Beleza: uma categoria construída historicamente

“As revistas femininas dedicam grande parte de suas páginas a cuidados com o corpo. Esses cuidados, muito mais do que preocupação com a saúde, representam preocupação com a Beleza.

O conceito de beleza é subjetivo, localizado, histórico e relacional. Apesar dessa relativização, as sociedades impõem alguns padrões de beleza, uma vez que ela também é construída em contextos de relações assimétricas de poder. O corpo é uma das instâncias sujeitas à inscrição, à classificação e à hierarquização da ideia de beleza. Na sociedade brasileira, o padrão assimilado desde o século XVI, como decorrência da colonização portuguesa, possui um viés eurocêntrico (GOMES, 2006.). “Respeitando certos limites, cada cultura define a beleza corporal à sua própria maneira, ocorrendo o mesmo com a classificação e a avaliação das diferentes partes do corpo e as decorrentes associações estabelecidas entre tais partes e determinados atributos, positivos ou negativos”.

A peculiaridade da formação do povo brasileiro, marcada por forte miscigenação e estratégias políticas de branqueamento da população, criou uma classificação baseada em um dégradé de cores, que vai do branco ao negro, passando por todos os tipos de moreno, o que significa, simbolicamente, uma hierarquização que vai do bom ao ruim. Hierarquização que se aplica também aos cabelos, que vão do liso ao crespo, obedecendo à mesma classificação do corpo e tendo o cabelo dito “anelado” ou “cacheado” como equivalente ao corpo moreno ou “mulato”.

O corpo é objeto de domesticação, que é exercida pela cultura. Como emblema étnico, é nele que se dão as sensações, as pressões, os julgamentos. A forma como o corpo é tratado e classificado na cultura garante a forma de ser no mundo. O corpo apresenta significado para si mesmo e para o outro.

O cabelo tem destaque especial no tocante à etnicidade do corpo (GOMES, 2006). Ele é manipulado com frequência e é onde a ideia de domesticação é expressa de forma intensa e objetiva. Produtos e propagandas para cabelo recorrem a expressões: fios “indisciplinados”, cachos “indomáveis”, cabelos “rebeldes”, associação do cabelo crespo com a juba do leão.

Essa referência de cabelos crespos com características que precisam ser domesticadas, domadas, remete à domesticação não só dos cabelos, mas também do corpo. Num processo de entrelaçamento entre natureza e cultura, é por meio do corpo e das características inscritas nele que entramos em contato com o mundo. Então, para além de ser biológico, o corpo é domesticado pela sociedade e pela cultura na qual está inscrito.

Homens e mulheres se relacionam com o corpo por meio de técnicas corporais e essas são transmitidas pela educação que começa na família e passa pelas relações sociais, pela mídia, pelo grupo de convívio e chegam a ser sistematizadas pela escola nas sociedades ocidentais contemporâneas, por intermédio da linguagem.

“É na cultura que homem e mulher aprendem a classificar e a hierarquizar o corpo: bonito, feio, lábios grossos, lábios finos, cabelo liso, cabelo crespo” (GOMES, 2006,).

A simbologia, a manipulação e as técnicas corporais em torno do cabelo variam de cultura para cultura, mas em todas possui caráter identitário. O cabelo, junto com a cor da pele, édefinidor da classificação racial no Brasil, desde a escravidão. A combinação corpo negro e cabelos não muito crespos, em nossa sociedade, faz a mulher se aproximar do “corpo mulato” (GOMES, 2006).

Todas essas relações do corpo com a beleza e com o estar no mundo são abordadas na revista Atrevida. Em uma breve digressão histórica, podemos considerar que a publicação considera a beleza com referências não só contemporâneos. A busca da beleza, do padrão corpóreo perfeito, faz-se presente nos ideais da Antiguidade. Os gregos, os egípcios e outros tantos povos já tinham preocupação em classificar o que era belo e, para alcançar os ideais de beleza, não mediam esforços (SOUZA, 2004).

Recursos estéticos anunciados como “última descoberta” por muitas publicações do século XXI já eram utilizados antes de Cristo: maquiagem, esfoliantes, ferro aquecido para modelar os cabelos, perucas, depilação, enfim, um arsenal de acessórios e técnicas desenvolvidas para alcançar a “beleza”.

Se hoje as capas de revistas, os outdoors, a televisão e a mídia em geral ditam o padrão de beleza que deve ser seguido, mesmo que nunca alcançado, na Antiguidade os ideais estéticos eram sugeridos pelas representações iconográficas dos deuses e deusas, esses muito humanos em sua aparência e até mesmo em suas atitudes; eram os parâmetros a ser perseguidos.

Ainda muito próximo dos parâmetros do século XXI, a beleza e a saúde se misturavam nos séculos anteriores. Se para os romanos e os egípcios eram recomendados banhos frequentes, e ainda que pintassem os olhos com Kajal a fim de protegê-los do vento e evitar irritações, esses cuidados logo passaram a significar beleza e vaidade.

No período conhecido como a Idade Média européia, passa-se a considerar a beleza e, principalmente, a beleza feminina muito mais ligada ao comportamento que ao próprio corpo. Com referenciais judaico-cristãos da então “jovem” Igreja Católica, a beleza feminina tem como referência Maria. O corpo é objeto de vergonha; o prazer, fonte de pecado. As maquiagens que, no período anterior, eram valorizadas, passam a ser consideradas instrumentos de dissimulação e traição.

No período chamado de Renascimento, o que era considerado belo era o que tivesse simetria. Como várias outras referências, os ideais de beleza foram inspirados na Antiguidade greco-romana.

Várias teorias para a medida da beleza foram desenvolvidas, sempre com base na simetria e proporção entre as partes do corpo. As medidas renascentistas, embora dificilmente aplicáveis cotidianamente no rosto e no corpo, ainda hoje servem de referência para cirurgiões plásticos (SOUZA, 2004).

A mulher, no Renascimento, volta a ser considerada feminina e atraente, porém a referência ainda é religiosa, uma vez que o belo é semelhante a Deus. É um período de culto ao corpo, sempre lembrando que ele é uma obra de Deus. A mulher, antes vista como pecado, agora é também reconhecida como criatura de Deus.

Foi durante o período conhecido como Renascimento que o Brasil foi colonizado. Além da ocupação do território, o lugar onde séculos mais tarde iria se tornar uma nação é colonizado com diversos padrões e conceitos, entre eles o de beleza feminina. Vejamos:

Na Itália, França, Espanha, Alemanha e Inglaterra, o conceito de estética defendido era o mesmo: pele clara, cabelo loiro, lábios vermelhos, face rosada, sobrancelhas pretas. O branco da pele era associado à pureza, à feminilidade, significando também distinção social, quando comparado à pele mais escura das camponesas, devido ao efeito do sol. Enclausuradas em casa, essas mulheres conseguiam manter suas peles cada vez mais alvas. Recomendava-se o uso de rouge nas maçãs do rosto, seios, ouvidos, queixo e pontas dos dedos para dar uma impressão saudável e atrair a vista (SOUZA, 2004).

A maquiagem volta a ser recurso de embelezamento; o espartilho define a silhueta das mulheres, que deveriam ter cintura fina e corpo robusto (!?) (mesmo que isso significasse desmaiar com falta de ar, ou deformar, com sérios prejuízos a saúde, órgãos internos); magreza era sinônimo de pobreza em uma sociedade em que a alimentação não era muito abundante.

Roupas longas e que dificultavam a mobilidade eram as preferidas de homens e mulheres, visto que elas demonstravam que quem as portava não precisava trabalhar, padrão que será vigente até a Revolução Francesa.

A Revolução Francesa apresenta ao mundo ocidental o padrão de vida burguês e com ele também o padrão de beleza burguês. Assim como tudo nesse novo jeito de pensar o mundo, a beleza se torna mercadoria, ou seja, bem que pode ser adquirido, que não precisa estar inscrita em um corpo, mas no que esse corpo carregar.

No processo das mudanças históricas que se seguem, marcado pela industrialização, pelo crescimento do mercado capitalista, pela indústria cultural e, mais recentemente, pelos processos de globalização, as noções e os padrões de beleza se alteram. Padrões alternativos são produzidos; porém, as relações assimétricas de poder perduram. A beleza como mercadoria sofre refinamentos e se aprimora cada vez mais.

As publicações femininas brasileiras do século XXI são depositárias de toda essa trajetória de sentidos e discursos sobre a beleza. Com a revista Atrevida, não seria diferente. O padrão de consumo é que norteia a publicação, isto é, a construção da identidade da leitora é viabilizada pelo consumo. As matérias publicadas apresentam uma possibilidade de “ser” pela via do consumo.”

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É isso!


Fonte:
Carolina dos Santos de Oliveira: “AS ADOLESCENTES NEGRAS NO DISCURSO DA REVISTA ATREVIDA”. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: Educação, Cultura, Movimentos Sociais e Ações Coletivas. Orientadora: Prof.a Dra. Nilma Lino Gomes Universidade Federal de Minas Gerais). Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2009.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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