los de “imigrantes permanentes”. Primeiro, porque eles sempre ocupavam o lugar mais baixo da hierarquia entre as classes sociais (nenhum grupo entrava em situações mais precárias que eles), e depois, porque, ao se instalarem nas cidades, os empregos que conseguiam, a educação, saúde e moradia que tinham acesso os deixavam constantemente presos a sua classe, sem a mesma possibilidade de ascensão vivida por outros grupos de imigrantes. Para Baran e Sweezy (1966, p.262), as explicações para tal fato são:

Em primeiro lugar, há um formidável volume de interesses privados que se beneficiam, no sentido mais direto e imediato do termo, com a existência permanente de um subproletariado segregado. Em segundo, as pressões psico-sociais geradas por uma sociedade capitalista monopolista intensificam, ao invés de aliviar, os preconceitos raciais existentes e, conseqüentemente, também intensificam a discriminação e a segregação. E, em terceiro, com desenvolvimento do capitalismo monopolista, a procura de trabalho não-especializado e semi-especializado diminui tanto relativa quanto absolutamente, tendência que afeta muito mais os negros que qualquer outro grupo e acentua sua inferioridade econômica e social.

Esta intrincada relação entre raça e classe mostra a conveniência de se manter o negro em “seu lugar” no sistema capitalista. De tal modo que o privilégio permitido aos brancos os fazem sentir qualquer ascensão dos negros como uma “mobilidade descendente para eles” (BARAN; SWEEZY, 1966, p. 265). É por isso, segundo os autores, que há uma forte resistência por parte dos brancos à ascendência dos negros. No caso brasileiro, podemos perceber isso quando as discussões sobre políticas afirmativas são desvalorizadas por argumentos como a mestiçagem (a intensa mestiçagem real é a evidência da falta de racismo e não é possível identificar o negro em nosso país) e o preconceito de classe (o problema no Brasil é social e não racial, porque aqui não há racismo). É por isso que a ambição e privilégio exaltados e cultivados pela competição capitalista, embora esteja lado a lado com um discurso democratizante, acaba por não facilitar a mudança na realidade vivida pelos negros.

Tal fato pode ser observado, por exemplo, pelas discriminações constantes que vivem os negros que ascenderam socialmente. Figueiredo (2004, p. 201), após realizar pesquisa com sujeitos negros da classe média, afirma que seus entrevistados...

... mencionaram que são olhados com curiosidade quando participam de atividades sociais relacionadas à classe média, e com desconfiança quando querem adquirir ou desfrutar dos bens sociais e simbólicos associados a pessoas de poder aquisitivo mais elevado. E, mesmo quando de posse desses bens, há o constrangimento provocado pelas diversas perguntas acerca da efetiva possibilidade de que aqueles indivíduos negros venham a ser os verdadeiros proprietários de determinados bens, que tenham suficientes recursos financeiros para quitar uma dívida adquirida, ou que possam freqüentar espaços sociais identificados com a classe média. Tudo isso cria uma tensão adicional no cotidiano das pessoas negras com poder aquisitivo mais elevado, que sempre são vistas como estando “fora do lugar” sociologicamente construído e simbolicamente determinado; em outras palavras, eles estão pagando um alto preço exatamente por estarem “fora do lugar”.

Assim, o “lugar” do negro é aquele marcado pela inferioridade, pela baixa qualidade de ensino, pelo acesso restrito à saúde, pelas piores condições de vida, pelos piores empregos etc. Dados do SEADE24 mostram as diferenças entre brancos e negros no que diz respeito a vários aspectos. Especificamente quanto ao mercado de trabalho, é possível notar que existem mais desempregados negros do que brancos e, dentre aqueles, mais mulheres do que homens. Isto é, as mulheres negras sofrem duplamente as dificuldades de inserção no mercado de trabalho. Dentre os que estão empregados, observa-se um número muito maior de negros (homens e mulheres) em trabalhos manuais e pesados. A escolaridade é apontada como uma justificativa para a diferença entre brancos e negros no trabalho, pois os negros, por estarem mais presentes nas classes baixas, têm menor escolaridade que os brancos. Entretanto, negros com formação em nível superior recebem 21% a menos que os brancos de mesma escolaridade. Além disso, os indicadores do SEADE também apontam para uma maior vulnerabilidade da população negra no acesso e uso dos serviços de saúde. As taxas de mortalidade entre brancos e negros são semelhantes, mas as causas da morte variam: os negros morrem mais por causas externas (homicídios, acidentes e suicídios) e os brancos mais por causas naturais, o que é interpretado pelos especialistas do SEADE como consequências das “iniquidades raciais”. Essas informações mostram que o quesito cor da pele é um dentre outras características que facilitam ou dificultam a ascensão social, bem como a qualidade de vida.

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É isso!

Fonte:
Sylvia da Silveira Nunes: “Racismo contra negros: um estudo sobre o preconceito sutil”. (Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de doutora em Psicologia Área de concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Orientador: José Leon Crochík). UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - INSTITUTO DE PSICOLOGIA . São Paulo, 2010.


Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

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