Che Guevara à venda

O consumo

O rosto do revolucionário argentino, como citado em capítulo anterior, está sendo utilizado em diferentes suportes, como em camisetas, jaquetas, bottons, cintas, bonés, biquínis e xícaras. Objetos com a figura do mito estão à venda nas ruas centrais das grandes cidades da América do Sul, da Europa, da Ásia, e até de grandes metrópoles norte‐americanas. Estão à venda em toda a parte.

Na Internet, há centenas de portais – a maioria deles produzida nos Estados Unidos – que comercializam produtos em alusão a Che. Por ironia, o símbolo da revolução socialista foi transformado em um ícone do sistema capitalista que tanto Che Guevara combateu. A força imaginária dos ideais revolucionários de Che Guevara parece ter se mantido firme até os anos 80, especialmente nos países da América Latina. Naquela época, algumas nações, como o Brasil, recém começavam a sair de longos períodos de ditadura militar.

Os últimos 20 anos, no entanto, foram de intensas modificações sociais, econômicas, culturais e políticas em todo o mundo. Se as sociedades mudaram, as relações econômicas se alteraram e as formas de comunicação se aceleraram, é bem provável que a percepção em relação a um mito também teria grande probabilidade de sofrer releituras.

As modificações advindas do processo de globalização e das novas tecnologias de informação mudaram também as rotinas sociais em muitos aspectos. Agora, as certezas de antes hoje são dúvidas ou nem existem mais. Em um mundo de mudanças constantes, confusas e incontroladas, quase nada parece ficar no lugar. Em seus ensaios sobre o que denomina de fenômenos extremos, Jean Baudrillard acredita que a sociedade atual é marcada por uma “contaminação respectiva de todas as categorias, substituição de uma esfera por outra, confusão de gêneros”. Para ele,

a lei que nos é imposta é a da confusão dos gêneros. Tudo é sexual. Tudo é político. Tudo é estético. Simultaneamente. Tudo tomou sentido político, principalmente depois de 1968: a vida cotidiana e também a loucura, a linguagem, a mídia, assim como o desejo, tornam-se políticos à medida que entram na esfera da liberação e dos processos coletivos de massa.

CHE GUEVARA

Ao tratar da liberação em todos os domínios, cuja coluna vertebral aborda a liberação social generalizada em qualquer sentido e direção, como “a sexual, a política, das forças produtivas, das forças destrutivas, da mulher, da criança, das pulsações inconscientes, da arte”, processos aos quais Baudrillard denomina de orgia, ele afirma “que tudo na sociedade contemporânea se contamina, se mistura, se contagia e se confunde, especialmente, a partir de 1968”137. Coincidentemente, um ano depois da morte de Che Guevara.

Essa atualização da percepção do mito de Che – e até mesmo do uso de sua imagem – repousa nas idéias do sociólogo francês Michel Maffesoli. Para ele, “todo objeto ou fenômeno está ligado a outros e é por eles determinado. [...] Significa dizer que o que é não necessariamente sempre o foi e não necessariamente sempre o será”138. O cenário globalizado atual é mesmo propício para a ocorrência deste tipo de fenômeno. Isso porque este processo, que para muitos é o aperfeiçoamento do capitalismo multicultural e sem fronteiras, tem como pano de fundo justamente o consumo.

É no consumo que está baseada a idéia de globalização, comandada por megacorporações transnacionais que estão em toda a parte, para que seus produtos sejam consumidos em qualquer lugar, como Coca‐Cola, Sony, Marlboro, Nike. George Yúdice não se engana quando diz que “a ênfase maior no contexto global das práticas culturais nos anos 1980 e 1990 é o resultado dos efeitos da liberalização do comércio, do maior alcance global das comunicações e do consumismo”.

Para buscar compreender o que é consumo e como ele se processa no mundo atual, este estudo passará a se ocupar especialmente das teorias de Néstor García Canclini. Apesar de admitir não existir ainda uma teoria sociocultural do consumo, ele procura articular a junção entre consumidores e cidadãos, principalmente em meio a tantas mudanças sociais, econômicas e culturais ocorridas com mais intensidade nas duas últimas décadas.

Já autores como Mike Featherstone também atentam para o consumo de signos e imagens, cuja importância reside “na capacidade de remodelar incessantemente o aspecto simbólico ou cultural da mercadoria”. Em um passado não muito remoto, o valor simbólico conferido às mercadorias, por exemplo, estava ligado à preservação de tradições e ao culto à produção própria, como destaca Canclini.

Segundo ele, nos séculos XIX e XX, “comer como espanhol, brasileiro ou mexicano significava não apenas guardar tradições específicas, como também alimentar‐se com os produtos da própria sociedade”. Para o autor, o valor simbólico de consumir a produção nacional também tinha a ver com o preço. Os produtos importados eram mais caros. Existia o que Canclini denomina de racionalidade econômica.

Apesar desse comportamento racional que determinava o consumo de produtos locais em detrimento dos estrangeiros, Canclini ressalta que hoje esse fenômeno praticamente não ocorre, uma vez que o que se consome atualmente perdeu a territorialidade, o local de produção, a origem:

esta oposição esquemática, dualista, entre o próprio e o alheio não parece fazer muito sentido quando compramos um carro Ford montado na Espanha, com vidros feitos no Canadá, carburador italiano, radiador austríaco, cilindros e bateria ingleses e eixo de transmissão francês.

O autor compara a montagem de um carro à estruturação do consumo pela ótica da globalização. Assim como os objetos não têm mais relação com a origem onde são produzidos, a cultura também parece se processar de maneira similar. Comenta o autor:

a cultura é um processo de montagem multinacional, uma articulação flexível das partes, uma colagem de traços que qualquer cidadão de qualquer país, religião e ideologia pode ler e utilizar. A globalização supõe uma interação funcional de atividades econômicas e culturais dispersas, bens e serviços gerados por um sistema com muitos centros, no qual é mais importante a velocidade com que se percorre o mundo do que as posições geográficas a partir das quais se está agindo. [...] O problema não é tanto a falta, mas o fato de o que possuem tornar‐se a cada instante obsoleto ou fugaz.

Para Canclini, consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. E vai além. Ele afirma que o consumo está ligado ao modo de os indivíduos se comunicarem com os outros.

Em um sentido mais radical, o consumo se liga, de outro modo, com a insatisfação que o fluxo errático dos significados que engendra. Comprar objetos, pendurá‐los ou distribuí‐los pela casa, assinalar‐lhes um lugar em uma ordem, atribuir‐lhes funções na comunicação com os outros, são os recursos para se pensar o próprio corpo, a instável ordem social e as interações incertas com os demais. Consumir é tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora. Por isso, além de serem úteis para a expansão do mercado e a reprodução da força de trabalho, para nos distinguirmos dos demais e nos comunicarmos com eles.

A análise de Canclini encontra eco em Mike Featherstone. Segundo este autor, “a cultura da sociedade de consumo [...] é considerada um vasto complexo flutuante de signos e imagens fragmentárias”. E este volume de signos e imagens – muitos deles transnacionais – está disperso em toda a parte. Não tem território definido, mas parece estar presente em todos os lugares. Várias décadas de construção de símbolos transnacionais criaram o que Renato Ortiz denomina de uma ‘cultura internacional‐popular’, com uma memória coletiva feita de fragmentos de diferentes nações.

Segundo Ortiz, essa cultura internacional‐popular se constitui a partir do movimento de eliminação de territórios demarcados, denominado por muitos autores de desterritorialização, “cujo fulcro é o mercado consumidor”149. O autor considera a existência de uma memória internacional‐popular no interior da sociedade de consumo, onde são “forjadas referências culturais mundializadas”. Conforme o autor,

os personagens, imagens, situações, veiculadas pela publicidade, histórias em quadrinhos, televisão, cinema constituem‐se em substratos desta memória. Nela se inscrevem as lembranças de todos. As estrelas de cinema Greta Garbo, Marlyn Monroe ou Brigitte Bardot, cultuadas nas cinematecas, pôsters e anúncios, fazem parte de um imaginário coletivo mundial. Neste sentido, pode‐se falar de uma memória cibernética, banco de dados das lembranças desterritorializadas dos homens. Marcas de cigarro, carros velozes, cantores de rock, produtos de supermercado, cenas do passado ou de sience‐fiction são elementos heteróclitos, estocados para serem utilizados a qualquer momento. A memória internacional‐popular contém traços da modernidade‐mundo, ela é o seu receptáculo. Esses objetossouvenirs são carregados de significados e, ao se atualizarem, povoam e tornam o mundo inteligível. Daí, ao contemplá‐los, esta sensação de familiaridade que nos invade.

Ortiz acrescenta, ainda, que este tipo de memória funciona como um sistema de comunicação que, “por meio de referências culturais comuns estabelece a conivência entre pessoas”, especialmente os jovens. Comenta o autor:

t‐shirt, rock‐and‐roll, guitarra elétrica, ídolos da música pop e pôsters de artistas (ou até Che Guevara, “Hay que endurecer, pero com ternura”) são elementos partilhados planetariamente por uma determinada faixa etária. Eles se constituem assim em cartelas de identidade, intercomunicando os indivíduos dispersos no espaço globalizado. Da totalidade dos traços‐souvenirs, marcando desta forma sua idiossincrasia, isto é, suas diferenças em relação a outros grupos sociais.

Mas por que Che Guevara estaria na lista das personalidades possíveis de serem transformadas em objetossouvenirs para o consumo? O que há por trás de uma camiseta com o rosto do revolucionário argentino? Algumas dessas respostas podem estar na própria trajetória de Che e por sua época.

Che é um personagem da década de 60. Já foi citado neste trabalho que alguns autores, entre eles Jorge Castañeda, chegam a denominar aquela época de “a década Che Guevara”. Ele morreu ainda jovem, com 39 anos de idade, em 1967. O mundo, sabemos, vivia em turbulência naquele final dos anos 60, especialmente com os jovens adotando uma postura de rebeldia em relação à política, à guerra, à família, à universidade, à música e às artes. Era uma espécie de negação a tudo. Um ambiente universal como esse parece ter sido propício para o crescimento de um personagem como Che Guevara, que, aos 31 anos, havia conseguido, por meio das armas, participar da derrubada de um governo ditador apoiado pelos Estados Unidos em uma ilha do Caribe.

A juventude da época buscava o rompimento com a tradição por meio da adoção de símbolos e comportamentos que sinalizavam seu desejo de contrariar a situação vigente. O desprendimento e o destemor de Che contagiaram aquela geração na Europa, nos Estados Unidos – parte da juventude americana contrária à guerra do Vietnã se identificava com os ideais guevaristas – e especialmente na América Latina.

A imagem de Che Guevara, passados 40 anos desde sua morte, parece ainda estar impregnada daquele imaginário jovem. No entanto, é muito provável que hoje, o sujeito que veste a camiseta com o rosto de Che não seja um adolescente disposto a fazer uma revolução social ou pegar em armas contra os governantes. É apenas alguém que se identifica com a rebeldia daquele personagem cujos ideais estão muito longe de serem alcançados. Talvez jamais o sejam.

Consumir a imagem de Che Guevara nesses dias globalizados pode ser um simples desejo de fazer parte de um grupo que se identifica com causas humanas e sociais ou que adota posturas rebeldes em relação ao universo em que vive cotidianamente. A guerrilha de Che, com seu trunfo em Cuba e grandes fracassos na África e na Bolívia, onde morreu, pode não pertencer mais ao imaginário das novas gerações.

O que parece claro é que a imagem de Che está sendo permanentemente consumida e utilizada para manifestações diversas. Na Internet, a ferramenta que tem mudado as relações humanas, por exemplo, também é possível encontrar sites que comparam Ernesto a um assassino ou o apontam como herói, um exemplo.

De qualquer maneira, nota‐se que a arquitetura do consumo está utilizando o significado dos ideais guevaristas para, de uma certa maneira, dar‐lhe uma nova roupagem, tornando o mito revolucionário em uma celebridade mundial sem ranços socialistas ou comunistas. Em uma imagem capaz de ser consumida tanto por um adolescente rico da Europa quanto por um jovem brasileiro de classe baixa.

Qualquer um pode ter uma camiseta com o rosto de Che Guevara. Ou uma xícara, uma jaqueta, um quadro no quarto, um biquíni, um chaveiro ou um calendário. Não importa. O que é relevante é o consumo desses objetossouvenirs, para utilizar novamente a expressão de Ortiz. E, na medida em que os consomem, comunicam‐se e reagrupam‐se em torno de grifes, como se fossem novas identidades e novos totens. É a idéia da conjunção, de Michel Maffesoli, cuja base de sustentação “é a comunicação que nos liga ao outro”.


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Fonte:
JUAN DE MORAES DOMINGUES: “CHE GUEVARA: A MÍDIA COMO POTENCIALIZADORA DO MITO”. (Dissertação apresentada como pré-requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. Orientadora: Prof. Dra. Dóris Fagundes Haussen). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande Do Sul. Porto Alegre, 2008.

Nota:
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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