A centralidade do dinheiro na espiritualidade neopentecostal

“Não há como negar que as mudanças políticas, econômicas e, sobretudo, culturais (a outra face da globalização que merece mais aprofundamento), quanto à questão da identidade (Cf. CASTELLS, 1999, p. 17 e 84), por exemplo, tiveram e continuam tendo impactos relevantes sobre a sensibilidade e o comportamento religioso das pessoas. Chamamos a atenção, em especial, para a vertente religiosa neopentecostal, em que observamos, com mais nitidez, a renovação do sentimento religioso expressa no caráter mágico das atividades, dos serviços, dos produtos que, até certo ponto, tentam fazer do sagrado algo que (sob a influência de uma sociedade onde o mercado se torna referencial absoluto) contenha eficiência. A redução da categoria religiosa “prosperidade” ao econômico-financeiro desenvolve, na membrezia de várias expressões de tipo neopentecostal, um sentimento religioso em que a comunicação pessoal com o sagrado (= espiritualidade) não só é mediada pelo dinheiro, mas também neste centrada. Isso parece ser um lado fascinante da força do dinheiro que se manipula e espiritualiza o desejo de posse inerente à natureza humana. Até que ponto, então, a eficiência econômica não se constitui em critério para o desenvolvimento e crescimento das religiões? Daí clara estratégia de desenvolver, no âmbito da espiritualidade, algo correspondente e coerente com os objetivos das instituições que ora perfilam dentro dessa perspectiva. “Desenvolver algo” é desenvolver uma espiritualidade. Segundo nossa percepção a respeito disso, concordamos com Mammheim (2001, p. 2) quanto a um pressuposto fundamental:

O cerne da fenomenologia [O autor se refere à obra A Fenomenologia do Espírito de Hegel grifo nosso] continua vivo, fornecendo-nos um denominador comum a certos problemas epistemológicos: as idéias têm um significado social que não é revelado por sua análise frontal e imanente. Conseqüentemente, as idéias podem ser efetuadas no contexto social em que são concebidas e expressas, sendo nesse panorama semântico que
sua significação se torna concreta.

Nosso problema epistemológico reside na centralidade do dinheiro na expressão da fé neopentecostal. Nas epifanias presentes no culto neopentecostal, de fato pode acontecer irrupção do sagrado no seio mesmo da congregação, sob a força dos gestos e das palavras. E, por entre estas, nomeia-se o dinheiro como débito prioritário a ser ofertado; em seguida, no calor do testemunho público, a fé torna patente o tamanho do sacrifício desprendido em louvor a Deus e em favor da solução dos problemas vividos de forma aflita no cotidiano. A espiritualidade para além do especificamente religioso (comunicação pessoal do homem com Deus) revela relação de interação, ideação e comunicação como uma realidade pressuposta ao grupo social, o que não só fornece visibilidade social, mas também implica tipos de ação cujo objetivo é a vida. A espiritualidade não se desenha, a não ser para o fortalecimento da vida. Como nossa preocupação é sociológica, buscamos entender isso a partir da associação inerente à comunicação de idéias/representações em geral manifestas nas experiências de indivíduos, mas que os ultrapassam sem perder a validade no campo estruturado em que se originam.

O Neopentecostalismo – é sabido – propaga a prosperidade financeira; faz sentido, portanto, dizer que “o dinheiro é uma ferramenta de Deus”. Essa representação, como aspecto a compor sua espiritualidade, ocupa lugar na vida do fiel, e não alhures. Dinheiro como ferramenta é algo natural, instrumental e soa como auxílio que, uma vez posto nas mãos humanas, serve para enfrentar dificuldades e tragédias esmagadoras da vida. Mas, de que forma? Não é ele a causa de tudo isso? É e não é. Como dízimo, oferta, sacrifício, trata-se de símbolo a causar reflexões e sentimentos que elas (as reflexões) engendram. O dízimo não é, em si, uma emoção espiritual, mas é apresentado sempre como precondição espiritual, pois ele faz o fiel pensar sobre sua confiança na Igreja e, sobretudo, em Deus, a quem a referida décima parte pertence. Porém tudo isso é teológico, haja vista a natureza instrumental do dinheiro, porquanto “não pode haver fim para Deus, porque Deus não conhece nenhum meio” (SIMMEL, 2003, p. 231).

Daí, ser uma espiritualidade, sob o comando da categoria “prosperidade”, reduzida ao econômico-financeiro, a qual parece começar em Deus, o que seria uma visão teológica descendente, negadora da autonomia humana. Mas não percamos de vista que reflexão sociológica séria implica, antes de tudo, saber que, no cerne de seu processo, a chave que abre a porta do entendimento é a da associação. E a compreensão de espiritualidade, mesmo proveniente do campo religioso, não pode deixar de tomar por referência tal conceito – principio da ciência sociológica, que capta isso como uma faceta da realidade humana. Nessa perspectiva, pensamos na comunicação de idéias/representações/símbolos e significações que não só estão para o deleite do espírito humano, mas também demarcam a força do seu poder, que

[...] reside na objetivação e na oficialização de fato levadas a cabo pela nomeação pública, diante de todos, e cujo principal efeito consiste em extrair a particularidade [...] do impensado ou até mesmo do impensável [...]; e a oficialização encontra sua plena realização na manifestação, ato tipicamente mágico (o que não quer dizer desprovido de eficácia) através do qual o grupo prático, virtual, ignorado, negado, reprimido, torna-se visível, manifesto, tanto para os outros grupos como para si mesmo, atestando sua existência enquanto grupo conhecido e reconhecido, e afirmando sua pretensão à institucionalização. O mundo social é também representação e vontade; existir socialmente é também ser percebido, aliás, percebido como distinto (BOURDIEU, 1998, p. 112).

Assim, a condição de símbolo é pressuposto necessário para o desenvolvimento de espiritualidade. Se o dinheiro é peça central do ethos neopentecostal, as imagens que dele se forjam potencialmente significativas riscam o coração do fiel, assinalando para que dê o melhor a seu Deus. Para tanto, exige-se ritual 58, isto é, não apenas um fazer que se desenrole por meio de movimentos, mas ritual no sentido de algo que se vive e envolve ações cotidianas em que, por meio de sua dimensão simbólica, atua, eficazmente, sobre a realidade social. Porém tal ato não pode ser feito de qualquer maneira, tem que se apoiar em símbolos reconhecidos pela coletividade (Cf. SEGALEN, 2002, p. 32). E o dinheiro, afirmamos, se constitui, de forma plausível, em símbolo reconhecido pela coletividade neopentecostal, o qual, ao tomar parte de rituais diários como oferta, se transforma em expressão significativa de espiritualidade que envolve atividade sincera e cheia de sentimentos. Tudo isso é profundamente social:

Um significado objetivado é um produto da sociedade. Objetivamos não apenas o pensamento, mas também as emoções, estados de alma e qualquer outro filtro de ‘saída’ do círculo fechado das experiências singulares. Sem dúvida, o impulso para objetivar significados é eminentemente social e nenhuma consciência pode desenvolver-se num indivíduo não socializado. Significado, portanto, é um termo sociológico, inseparável de alguma fase de sociabilidade. Não é nossa preocupação com objetos idênticos que nos conduz a um nexo social, mas os significados idênticos que atribuímos conjuntamente aos objetos; encontramo-nos uns aos outros não nas coisas, mas através de suas significações. (MANNHEIN, 2001 p. 45).

A prosperidade financeira, como a realização mais desejada e buscada de forma dramática, não poderia deixar de considerar apelativo comum a forma primária por meio da qual cada fiel pode atribuir significado ao objeto mais representativo e permanentemente nomeado, que é o dinheiro. Embora tudo aconteça sob a administração dos especialistas, que expressam interesses não menos conflitantes (haja vista denúncias diversas, vez por outra, de condutas meramente mercantilistas na relação com a membrezia), nada faz pensar que a espiritualidade trabalhada não tenha forças para “abrir a porta do Céu”, a fim de este derramar bênçãos em abundância.”

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É isso!


Fonte:
DRANCE ELIAS DA SILVA: “A SAGRAÇÃO DO DINHEIRO NO NEOPENTECOSTALISMO: Religião e Interesse à Luz do Sistema da Dádiva”. (Tese apresentada à Universidade Federal de Pernambuco, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Sociologia, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Henrique Martins). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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