“No primeiro capítulo de Sobrados e Mucambos, Gilberto Freyre começa discutindo a colônia, Dom João VI e, claro, o período do domínio holandês, época em que floresceu o judaísmo em Pernambuco e a descoberta do ouro em Minas Gerais pelos paulistas, “alguns talvez descendentes de judeus.”
Quando menciona o surgimento das lavouras de cana de açúcar e do nascente comércio nas vilas e cidades, insere aí os negociantes judeus: “Mesmo cheio de riscos, o financiamento à grande lavoura colonial – a de açúcar – atraiu desde cedo agiotas, que parecem ter se dedicado ao mesmo tempo à importação de escravos para as plantações. E há indícios de haver preponderado entre êsses negociantes, judeus com o espírito de aventura comercial aguçado como em nenhuma outra gente. Daí, talvez o relêvo que alguns historiadores – um deles Sombart – dão aos judeus na fundação da lavoura de cana e na indústria do açúcar no Brasil.”
No trecho acima, Freyre mostra o quanto é dual o conceito do autor para com os judeus, enquanto no final do parágrafo atribui aos judeus a importância de terem sido os precursores da agricultura da cana-de-açúcar e da indústria açucareira no Brasil; no início do mesmo parágrafo, lhes atribui a pecha de “agiotas”, algo muito comum na década de 30 do século passado.
É importante lembrar que foi neste período que surgiram no Brasil obras que tratavam o judeu como agiotas internacionais e aves da rapina. Na terceira década do século XX, muitas obras foram publicadas, no Brasil, com teorias eugênicas e racialistas, sendo um exemplo o livro “Os Protocolos dos Sábios do Sião”. Publicado originalmente na Rússia, no início do século XX, ganhou notoriedade após 1905 e, numa escala internacional, depois da Primeira Guerra Mundial, sendo posteriormente a base do pensamento anti-judaico na Alemanha nazista a partir dos anos 1920.
“João Lúcio de Azevedo, na obra de mestre que é Épocas de Portugal Econômico (Lisboa, 1929), não admite a tese, defendida por Sombart e por historiadores judeus mais ou menos apologéticos de sua raça, de a agricultura da cana, ou antes, da indústria do açúcar, no Brasil, ter sido obra exclusiva, ou principal, de judeus.”
Na última citação, fica claro o distanciamento existente entre Freyre e o culturalismo boasiano, pois mistura religião e/ou cultura com raça. Uma vez que os judeus e/ou israelitas não poderiam ser tipificados como raça, o que une este povo ou grupo social é a religião. Caso contrário, como explicar a existência de judeus de origem askenazitas, sefarditas, falachas e outros, cada grupo possuindo características físicas diferenciadas, hábitos parecidos mas não iguais.
Esta associação da raça com cultura está muito mais próxima do francês, Vacher de Lapouge, do Conde de Gobineau e dos teóricos racistas da segunda metade do século XIX, caracterizando-se por seu traço aristocrático. Tais teorias expressavam um certo fatalismo da aristocracia ao sentir-se marginalizada pelos avanços do liberalismo burguês, além da proximidade com o pensamento nazi-fascista, sendo típicas dos partidários do integralismo, como Vicente Rao, Oliveira Viana, Gustavo Barroso e Plínio Salgado, entre outros. Muitos destes autores mantiveram contato com Freyre, havendo mesmo uma troca recíproca de leituras.
É importante salientar que Gustavo Barroso foi um dos pensadores do movimento de direita brasileiro e do integralismo, na década de 30, sendo dele a tradução para o português do livro Os Protocolos dos sábios do Sião. Escreveu, ainda, História Secreta do Brasil; Judaísmo, Maçonaria e Comunismo; A Sinagoga Paulista e O que o Integralista deve saber, entre outras obras de menor importância. É interessante destacar que Barroso atribuía aos judeus a implantação e sustentação do capitalismo, “cuja intenção era solapar e destruir a boa sociedade tradicional, baseada em valores cristãos e espirituais.”
No texto de Sobrados e Mucambos, o autor insere várias citações de outros autores importantes, muitos claramente anti-semitas, talvez para conferir um caráter de relevância aos diversos assuntos tratados na obra e/ou transferir tais conceituações para outros intelectuais e não se “comprometer” em demasia com afirmações delicadas.
Sobre o papel dos judeus na colonização brasileira, não poderia ser diferente. Há citações de Max Weber, Sombart , João Lúcio de Azevedo, entre outros. Dentre estas citações, uma de conotação, no mínimo, racialista do historiador português João Lúcio de Azevedo, na obra Épocas de Portugal Econômico (Lisboa, 1929): “Mas é preciso não esquecer, por outro lado, que entre os da família hebréia, dispersos por vários países e em todos êles entregues a formas diversas, mas entrelaçadas, de mercancia e de usura, existia então – como, até certo ponto, existe hoje – uma como maçonaria. Espécie de sociedade secreta de interêsses comerciais, ligados aos da religião ou da raça perseguida, e funcionando com particular eficiência nos momentos de grande adversidade.”
Prosseguindo com a leitura, nos deparamos com um parágrafo onde o autor cita Max Weber, expondo que: “É bem provável que, expulsos de Portugal, os judeus que tomaram o rumo da terra de Santa Cruz tenham sido amparados fraternalmente por outros, de comunidades prósperas. Daí lhes teria advindo capital, não diremos para iniciativas agrícolas – que estas aqui, como em tôda parte, devem ter repugnado ao seu horror tradicional e canônico (a expressão é de Max Weber) pela terra e a sua política calculada de aventura comercial em países cujo solo sentiam não lhes pertencer (...)”.
Vale salientar que tanto Weber quanto Sombart, se não eram anti-semitas também não eram muito simpáticos para com os judeus. O discurso nazista utilizou-se da obra destes conhecidos autores para fundamentar suas teorias racistas e o arianismo presente no seu conteúdo. O destaque é que o autor usa o texto de Weber para ratificar os mitos de que os judeus não se fixam na terra, possuem horror à agricultura e não têm raízes em lugar algum.
Ao comparar a figura do judeu com a do português (se é que podemos dissociar a figura do judeu da do português), Freyre assume cada vez mais uma postura muito próxima da do discurso integralista e/ou nazista: “A figura do judeu não teve essa grandeza de criador, com um sentido profundo de permanência a animar-lhe o esforço. Ao contrário: viveu à sombra do português patriarcal. E quase sempre móvel e provisório nos lugares. Tanto que no Brasil muitos israelitas aqui enriquecidos se transferiram a outras áreas da América."
O que podemos perceber é que Freyre sempre relata a presença marcante do judeu na vida colonial brasileira, atribuindo-lhe a importância quando lhe é devida, porém geralmente associada a adjetivos de caráter depreciativos, como agiota, gente encoberta, usurário, parasita e outros. Um outro exemplo: “ajustes de que falam tantas tradições de família – parece ter sido, em grande parte, conseqüência das fortunas acumuladas pelos intermediários e negociantes, alguns de origem israelita. (...) O intermediário viveu como médico de um doente a quem explorasse, dessas feridas conservadas abertas.”
Como já foi mencionado anteriormente, o discurso de Freyre, especialmente no primeiro capítulo do livro, está muito próximo do pensamento da direita brasileira. Mas não é só isto, se compararmos com Mein Kampf (Minha Luta) de Adolf Hitler, perceberemos que as citações anteriores apresentam certa similaridade com o discurso presente no livro de Hitler.
“O judeu não satisfaz à condição prévia mais essencial para um povo civilizador: não tem idealismo (...) É e permanece o parasita típico, o papa jantares que, qual nocivo bacilo, se espalha sempre para mais longe (...) Envenena o sangue dos outros, mas preserva o seu inalterado (...)”
Gilberto Freyre foi por diversas vezes acusado de difusor do anti-semitismo, sendo sua obra estudada por alguns sociólogos e antropólogos, como Darcy Ribeiro e Julio José Chiavenato, que apontaram a presença do anti-semitismo em seus livros e ensaios.
No livro Ensaios Insólitos, Darcy Ribeiro comenta o retrato feito dos judeus na obra Casa Grande & Senzala de Freyre, o que se encaixa nas duas obras (Sobrados e Mucambos e Casa Grande & Senzala), extremamente ligadas e com conteúdo muito parecido, conforme já foi mencionado e havendo, inclusive, passagens idênticas entre os dois títulos.
Assim, o sociólogo e ensaista Darcy Ribeiro observa o tratamento dispensado aos judeus: “Do judeu, ao contrário, o retrato é caricaturesco e impiedoso. Assinala, primeiro, que a sanha anti-semita dos lusitanos não seria racismo, mas simples intolerância em defesa da fé. Salienta, de resto, que isto seria muito explicável, uma vez que o judeu de Portugal tanto se mimetizou e assimilou, que acabou deslembrado de si, como cristão-novo, oriundo de conversões velhas, de séculos. Carecia-se, por isto, descobrir, denunciar e desentocar esses desmemoriados semitas para evitar que recaíssem em judiarias. A odiosidade ao semita viria da ojeriza ao agiota frio, sugando o povo lusitano em proveito próprio, de reis ou de nobre.”
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Em outra citação de Sobrados e Mucambos, Freyre insere os termos “homem da nação” e “mascates”, quando se refere aos judeus. “Mascates que por êsses lucros de cento por cento se faziam ‘riquíssimos’. Bradônio refere ainda nos Diálogos o caso, que parece também arte de ‘homem da nação’ ou de cidade que explorasse velhacamente matutos – arte, que depois, tanto se desenvolveu nos negócios de açúcar, de ouro e de café – de comprar um espertalhão (...)”
No prefácio do livro Inquisição: rol dos culpados, de Anita Novinsky, Joseph Eskenazi Pernidji explica o significado do termo “homem da nação”: O termo homem da nação ou “Gente da Nação é o nome que se dava aos cristãos-novos, isto é, da Nação Hebraica: assim foram conhecidos pelos quatro cantos do mundo, e durante os séculos XVII (...)” E tudo indica que o termo permaneceu vivo no imaginário e na memória do povo e foi novamente transcrito para livros através de Freyre.
Pelas citações e comentários apontados nesta parte, poderíamos aplicar imediatamente um rótulo ao autor, “anti-semita”. O uso de termos e frases estereotipadas transforma-se em elemento indicativo de uma situação que aponta para um pensamento racista. Porém, antes de emitir qualquer parecer sobre o tema é prudente avançar com a leitura do livro, seguir para o capítulo VII, para, posteriormente, apresentar alguma conclusão sobre o assunto.”
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É isso!
Fonte:
Raul Milton Silveira Lima: “O personagem judeu na literatura brasileira”. Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Departamento de Letras Orientais - Programa de Lingua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas. São Paulo, 2005.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
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