"Qualquer metamorfose, embora seja produto de processos inconscientes, só poderá realizar-se plenamente por meio do desenvolvimento da consciência humana. A aposta de Morin na consciência se explica a partir das possibilidades inventivas do cérebro humano. O cérebro é a máquina mais complicada que se conhece e, talvez, ainda subempregue muitas de suas qualidades. A consciência, diante da história da vida, é algo que apenas acaba de emergir, podendo se desenvolver como novo centro epigenético. Estaríamos, talvez, em uma pré-história da consciência e do espírito, os quais, por serem emergências últimas do desenvolvimento cerebral, estão ainda em estado embrionário e ainda permanecem bárbaros. Considerada “o verdadeiro tesouro da humanidade”, a consciência ainda é epifenomenal, superficial, periférica: é “uma chama vacilante, mirrada, instável, ainda no começo, sempre frágil, correndo, sem parar, o risco da ilusão, da self-deception, da falsa consciência. Ainda não migrou para o centro da mente/espírito para tornar-se sua controladora permanente” (M5, p. 290). Assim, talvez não tenhamos elaborado, tanto no que se refere à sociedade e às relações inter-individuais quanto no nível do indivíduo e da humanidade, um modo de organização de acordo com as possibilidades cerebrais:
“ainda não conseguimos passar da complexidade inconsciente (do cérebro) à complexidade consciente (do espírito). Em conseqüência, a possibilidade de futuro baseia-se no que representa o nosso presente: o atraso do nosso espírito em relação às suas possibilidades” (M3, p. 261).
Os progressos da consciência encontram-se, portanto, ligados ao pleno desabrochar da hipercomplexidade cerebral.
Como já foi dito no segundo capítulo (ver item 3b), uma diferenciação deve ser feita entre a loucura ontológica do sapiens-demens e as violências tanatológicas responsáveis pela barbárie e pela demência. Nesse sentido, Morin se pergunta:
“Não poderiam uma nova sociedade e uma nova consciência constituir os controles decisivos que deteriam os extravasamentos destruidores? (...) A loucura, isto é, não apenas a hubris, a neurose, a desordem, mas também a parte irracionalizável da existência, por si própria, só pode estar na raiz e no horizonte do sapiens. Mas as demências talvez estejam ligadas unicamente aos inícios bárbaros da hipercomplexidade, nos quais ainda nos encontramos. Einstein dizia que, ainda hoje, só uma fraca percentagem do espírito humano estava sendo usada, o que traduziremos na nossa linguagem: a hipercomplexidade antropológica – individual, social, cultural – está longe de ter alcançado seu desabrochar. A hipercomplexidade não pode ser otimizada, mas talvez seja subdesenvolvida e possa ser desenvolvida” (PP, p. 161, grifos do autor).
Desse modo, se a hubris destruidora pode ser controlada por um aumento de consciência decorrente do uso mais pleno das aptidões e potencialidades cerebrais, isso não implica a supressão do lado demens e as instâncias a ele associadas, inexoravelmente inscritos na ontologia do homem. A crise, a desordem, o erro, a loucura não poderiam ser erradicados a partir de uma otimização da maquinaria cerebral; portadores de uma profunda ambivalência, esses fatores são simultaneamente fonte do melhor e do pior no humano. Na hipercomplexidade cerebral, “o ´melhor´contém como ingrediente aquilo que sem cessar ameaça degradá-la e corrompê-la” (PP, p. 160). Ao admitir que muitas possibilidades do cérebro hipercomplexo não foram ainda realizadas, o que podemos é tentar reduzir “seus estados neuróticos, diminuir os riscos de regressão” e também, “talvez, eliminar as demências” (PP, p. 160). Lembremos também a esse respeito que a hubris destrutiva do sapiens-demens não deve ser compreendida como mera reprodução da agressividade dos outros animais, pois nestes a agressão se baseia em normas de comportamento rígidas. Na humanidade, o ódio constitui-se, antes, em “fracassos profundos e graves da hipercomplexidade” (PP, p. 160). Assim, “incessantemente surgem no homem delírios em que a hipercomplexidade é destruída” (PP, p. 143). Em outras palavras,
“o progresso da complexidade fez-se, apesar, com e por causa das loucuras humanas. Mas quantos horrores que, longe de dissolver-se no começo do terceiro milênio, ultrapassaram, hoje, todos os do passado. Não se pode eliminar a loucura, mas seria preciso conseguir eliminar os seus aspectos horríveis.” (M5, p. 128).
A reforma da humanidade por meio do desenvolvimento da consciência e do espírito "afastaria os aspectos mais perversos, bárbaros e viciosos do ser humano" (M6, p. 168), o que redundaria em um mundo com mais amor. Temos que assumir plenamente o destino da dialogia sapiens-demens: isso implica contemplar plenamente nosso quinhão demens, mas sem nos deixarmos tragar pelos aspectos negros da afetividade.
Um aumento de complexidade da consciência e do espírito não é impossível. Afinal,
“o começo de uma organização superior é sem dúvida sempre bárbaro em relação às realizações da organização inferior precedente. Assim, os primeiros modos de organização policelular foram, durante muito tempo, menos complexos do que os modos de organização celular” (M3, p. 222)
Nada impede que nos encontremos em começos grosseiros, apenas recentemente alinhavados, passíveis de inúmeros e inesperados desdobramentos... Uma consciência lúcida, auto-reflexiva, que lute contra o erro e ao mesmo tempo saiba que a incerteza estará sempre no horizonte da práxis humana, é sempre buscada: “o exercício permanente da consciência tende a destruir as ilusões e através disso as certezas” (M5, p. 110). A consciência, embora ainda hesitante e frágil, permite ao espírito humano conhecer seu próprio conhecimento, impedir a possessão incontornável por idéias-mestras, retroagir sobre os imprintings da cultura em que se formou, desenvolver o retorno reflexivo do pensamento sobre o pensamento. Ela pode ser desenvolvida para que atinja um nível de complexidade superior, que nos permita um maior controle de nossos atos e nossos pensamentos e o estabelecimento de novas zonas de intervenção em nossas vidas. Assim como é próprio do sapiens-demens criar as maiores quimeras, também lhe é próprio duvidar de tudo isso, inquietar-se com o estabelecido, pôr em causa verdades arraigadas. A ética planetária que surge a partir do pensamento complexo, como veremos, necessitará de "tomadas de consciência capitais" (M6, p. 163)
Zygmunt Bauman define nossa era – por ele denominada “modernidade líquida” – como “modernidade sem ilusões”. Varremos várias ilusões que nos guiaram ao longo da modernidade, como a idéia de um progresso concebido como lei da História e as promessas de um futuro radioso. Assim, ainda que a consciência possa evoluir para uma maior complexidade, Morin não se rende a qualquer ilusão moderna: tal progresso não é garantido nem se efetiva de modo linear. Qualquer progresso é sempre reversível, incerto, frágil, ameaçado. A aposta na consciência como entidade infalível e heróica, que resolva todos os nossos males, só pode ser equivocada, pois é próprio da consciência não só “eliminar o erro, mas também iluminar o devaneio” (PP. p. 152). A consciência não é um grande farol que ilumina, de modo constante, o mundo e o homem, mas sim a “luminosidade ou o flash que ilumina a brecha, a incerteza, o horizonte” (PP, p. 152). Embora seja indispensável ao desabrochar do que ainda dormita no espírito humano, a consciência “não traz qualquerm solução permanente ou sui generis” (PP, p. 152). Desse modo,
“é vão esperar o reino soberano e infalível da consciência. Como toda eflorescência última da complexidade, como tudo o que é mais precioso e melhor, a consciência só pode ser frágil, e, repetitamos, as aptidões à regressão e à perversão são inerentes à consciência. Claro, quanto mais for complexa, mais ela disporá dos recursos inventivos da complexidade para lutar contra o que tende a corrompê-la. Mas não cessará, nem por isso, de comportar limites insuperáveis. Assim como a consciência do mundo só pode estar limitada a um pequeno pedúnculo quase separado do mundo, a consciência de si só pode ser uma pequena parte quase separada de um si sempre inconsciente. As possibilidades da reflexão do mundo na consciência humana e da reflexão de si na sua própria são irremediavelmente limitadas.” (M3, p. 218)
Uma das razões pelas quais as nossas possibilidades espirituais encontram-se subdesenvolvidas é o fato de que “as civilizações, até agora, só permitiram a elas desenvolvimentos unidimensionais (M3, p. 222). De fato, os progressos da consciência rumo a uma maior complexidade dependem da complexificação social. Por outro lado, os progressos da complexificação social também dependem, paradoxalmente, do desenvolvimento das consciências individuais: “(...) a consciência surge hoje como a prévia necessária para a nova complexidade social, a qual, contudo, é a única capaz de criar as condições de seu desenvolvimento” (PP, p. 230)."
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Fonte:
Luís Guilherme Vieira Allegro: “A REABILITAÇÃO DOS AFETOS: UMA INCURSÃO NO PENSAMENTO COMPLEXO DE EDGAR MORIN”. (Dissertação apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais – Antropologia. Orientador: Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho). São Paulo, 2006.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
“ainda não conseguimos passar da complexidade inconsciente (do cérebro) à complexidade consciente (do espírito). Em conseqüência, a possibilidade de futuro baseia-se no que representa o nosso presente: o atraso do nosso espírito em relação às suas possibilidades” (M3, p. 261).
Os progressos da consciência encontram-se, portanto, ligados ao pleno desabrochar da hipercomplexidade cerebral.
Como já foi dito no segundo capítulo (ver item 3b), uma diferenciação deve ser feita entre a loucura ontológica do sapiens-demens e as violências tanatológicas responsáveis pela barbárie e pela demência. Nesse sentido, Morin se pergunta:
“Não poderiam uma nova sociedade e uma nova consciência constituir os controles decisivos que deteriam os extravasamentos destruidores? (...) A loucura, isto é, não apenas a hubris, a neurose, a desordem, mas também a parte irracionalizável da existência, por si própria, só pode estar na raiz e no horizonte do sapiens. Mas as demências talvez estejam ligadas unicamente aos inícios bárbaros da hipercomplexidade, nos quais ainda nos encontramos. Einstein dizia que, ainda hoje, só uma fraca percentagem do espírito humano estava sendo usada, o que traduziremos na nossa linguagem: a hipercomplexidade antropológica – individual, social, cultural – está longe de ter alcançado seu desabrochar. A hipercomplexidade não pode ser otimizada, mas talvez seja subdesenvolvida e possa ser desenvolvida” (PP, p. 161, grifos do autor).
Desse modo, se a hubris destruidora pode ser controlada por um aumento de consciência decorrente do uso mais pleno das aptidões e potencialidades cerebrais, isso não implica a supressão do lado demens e as instâncias a ele associadas, inexoravelmente inscritos na ontologia do homem. A crise, a desordem, o erro, a loucura não poderiam ser erradicados a partir de uma otimização da maquinaria cerebral; portadores de uma profunda ambivalência, esses fatores são simultaneamente fonte do melhor e do pior no humano. Na hipercomplexidade cerebral, “o ´melhor´contém como ingrediente aquilo que sem cessar ameaça degradá-la e corrompê-la” (PP, p. 160). Ao admitir que muitas possibilidades do cérebro hipercomplexo não foram ainda realizadas, o que podemos é tentar reduzir “seus estados neuróticos, diminuir os riscos de regressão” e também, “talvez, eliminar as demências” (PP, p. 160). Lembremos também a esse respeito que a hubris destrutiva do sapiens-demens não deve ser compreendida como mera reprodução da agressividade dos outros animais, pois nestes a agressão se baseia em normas de comportamento rígidas. Na humanidade, o ódio constitui-se, antes, em “fracassos profundos e graves da hipercomplexidade” (PP, p. 160). Assim, “incessantemente surgem no homem delírios em que a hipercomplexidade é destruída” (PP, p. 143). Em outras palavras,
“o progresso da complexidade fez-se, apesar, com e por causa das loucuras humanas. Mas quantos horrores que, longe de dissolver-se no começo do terceiro milênio, ultrapassaram, hoje, todos os do passado. Não se pode eliminar a loucura, mas seria preciso conseguir eliminar os seus aspectos horríveis.” (M5, p. 128).
A reforma da humanidade por meio do desenvolvimento da consciência e do espírito "afastaria os aspectos mais perversos, bárbaros e viciosos do ser humano" (M6, p. 168), o que redundaria em um mundo com mais amor. Temos que assumir plenamente o destino da dialogia sapiens-demens: isso implica contemplar plenamente nosso quinhão demens, mas sem nos deixarmos tragar pelos aspectos negros da afetividade.
Um aumento de complexidade da consciência e do espírito não é impossível. Afinal,
“o começo de uma organização superior é sem dúvida sempre bárbaro em relação às realizações da organização inferior precedente. Assim, os primeiros modos de organização policelular foram, durante muito tempo, menos complexos do que os modos de organização celular” (M3, p. 222)
Nada impede que nos encontremos em começos grosseiros, apenas recentemente alinhavados, passíveis de inúmeros e inesperados desdobramentos... Uma consciência lúcida, auto-reflexiva, que lute contra o erro e ao mesmo tempo saiba que a incerteza estará sempre no horizonte da práxis humana, é sempre buscada: “o exercício permanente da consciência tende a destruir as ilusões e através disso as certezas” (M5, p. 110). A consciência, embora ainda hesitante e frágil, permite ao espírito humano conhecer seu próprio conhecimento, impedir a possessão incontornável por idéias-mestras, retroagir sobre os imprintings da cultura em que se formou, desenvolver o retorno reflexivo do pensamento sobre o pensamento. Ela pode ser desenvolvida para que atinja um nível de complexidade superior, que nos permita um maior controle de nossos atos e nossos pensamentos e o estabelecimento de novas zonas de intervenção em nossas vidas. Assim como é próprio do sapiens-demens criar as maiores quimeras, também lhe é próprio duvidar de tudo isso, inquietar-se com o estabelecido, pôr em causa verdades arraigadas. A ética planetária que surge a partir do pensamento complexo, como veremos, necessitará de "tomadas de consciência capitais" (M6, p. 163)
Zygmunt Bauman define nossa era – por ele denominada “modernidade líquida” – como “modernidade sem ilusões”. Varremos várias ilusões que nos guiaram ao longo da modernidade, como a idéia de um progresso concebido como lei da História e as promessas de um futuro radioso. Assim, ainda que a consciência possa evoluir para uma maior complexidade, Morin não se rende a qualquer ilusão moderna: tal progresso não é garantido nem se efetiva de modo linear. Qualquer progresso é sempre reversível, incerto, frágil, ameaçado. A aposta na consciência como entidade infalível e heróica, que resolva todos os nossos males, só pode ser equivocada, pois é próprio da consciência não só “eliminar o erro, mas também iluminar o devaneio” (PP. p. 152). A consciência não é um grande farol que ilumina, de modo constante, o mundo e o homem, mas sim a “luminosidade ou o flash que ilumina a brecha, a incerteza, o horizonte” (PP, p. 152). Embora seja indispensável ao desabrochar do que ainda dormita no espírito humano, a consciência “não traz qualquerm solução permanente ou sui generis” (PP, p. 152). Desse modo,
“é vão esperar o reino soberano e infalível da consciência. Como toda eflorescência última da complexidade, como tudo o que é mais precioso e melhor, a consciência só pode ser frágil, e, repetitamos, as aptidões à regressão e à perversão são inerentes à consciência. Claro, quanto mais for complexa, mais ela disporá dos recursos inventivos da complexidade para lutar contra o que tende a corrompê-la. Mas não cessará, nem por isso, de comportar limites insuperáveis. Assim como a consciência do mundo só pode estar limitada a um pequeno pedúnculo quase separado do mundo, a consciência de si só pode ser uma pequena parte quase separada de um si sempre inconsciente. As possibilidades da reflexão do mundo na consciência humana e da reflexão de si na sua própria são irremediavelmente limitadas.” (M3, p. 218)
Uma das razões pelas quais as nossas possibilidades espirituais encontram-se subdesenvolvidas é o fato de que “as civilizações, até agora, só permitiram a elas desenvolvimentos unidimensionais (M3, p. 222). De fato, os progressos da consciência rumo a uma maior complexidade dependem da complexificação social. Por outro lado, os progressos da complexificação social também dependem, paradoxalmente, do desenvolvimento das consciências individuais: “(...) a consciência surge hoje como a prévia necessária para a nova complexidade social, a qual, contudo, é a única capaz de criar as condições de seu desenvolvimento” (PP, p. 230)."
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Fonte:
Luís Guilherme Vieira Allegro: “A REABILITAÇÃO DOS AFETOS: UMA INCURSÃO NO PENSAMENTO COMPLEXO DE EDGAR MORIN”. (Dissertação apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais – Antropologia. Orientador: Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho). São Paulo, 2006.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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