Educação e higiene mental

“Os serviços de higiene mental são derivados das instituições européias, principalmente francesas, que remontam as experiências de Pinel e dos chamados sanatórios mentais. Na realidade eram locais de depósitos de seres humanos, todos mentalmente perturbados e, portanto, obrigados a se manterem separados e apartados do convívio social. A esta atmosfera de sofrimentos e torturas eram submetidos os pacientes tidos como deficientes mentais.

A publicação do livro “Um espírito que se achou a si mesmo” de Clifford Whittingham Beers nos Estados Unidos na década de 1910 que narrou a história do próprio autor que foi tido como louco e internado em hospícios por três anos (1900 a 1903) marcou a instalação dos primeiros serviços de higiene mental pelo mundo. Beers que também era médico descreveu com riqueza e detalhes as condições de tratamento a que eram submetidos os indivíduos diagnosticados como “anormais”. O filósofo William James que trocou várias cartas com o autor ficou muito impressionado com a obra e como eram precários os serviços de assistência aos “loucos” em seu país. No Brasil a obra foi traduzida pelo poeta Manoel Bandeira e prefaciada por Afrânio Peixoto. Assim Beers descrevia os hospitais por onde passou:

Uma vez aberta a porta, não ofereci mais resistência. Primeiro fui atirado ao chão com um soco. Em seguida por vários minutos, tocado a pontapés de um lado para outro – esmurrado, calcado a joelhadas e finalmente esganado. O meu agressor tentou mesmo esfolar-me o rosto com o tacão do calçado. Se não o conseguiu é porque fui protegido pela barba cerrada que eu usava então. Mas as minhas canelas, ombros e costas ficaram cortados pelos sapatos pesados. Não tivesse eu instintivamente unido os joelhos aos ombros para proteger o corpo e poderia ter recebido lesões muito sérias, talvez mesmo fatais. Quando senti faltarem-me as forças, fingi perder os sentidos. Essa manhã salvou-me de maior castigo, pois de ordinário uma agressão premeditada não termina enquanto o paciente não fica estendido mudo e impotente. Realizado o que queriam, deixaram-me os dois atirado num canto para passar o resto da noite como pudesse – sem se importarem que morresse ou não
(1967, p. 139).

O primeiro serviço de higiene mental surgiu nos EUA em 1907 e de lá se espalhou para o mundo inteiro. A denominação higiene mental permaneceu até 1950, quando por indicação da Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a adotar a terminologia saúde mental que se manteve até hoje. O objetivo das seções de higiene mental era realizar um trabalho preventivo e as crianças. Estas eram tidas como o alvo principal dos serviços, uma vez que um trabalho desde a infância ajudava a evitar futuros problemas de neuroses e de comportamento inadequados na vida social.

No Brasil o movimento de higiene mental chegou em 1923 quando foi fundada a Liga Brasileira de Higiene Mental por Gustavo Riedel. A mencionada instituição teria uma dupla função, tanto terapêutica quanto preventiva. Sendo que para Ramos esta era a mais importante. O público alvo era formado por menores, uma vez que:

Desde cedo se verificou que estava na infância o principal campo de ação de higiene mental. Se esta visa a prevenção das doenças mentais e ao ajustamento da personalidade humana, é para a criança que deve voltar suas vistas, pois aí estão os núcleos de caráter da vida adulta. Ajustar a criança ao seu meio é o objetivo básico, o trabalho inicial, a ser continuado depois, no ajustamento do individuo aos seus sucessivos círculos de vida
(RAMOS, 1950, p.20).

O atendimento em higiene mental estava estruturado no formato de uma clínica, com os seguintes profissionais: professores, assistentes sociais, professores visitadores, psicólogo, médico e psiquiatra. Vários exames e testes eram realizados, como o psicólogo e pedagógico (aptidões), orgânico e aqueles para verificar todos os tipos de desajustamento emocional:

A higiene mental infantil tem assim os aspectos largos. O seu campo de ação é imenso. O seu trabalho é duplo: preventivo e corretivo. Ela estuda o desenvolvimento e formação nos hábitos da primeira e segunda infância, acompanha o escolar no período da escola primaria, assiste ao desabrochar da adolescência, prepara o jovem para ser a perfeita adaptação à vida adulta.
(RAMOS, 1950, p.21).

As clínicas de higiene mental possuíam, portanto, uma ampla esfera de atuação e que visavam exercer um forte controle sobre o comportamento dos educandos, moldando-os de acordo com os hábitos socialmente aceitáveis. À primeira vista esta idéia podia parecer estranha, uma vez que as condições sociais da maioria das crianças que freqüentavam as escolas públicas da capital da República eram precárias e um trabalho de caráter preventivo como este teria muitas dificuldades para atingir seus objetivos. Nesse aspecto Ramos apresentou uma clara consciência social do alcance do projeto que estava propondo para a nação. Na introdução de sua obra “A criança problema” o autor mencionava a questão social no Rio de Janeiro da época como o maior obstáculo para êxito do programa de higiene mental:

As causas geradoras de problemas se ampliaram de maneira trágica, no Rio de Janeiro. Em primeiro lugar estão as condições criadas pela própria guerra, o que pela segunda vez neste século, veio convulsionar o mundo e complicar o problema dos ajustamentos, pacíficos entre os homens. Em seguida estão as próprias condições deficitárias, no Brasil em especial no Rio de janeiro. Crise alimentar. Crise de Habitações. Índices assustadores de mortalidade e morbidade infantis. Fatores deficitários em todos os sentidos, que vieram complicar tremendamente o problema da assistência aos menores [...] Nunca a higiene mental teve que lidar com tantos primários, que converteram a capital do país, num grande feudo urbano, desprotegido e entregue a sua própria sorte. Com razão se poderia achar uma atividade desnecessária ou inócua. Um serviço mental que tivesse essas causas próprias, tão grosseiras e tão deprimentes
(RAMOS, 1950, p. 8).

Podemos perceber que o médico admitia que uma sociedade em péssimas condições materiais, como a brasileira neste período, a atuação de um serviço de higiene mental era praticamente sem efeitos. Tentar amoldar indivíduos miseráveis, em uma forma de sociedade em crise e deficitária era inviabilizar este trabalho. Ramos parece perceber isso com singular lucidez.

Como Arthur Ramos acreditava que o meio social e cultural era determinante na conduta do indivíduo, relembrando o mito rousseauniano de que a sociedade era quem corrompia o indivíduo, a família e a sua estruturação eram fundamentais para formar indivíduos ajustados. Mesmo nestes casos o serviço de higiene mental possuía uma função de assessoramento:

Se a criança veio bem formada do ambiente familiar, com ou sem a ajuda das clínicas de hábito, o ortofrenista não tem mais do que continuar o trabalho iniciado: to Keeps the normal... Se não, se surgem os casos-problemas, então a higiene mental intervém, procurando resolver e ajustar as dificuldades surgidas
” (RAMOS, 1950, p.22).

O serviço de higiene mental criado no Rio de Janeiro, em virtude da reforma de Anísio Teixeira na rede municipal, tinha como objetivo servir como uma espécie de apoio das escolas primárias. Toda criança identificada como criança problema deveria ser encaminhada para o respectivo órgão público. Nelas um estudo multidisciplinar procurava detectar as causas do comportamento tido como desajustado da criança no ambiente escolar.

Nestas clínicas de hábito são estudadas principalmente as bases fisiológicas da personalidade, as atividades instintivas primordiais, como fome, a sede, as funções de eliminação, o sono o repouso, atividades de sexo, as primeiras manifestações emocionais e afetivas, o desabrochar da inteligência. O higienista mental orienta essas funções na formação de hábitos normais, corrigindo os precoces desajustamentos encontrados
(RAMOS, 1950, p.23).
Ao que tudo indica

as chamadas clínicas de hábitos do Serviço de Higiene Mental, objetivava exercer um rigoroso controle sobre as crianças e jovens considerados como desajustados ou na eminência de alguns desvios devido a influência do meio. A condução da situação nestes termos, embora inicialmente bem intencionados, poderia servir a ideologias autoritárias no sentido de formar indivíduos plenamente ajustados e também facilmente manipuláveis, na medida em que todo o comportamento das pessoas passava a ser monitorado.”


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Fonte:
Ronaldo Aurélio Gimenes Garcia: "A EDUCAÇÃO NA TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE ARTHUR RAMOS: HIGIENE MENTAL E CRIANÇA PROBLEMA - RIO DE JANEIRO 1934-1949". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação. Área de Concentração: Fundamentos da Educação. Linha de Pesquisa: História da Educação. Orientação: Prof. Dr. Amarilio Ferreira Júnior). Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, 2010.

Nota:
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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