Guernica: a memória bombardeada

“No dia 26 de abril de 1937, a cidade basca de Guernica, símbolo do sentimento autonomista da região, foi alvo do maior ataque aéreo produzido pelo homem até aquele momento contra uma única localidade. Patrocinado e levado a cabo pela Legião Condoralemã, o bombardeio, que durou cerca de três horas e meia, destruiu completamente o centro urbano do vilarejo, repleto não apenas de refugiados provenientes da frente de guerra que avançava ao norte, mas também de moradores locais, uma vez que era dia e hora de feira em sua região central.

A devastação e a morte causadas pelas bombas incendiárias, pelas bombas convencionais de grande poder de destruição, e pelo ataque de metralhadoras aéreas sobre o povo em fuga, embora tenha causado revolta nos meios diplomáticos internacionais, encontrou sua forma mais eficiente de denúncia e protesto através da famosa obra de Pablo Picasso, feita no ano seguinte por encomenda do governo republicano e destinada a compor o cenário do estande espanhol na Exposição Internacional de Paris.

Embora apresentem especificidades, os casos de Guernica e do Alcázar de Toledo guardam alguns pontos em comum: ambas cidades eram importantes centros religiosos regionais; ostentavam certa importância “tradicional”, conferida por suas histórias; e possuíam, em virtude disto, um forte valor simbólico, utilizado como instrumento de propaganda não somente durante o conflito, mas também após o término do mesmo.

Conforme Eby, a tela “O Alcázar em chamas”, de Ignácio Zuloaga, se constitui em objeto de análise entre os nacionalistas que discutiam (ou discutem) sua superioridade ante a “decadência da ‘Guernica’ de Picasso, sem conseguir converter a opinião pública mundial”.
Mais do que isto, ambos episódios podem, por fim, serem considerados símbolos da vitória da tradição e do reacionarismo ante os ideais de transformação e autonomia da humanidade ante a opressão. Há, contudo, uma diferença básica quando analisamos as narrativas e notícias da época sobre os dois acontecimentos: ao contrário do cerco ao Alcázar de Toledo, Guernica não permitiu a construção de uma figura heróica, comparável à do Coronel Moscardó ou das pessoas que passaram os setenta dias entre as muralhas da fortaleza. Guernica deixou apenas vítimas, dúvidas e perplexidade. Tal perplexidade fez com que fossem necessários apenas três dias para que o bombardeio se transformasse em notícia e alcançasse o outro lado do oceano.

BILBAO, 28 (C.P.) – (Especial) – Em vez de deprimir o espírito dos bascos com o bombardeio de Guernica, os rebeldes conseguiram um efeito contrário, fazendo-os reagir contra o invasor. Todos os jornais mostram-se indignados com a destruição de uma cidade na retaguarda.

No entanto, tão rapidamente quanto às notícias do bombardeio, também os desmentidos e as versões que negavam a evidência dos testemunhos aportaram nas páginas da imprensa no continente americano. Conforme Padrós, ao longo da Guerra Civil e do posterior período da Guerra Fria, quando a Espanha passaria pelo período de dominação franquista, três versões distintas foram elaboradas a fim de que a responsabilidade do massacre não atingisse a figura do generalíssimo. A primeira destas versões tentou simplesmente inverter a autoria dos fatos, atribuindo a responsabilidade aos republicanos, que teriam dinamitado e incendiado a cidade ao fugirem para a retaguarda, dado que o avanço da frente nacionalista tornara-se previsível. A segunda versão, contextualizada no cenário da derrota do nazi-fascismo, buscava jogar a responsabilidade unicamente sobre a Legião Condor e o oficialato alemão – cuja presença na Espanha era negada pelos nacionalistas em 1937 – e, por fim, uma terceira versão, que, ante a abertura de arquivos alemães que comprovavam a participação de espanhóis no planejamento do bombardeio, buscou culpados no segundo escalão do franquismo.

As escusas nacionalistas que chegaram até nós através do Correio do Povo, igualmente apenas três dias após o bombardeio apresentam alguns traços interessantes. Em primeiro lugar, não partem de um segundo escalão, sendo atribuídas, pelo contrário, diretamente ao quartel general rebelde e ao alto oficialato franquista. Em segundo lugar, buscam, através de exemplos retirados da própria Guerra Civil em andamento, atribuir a culpa da destruição da cidade aos republicanos, encaixando-se assim plenamente na primeira das versões produzidas que objetivavam eximir os nacionalistas de qualquer responsabilidade. Por fim, como comprovação da “mentira republicana” divulgada no exterior, foi alegada a falta de condições meteorológicas naquela data, impossibilitando qualquer ação aérea.

SALAMANCA, 28 (A.B.) – Referindo-se as notícias publicadas no estrangeiro sobre a pretendida destruição da cidade de Guernica pela força aérea nacionalista, o quartel general rebelde publicou o seguinte comunicado: “os fugitivos das linhas vermelhas que se juntaram às forças nacionalistas perto de Lequeitio, que ainda não foi ocupada, informam que esta cidade e a de Guernica foram completamente incendiadas pelos vermelhos, como Eibar e Irun. Como a artilharia e a aviação nacionalistas não puderam operar devido ao mau tempo, desta vez será impossível aos vermelhos culparem os nacionalistas de destruição por bombardeio. SEVILHA, 28 (C.P.) – (Especial) – O general Queipo del Llano desmentiu o bombardeio de Guernica por aviões nacionalistas. “Os governistas agem com selvageria e procuram acusar-nos. Dispomos de numerosos exemplos em que os vermelhos bombardeiam localidades de que nenhum modo constituem objetivos militares e aonde se encontram centenas de mulheres e crianças. Portanto, mesmo que a aviação tivesse bombardeado Guernica, estaríamos em nosso direito, mas não chegamos até este ponto, pois colocamos a dignidade acima de nosso direito. Além disto, em vista do mau tempo, a aviação nacionalista não participou das operações militares nos últimos dias (...)”.

Cabe aqui destacar que a afirmativa do general Queipo del Llano, quanto a “estar no direito” dos nacionalistas bombardear a cidade de Guernica, não se constitui em um exemplo isolado. Tal general – um dos líderes máximos do movimento franquista –, tornou-se famoso por utilizar uma arma até então pouco explorada na guerra: o rádio. A partir de uma estação de Sevilha, Queipo mandava ao ar discursos inflamados, justificando o levante militar e defendendo o uso da violência contra os republicanos. Em um de seus muitos discursos pelo rádio, Llano teria afirmado que “esta é uma guerra de extermínio. É necessário exterminar os marxistas, ou eles nos exterminarão”.

É curioso perceber que, além dos desmentidos oficiais dos líderes nacionalistas, também os desmentidos emitidos a partir da imprensa alemã, que trataram de produzir de forma instantânea uma versão negacionista, atribuindo a responsabilidade do massacre, tal qual o alto comando franquista, aos republicanos, através da contraposição a outros acontecimentos, chegou de forma rápida ao outro lado do oceano.

BERLIM, 28 (A.B.) – (...) Na opinião do “Deutsche Allgemeine Zeitung” as afirmações constituem umas manobras destinadas a fazer esquecer a opinião pública mundial, as brutais destruições cometidas pelos vermelhos em Eibar e Irun, fazendo ressaltar o mesmo diário, que em Salamanca, foi em seguida reconhecida a manobra como tal, sendo imediatamente desautorizada, O jornal “Berliner Taglebatt” faz constar em suas folhas que todas as notícias chegadas ontem da Espanha coincidem em que as condições meteorológicas não permitiam que fossem realizadas operações aéreas de espécie alguma.

Da cidade arrasada, contudo, evanescia não somente o fumo das bombas incendiárias, mas também o relato dos sobreviventes e das testemunhas oculares. Relatos sobre o que acabou entrando para a história como “o mais famoso e infame de todos os bombardeios da Guerra Civil Espanhola”, verdadeiro trabalho sistemático de destruição levado a cabo contra uma cidade aberta. Relatos que pelas quatro décadas seguintes seriam silenciados em terras espanholas sob a opressão e o jugo do regime franquista. Mas também relatos de jornalistas e observadores internacionais que possibilitaram a contestação da versão dos militares em vários de seus aspectos, partindo da ausência de condições meteorológicas para o ataque e chegando até a inexistência de aparelhos nazistas na força aérea nacionalista. Um destes relatos é reproduzido por Hugh Thomas, que apresenta, como apêndice ao final de sua obra, uma carta do cônsul britânico em Bilbao, R. C. Stevenson, ao embaixador inglês em Hendaya, onde relata ter encontrado, um dia após o bombardeio, uma cidade quase completamente destruída, onde a maioria das casas ainda ardia e onde novos incêndios estalavam, fruto das bombas incendiárias arremessadas no dia anterior e que, por algum motivo, não haviam explodido naquele momento. Seu relato, apoiado pelo testemunho de um sobrevivente, confere com as versões históricas tradicionalmente aceitas sobre o ataque, e pouco difere do relato abaixo, publicado no Brasil apenas quatro dias após o bombardeio:

PARIS, 29 (C.P.) – (Especial) – Chegou a Bilbao o cônego da catedral de Valladolid, Alberto Onaindia, que presenciou o bombardeio aéreo de Guernica e fez a seguinte relação: “Encontrava-me em Bilbao nos últimos dias da semana passada, quando soube que o governo basco havia resolvido a evacuação de Marquina, onde tenho parentes, e decidi sair para aquela direção. Cheguei a Guernica no dia 26 às quatro e meia da tarde, e, contrariamente ao que se disse, o dia era desanuviado e claro. Apenas havia descido do automóvel começou o raid aéreo. A primeira bomba abriu em canal uma casa de três andares, produziu a quebra dos vidros de varias casas. Como se realizasse uma feira de gente das povoações vizinhas, vi que todos disparavam espavoridos para o campo. Pude observar que apareceu primeiro um parelho de caça, depois três, e posteriormente sete tri-motores. Os aparelhos depois de realizarem a sua obra destruidora elevaram o vôo, e depois voltavam para continuar com fúria a sua obra terrível de extermino. O bombardeio durou desde as quatro e meia da tarde até as oito horas da noite. Em todo esse tempo apenas transcorreram períodos de cinco minutos sem que atuassem os aviões mortíferos. O método de ataque parecia ser o mesmo: primeiro o fogo de metralhadoras, depois as bombas ordinárias, e finalmente as bombas incendiárias cuja diferença do estampido não é difícil para quem está acostumado a presenciar bombardeios. O povo refugiou-se em árvores situadas a um quilômetro de distância de Guernica.

Há que se atentar, contudo, que o tratamento dado pelo Correio do Povo ao bombardeio seguiu os padrões das demais ofensivas da Guerra. Assim, Guernica foi apenas um episódio em um acontecimento maior: o avanço nacionalista sobre o norte da Espanha – uma área que havia ficado isolada do restante do território republicano e que interessava aos sublevados por ser uma importante zona produtora de minérios, passiveis de serem utilizados como moeda de troca com a Alemanha em contrapartida ao apoio nazista. Se tal tratamento permitiu os desmentidos nacionalistas sobre o ocorrido, também possibilitou, por outro lado, a publicação de uma nota oficial do governo republicano, através de sua embaixada em Washington, expondo sua versão sobre os fatos, versão esta igualmente próxima aos relatos aceitos pela historiografia, pedindo, ao mesmo tempo, um julgamento por parte da humanidade para o acontecido.

WASHINGTON, 28 (C.P.) – (Especial) – A embaixada espanhola distribuiu, hoje, uma nota relatando o comunicado oficial que recebeu do governo de Valência, contando como os rebeldes destruíram a cidade de Guernica, ponto principal da libertação basca (...). Os aviadores rebeldes desceram a cem pés para poder com suas metralhadoras matar a população. Calcula-se que os aviões rebeldes deixaram cerca de três mil bombas incendiárias de duas libras cada uma e cem torpedos de duas libras cada um. Durante toda a noite os incêndios continuaram destruindo Guernica e aumentando a consternação e o terror dos habitantes. O número de vítimas especialmente mulheres e crianças é muito crescido. A evacuação da povoação teve de ser feita e os correspondentes estrangeiros foram testemunhas da hecatombe, acentuando que não há na história do mundo crime tão horrível. Os aviadores rebeldes não tinham outro propósito senão matar por prazer uma vez que careciam de objetivo militar. O mundo inteiro deve conhecer e julgar estes horríveis fatos, conclui o telegrama do governo comunista espanhol.

Contudo, a memória de Guernica só pôde ser recuperada a partir do momento em que a obra de Pablo Picasso encontrou repercussão no mundo como forma de denúncia das atrocidades cometidas contra uma população desarmada, que serviu como laboratório para o teste de novas táticas de bombardeio, postas em prática poucos anos depois. Apenas alguns dias mais tarde, o bombardeio não encontraria maior repercussão, sendo substituído por outros assuntos relativos à guerra na Espanha, tal como as negociações em torno da não-intervenção – um tema sempre corrente – ou mesmo os combates entre as próprias fileiras republicanas, que ficariam famosas como o “maio de 37”, opondo comunistas a anarquistas e dissidentes.”

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Fonte:
Gerson Wasen Fraga: "BRANCOS E VERMELHOS: A GUERRA CIVIL ESPANHOLA ATRAVÉS DAS PÁGINAS DO JORNAL CORREIO DO POVO – 1936/1939". (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. Cesar Augusto Barcellos Guazzelli).
Universidade Federal do Rio Grande Do Sul.
Porto Alegre, 2004.

Nota
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