Agassiz e “a Bandeira do poligenismo”

"Desde a sua chegada aos Estados Unidos, Agassiz empenhara-se em ser um divulgador das ciências por meio de conferências públicas ministradas no Lowel Institute. A partir das conferências e de seu charme pessoal com o qual encantou a alta sociedade bostoniana, Agassiz sela seu destino como o mais eminente naturalista na América, vindo a tornar-se o mais respeitado professor de Harvard.

Muito do seu esforço na América concentrou-se na construção de um
grande museu de história natural naquele país. Para tal, Agassiz não somente levantava fundos junto à alta sociedade como também recebia enorme quantidade de espécies para o acervo da instituição. Um dos colaboradores que procurava enviar espécies para enriquecer o acervo do museu era o Imperador D. Pedro II, que, como amante das ciências se interessava bastante pelo trabalho de Agassiz. Os dois provavelmente entraram em contato por meio de amigos em comum, como o poeta Longfellow, o reverendo Fletcher48e o poeta abolicionista americano John Whittier.

Em 1864, Agassiz escrevia ao Imperador do Brasil, agradecendo as
coleções que chegaram às suas mãos por meio do reverendo Fletcher, e indicava ao monarca o que, naquele momento, poderia ser mais útil para enriquecer a coleção que formava no museu de Cambridge.

Vossa Majestade demonstra imensa bondade em se interessar pelo Museu que organizo em Cambridge e de ofertar coleções do Brasil. Sinto-me profundamente tocado por um ato de tão grande benevolência. Permita-me expressar o desejo de obter alguns fragmentos de grandes mamíferos fosseis que abundam em vosso império” (MEC, 1952, p. 48).

Como podemos perceber, o esforço de Agassiz como divulgador das
ciências encontrava resposta não somente no território americano, onde tinha contato com políticos, agricultores e cientistas, mas atravessava fronteiras, a ponto de amantes das ciências como o Imperador brasileiro sentirem-se encorajados a enviar-lhe espécimes para o acervo do grande museu.

Ao chegar aos Estados Unidos, Agassiz, como vimos, começa a aplicar o separacionismo, que utilizava para classificar as diferentes
espécies nas chamadas províncias zoológicas, também para classificar os tipos humanos como espécies diferenciadas, tornando-se um arauto do poligenismo na América. Tal posição o faz muito popular junto aos produtores rurais escravocratas sulistas, ao mesmo tempo que o aproxima Agassiz de alguns expoentes do poligenismo americano, como Samuel Morton e Josiah Nott.

Samuel George Morton, autor de Crania Americana publicado em 1839, em cuja obra reunia o estudo de quase mil crânios humanos de
diferentes nativos das Américas, e baseado na tese de que a capacidade craniana da raça ariana era maior do que a das demais raças, deduzia que os povos arianos seriam mais desenvolvidos intelectualmente. Morton estabeleceu uma hierarquia entre as diferentes raças a partir do tamanho médio de seus cérebros. Publicou ainda Crania Aegyptiaca em 1844 e o epítome de toda a sua coleção em 184951 (GOULD, 2003).

Josiah Clark Nott de Mobile, oriundo do Alabama, era um dos alunos
de Morton que se destacou ao fornecer aos escravocratas sulistas as supostas evidências científicas de que homens advinham de diferentes origens e, conseqüentemente, teriam um desenvolvimento mental diferente.

Agassiz, tal qual Morton e Nott, abraçava a tese poligenista, argumento que entrava em choque com a tradição cristã defensora de uma origem única para toda a humanidade. Tal choque com o cristianismo nos leva a questionar a posição de historiadores da ciência, tais como E. Lurie e M. V. Freitas, que procuram diferenciar Agassiz dos evolucionistas tão somente pelo viés da tradição religiosa.

Ainda que Agassiz fosse um criacionista convicto, não se pode de forma anacrônica imaginar que isso fosse um empecilho ao seu desenvolvimento científico, pois ele se encontrava vinculado a uma importante tradição científica do providencialismo que, no século XIX, se fazia muito presente. Trabalhos como os de Edward Lurie ou de Marcus Freitas tendem a não levar em conta essa tradição, ao pressopor que a passagem do criacionismo para o darwinismo constitui-se um avanço científico invez de uma disputa de paradigmas. Daí o entendimento do criacionismo como um tipo de ciência passada, defasada e teológica, enquanto o evolucionismo seria a representação do progresso científico. Conforme Nelson Sanjad, esta idéia é questionável, principalmente se levar-se em conta a “história da ciência como história social do conhecimento ou da cultura”. Nesta perspectiva, não há como se presumir o que venha a ser “atraso” ou “progresso”. (SANJAD, 2007).

Um dos argumentos dos defendiam que homens advinham de um ancestral comum era aquele evocado por Buffon52 no séc. XVIII. Para ele, o cruzamento entre diferentes espécies não produzia prole fértil, e dentro assim as raças humanas seriam todas de uma mesma espécie já que os mestiços eram tão férteis quanto as supostas raças puras. Agassiz, Morton e Nott, no entanto, questionavam a proposição de Buffon, alegando que a prole fértil era possível também em cruzamento de diferentes espécies.

Em março de 1850, Agassiz teve a oportunidade de defender suas posições poligenistas em Charleston frente a uma platéia de especialistas na American Association for the Advancement of Science. Nott, que estava presente e tendo Agassiz defendido o ponto de vista dos poligenistas, escreveu a Morton após o evento afirmando que, com Agassiz ao lado deles, a guerra estava ganha. De fato, Agassiz tinha a capacidade de seduzir tanto o público especializado quanto o leigo. Mais do que isso, conseguia transformar sua posição poligenista em argumento piedoso. Em artigo na revista Christian Examiner em julho daquele mesmo ano, afirmava que a crença em diversos centros de criação somente dava mais glória a Deus, que com sua onisciência pode criar e recriar espécies de homens e animais diferentes para cada região do globo. Se as escrituras sagradas referiam-se somente a um casal original, isso não significava que não existissem outros em diferentes partes do planeta (LURIE, 1960).

Alguns políticos, cientistas e mesmo leigos que se interessavam pelo
tema das diferenças raciais escreviam a Agassiz em busca de esclarecimento sobre o assunto. Uma das cartas que vale a pena destacar é do filantropo americano e abolicionista Samuel Gridley Howe em 1863, quando a guerra da secessão e eminente abolição dos escravos, no sul do país, inquietavam várias pessoas preocupadas com o futuro da nação.

A longa carta dirigida a Agassiz questionava o futuro dos Estados Unidos da América após a libertação da “raça africana”. Segundo Howe, tal raça representava cerca de dois milhões de indivíduos negros e, ainda, mais dois milhões de mulatos que persistiriam vivendo no país.

Seria essa raça absorvida pela raça branca que compreendia vinte e quatro milhões de indivíduos e que aumentava incessantemente por meio de novas imigrações e por causas naturais? [...] A mistura das raças tenderia a se intensificar após a abolição? [...] E nesse caso, os mulatos constituiriam uma raça considerável frente aos negros? [...] Seria verdade que os mulatos eram menos férteis especialmente quando fixados nos estados do norte com climas mais frios, onde tendem a serem linfáticos e escrofulosos? [...] Nos estados onde mulatos e negros constituíam 60, 80, ou mesmo 90 por cento da população, haveria imigração branca suficiente para reverter esse avanço? [...] Haveria uma tendência natural de aumento persistente de uma raça negra nos estados do Golfo e nos grandes rios do sul que tornasse necessário uma resistência antes que a situação piore, ou tais raças tenderiam a diluírem-se e desaparecerem com o passar dos anos?” (AGASSIZ. E., 1887, p. 461-462).

Agassiz responde prontamente a carta a ele endereçada pelo filantropo abolicionista, que não esconde o incômodo frente à idéia de
aumento ou mesmo de permanência numérica da “raça africana” sob o manto da igualdade civil. O naturalista suíço procura englobar as questões do sr. Lowe em duas perguntas fundamentais: “Existirá nesse continente uma população negra permanente uma vez que a escravidão fosse de todo abolida?” e “o que se pode fazer para suprimir as causas que favoreçem seu aumento?”.

Para Agassiz, parecia evidente que o poder público deveria tomar medidas que incentivassem a emigração, transportando a raça negra para fora dos estados do norte, como forma de garantir a prosperidade da raça branca. Este tipo de medida estaria de acordo com a natureza, uma vez que os negros puros tenderiam naturalmente a buscar após a liberdade, regiões mais quentes para ali se fixarem, movidos por um tipo de “afinidade irresistível”. Com tal mudança, forma-se-ia no sul alguns estados negros, o que faria com que o norte se tornasse cada vez mais branco.

Quanto aos mulatos, estes eram vistos como tendo uma “existência transitória”. Agassiz acreditava que, ao contrário do que muitos pensavam, os mulatos nem sempre eram estéreis, às vezes o eram, mas em geral apresentavam pouca fertilidade, o que denotava que o cruzamento entre brancos e negros seria contra o “estado normal das raças”. Longe de apresentar-se como uma solução natural, a mistura de raças era, portanto, um projeto insensato e repugnante a todos os sentidos. Do ponto de vista fisiológico e político, todas as barreiras possíveis deveriam ser criadas para impedir o cruzamento das raças e o aumento do sang-melé que seria “contra a natureza como se pode perceber por sua constituição, seu temperamento doentio e diminuição de fecundidade” (AGASSIZ. E., 1887,
p.463-467).

Os mulatos estariam, portanto, fadados ao desaparecimento por obra
da própria natureza, enquanto os negros deveriam ser suportados; fixandose estes contudo em estados quentes do sul.

A troca de correspondência entre Agassiz e Samuel Lowe é bastante
chocante, mas muito esclarecedora do pensamento de Agassiz de outros abolicionistas acerca dos negros e mestiços. Note-se que estes dois homens, apesar do preconceito racial, não eram pessoas desumanas e tampouco apoiavam qualquer ato de extermínio a exemplo de grupos que surgiram após a guerra civil americana.

Agassiz defendia a tese de que sendo as raças diferentes entre si, deveriam ser criadas leis diferentes para governá-las. Desta forma, não se poderia permitir que “raças inferiores” ocupassem posições em cargos públicos de decisão para os quais não estavam preparadas.

A questão é, portanto, saber quais serão as melhores medidas a tomar em consideração aos homens em geral e às raças tomadas cada uma separadamente. Que a igualdade civil é um bem comum a toda a humanidade não podemos colocar em dúvida nos nossos dias, mas ela não ocasiona como conseqüência a igualdade social. Preste bastante atenção no que digo - igualdade civil não é igualdade política, pois esta ultima compreende o direito igual a empregos públicos, e espero que nós sejamos suficientemente sábios para não complicar subitamente todo o sistema político por um conflito de interesses antes de estarmos seguros sobre os efeitos práticos que terá uma liberdade universal e uma igualdade diante da lei de brancos e negros vivendo sob o mesmo governo” (AGASSIZ. E., 1887, p. 470)."

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É isso!

Fonte:
Ricardo Alexandre Santos de Sousa: “Agassiz e Gobineau – as Ciências contra o Brasil Mestiço” (Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz-FIOCRUZ, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História das Ciências Profa. Orientadora: Dra. Lorelai Brilhante). Casa de Oswaldo Cruz-FIOCRUZ. Rio de Janeiro, 2008.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

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