Crime, pecado ou castigo?
“No decorrer da Idade Média Ocidental, em suas diferentes épocas, encontramos uma visão do suicídio matizada e ambígua, tanto quando o tema é tratado pela Igreja, como quando tratado pela justiça civil. Ambos assumem uma posição contraditória dependendo de quem se suicida, como e por quê.
Camponeses e artesãos se enforcavam ou se afogavam para escapar à miséria e ao sofrimento; cavaleiros e clérigos “deixavam-se” morrer em duelos, guerras e martírios, para escapar à humilhação e demonstrar uma fé inabalável.
O suicídio do nobre, qualquer que fosse a causa, era considerado corajoso, honroso e respeitável. Já o suicídio dos rústicos era reprimido severamente, considerado covarde e egoísta. Os cadáveres dos camponeses e artesãos suicidas passavam por suplícios públicos (corpos arrastados por animais até a forca ou fogueira, mutilação dos corpos, exibição dos corpos nus em praça pública etc.), eram-lhes vetados os rituais funerários, o sepultamento em terras sagradas e os bens eram confiscados.
O poder exercia-se sobre o direito do confisco, mecanismo de subtração, direito de se apropriar de uma parte das riquezas: extorsão de produtos, bens, serviços, de trabalho e de sangue imposta aos súditos. O poder era, antes de tudo, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la. (FOUCAULT, 1908, p. 129)
O suicídio dos pobres era relacionado ao desespero, um vício fatal inspirado pelo diabo – o Desperatio, conforme ilustra a tela pintada por Giotto, que data de 1303-1308, na capela da Madona dell‟Arena, em Pádua, onde Desperatio se enforca, enquanto Ira, que representa o vício dos nobres (a cólera) despedaça suas vestimentas.
Os suicidas eclesiásticos constituíam uma categoria particular, porque o suicídio de um padre ou de um monge, segundo os registros, era um acontecimento raro. A forte coesão e a solidariedade clerical eram fatores que auxiliavam o escamoteamento dos casos, evitando o escândalo. O corpo de um suicida eclesiástico escapava à execução pública imputado pela justiça civil (corpos arrastados pelas ruas, exibição dos cadáveres nus etc.), que deveria ser entregue ao bispo da diocese, embora nem sempre a disputa pelo confisco dos bens entre a Igreja e a Justiça civil fosse um acordo tranqüilo.
O Antigo Testamento revela diversas mortes voluntárias, de uma forma estritamente neutra: a morte de Saul, de Abimelec, de Sansão, de Eleazar, entre outros. Estas mortes voluntárias são consideradas e narradas como atos heróicos. Isto nos mostra que o mundo hebreu, narrado no Antigo Testamento, não revela uma posição definida em relação ao suicídio. A lei mosaica proíbe matar em seu quinto mandamento, mas não especifica que isso se aplique à própria vida, nem tampouco aos inimigos de guerra.
George Minois (1998), afirma que o advento fundador do cristianismo é um suicídio: a morte de Jesus Cristo - que se entrega, voluntariamente, ao auto-sacrifício. Cristo sabia o que lhe esperava quando se dirigiu a Jerusalém. É um suicídio indireto? É um suicídio honroso? Começa-se a construção do discurso do mártir.
É claro que o suicídio de Jesus, o homem-Deus, revela-se em uma outra dimensão para seus seguidores. Mas a ambigüidade em relação ao suicídio encontrada nos textos do Antigo Testamento permanece no Novo Testamento. O cristão deveria imitar seu mestre e muitas palavras sagradas o convidam ao auto-sacrifício:
· Quem quiser a sua vida, perdê-la-á, mas quem perder a sua vida por Minha causa, encontrá-la-á. (Evangelho de São Mateus, 16,25)
· Se alguém vem ter Comigo e não me prefere ao seu pai, mãe, esposa, filhos, irmãos, irmãs, e até à própria vida, não pode ser meu discípulo (Evangelho de São Lucas, 14,26)
· Quem ama sua vida perdê-la-á e quem neste mundo a rejeita conservá-la-á para a vida eterna (Evangelho de São João, 12,25)
· Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos (Evangelho de São João, 15,13)
As primeiras gerações cristãs entendem isso muito bem e entregam-se voluntariamente ao martírio em defesa de uma nova fé. Como a Igreja se posicionaria contra o suicídio destes mártires, que tão bem lhes servia como angariadores de novos fiéis? Em contrapartida, os martírios voluntários dos judeus e heréticos perseguidos pelos cristãos eram condenados como suicídios comuns pela justiça civil.
Os contextos do Novo Testamento propiciam condições para o culto da morte voluntária. Seus teólogos e pensadores, apoiando-se em medidas canônicas e dissuasivas, terão um longo percurso para criar uma moral que interdite o suicídio nos séculos vindouros.
É Santo Agostinho (354-430) quem inaugura a condenação radical da morte voluntária, em seu tratado A Cidade de Deus, enunciando a doutrina rigorista que vai marcar a posição da Igreja:
Nós dizemos, declaramos e confirmamos de qualquer forma que ninguém tem o direito de espontaneamente se entregar à morte sob pretexto de escapar aos tormentos passageiros, sob pena de mergulhar nos tormentos eternos; ninguém tem o direito de se matar pelo pecado de outrem; isso seria cometer um pecado mais grave, porque a falta de um outro não seria aliviada; ninguém tem o direito de se matar por faltas passadas, porque são sobretudo os que pecaram que mais necessidade têm da vida para nela fazerem a sua penitência e curar-se; ninguém tem o direito de se matar na esperança de uma vida melhor imaginada depois da morte, porque os que se mostram culpados da sua própria morte não terão acesso a essa vida melhor. (AGOSTINHO, A Cidade de Deus, I, 47 apud. MINOIS, 1998, p. 39)
É o grande acontecimento histórico e discursivo sobre o suicídio na Idade Média. A partir deste momento, Santo Agostinho aprofunda o rigor no cumprimento do quinto mandamento: Não matarás, e interdita o suicídio, já que, para o teólogo medieval, “a vida é um dom sagrado de Deus e só Ele pode dela dispor.”
A repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio, afirmação de inexistência e, conseqüentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber. [...] A repressão foi, desde a época clássica, o modo fundamental de ligação entre poder e saber.” (FOUCAULT, 1980, p. 10,11)
A interdição, a repressão e o silenciamento do discurso do suicídio são formas de exercício de poder que revelam as intenções de quem exerce esse poder. Reprimindo o discurso do suicídio que aparece de maneira ambígua e contraditória nas escrituras sagradas, Santo Agostinho e a Igreja se colocam política e estrategicamente contra os donatistas (seita primitiva cristã que defendia condutas de martírio) e contra o suicídio coletivo das mulheres romanas que eram desonradas com a morte dos maridos. Nesta época, o Império passava por uma crise demográfica e econômica, suicídios coletivos e por martírio, que no início do cristianismo produziam efeitos positivos para a Igreja, passam a não ter mais sentido.
Para evitar embaraços e contradições, Santo Agostinho admite que suicídios como o de Sansão ou de Santa Pelágia (que se matou para defender sua virgindade) devem ter recebido um apelo particular de Deus. Além disso, há todo um trabalho discursivo para diferenciar e distanciar a morte daqueles que receberam um chamado especial de Deus, da morte de Judas (por desespero e covardia), considerada como a morte ruim, como a morte da traição, como crime e pecado.
A grave crise econômica e demográfica vivida pelo Império Romano no final do século IV e no início do século V em decorrência da fome e das epidemias, juntamente com as medidas de interdição da Igreja, colocam em circulação o discurso do suicídio como crime: dos colonos contra seus senhores e dos homens contra Deus, principalmente se levarmos em consideração que a Igreja era a maior fundiária da época. A Igreja e o Estado constituem as instâncias que produzem técnicas precisas de dizer “não” e de organizar silêncios. Paulatinamente, vai sendo construído um arsenal discursivo, repressivo e dissuasivo contra o suicídio, que dentre outras razões, procura conter a perda de mão-de-obra destas duas instituições. O suicídio é colocado, então, na categoria de crime e pecado.
Outro importante acontecimento histórico, que funda discursividades a respeito do suicídio é a confissão, instaurada como prática obrigatória a partir do Concílio de Latrão, em 1215. A confissão é um dispositivo de produzir verdades. Confessam-se não só as transgressões às leis sagradas, mas também os sentimentos e desejos. No caso do suicídio, a confissão passa a ser o remédio contra o desespero dos homens. O sujeito que dá mostras de desespero e se suicida sem acreditar na eficácia da confissão é considerado, entre todos, o mais culpado.
As técnicas da confissão vão ser difundidas nas mais diversas áreas: nos interrogatórios de inquérito, na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares. Confessam-se os sonhos, o passado, as misérias, os medos, os desejos. Confessa-se ao policial, ao delegado, aos pais, ao professor, ao médico, ao analista. Confessa-se em público e em particular. (FOUCAULT,1980, p. 59)
O discurso da confissão não poderia vir do alto como na ars erótica, nem pela vontade soberana do mestre, mas de baixo, como uma palavra requisitada, obrigada, rompendo, através de alguma pressão imperiosa, os lacres da reminiscência ou do esquecimento. O que ela supõe como segredo não está ligado ao alto preço do que tem a dizer, nem ao pequeno número dos que dele merecem beneficiar-se, mas à sua obscura familiaridade e à sua abjeção geral. Sua verdade não é garantida pela autoridade altiva do magistério, nem pela tradição por ele transmitida, mas pelo vínculo, pela mútua implicação, essencial ao discurso, entre aquele que fala e aquilo de que fala (pois ele é pressionado), mas do lado de quem escuta e cala; não do lado de quem sabe e responde, mas ao que interroga e supostamente ignora. E, finalmente, esse discurso de verdade adquire efeito, não em quem recebe, mas sim, naquele de que é extorquido. (FOUCAULT, 1980, p. 62)
No período entre 1266 e 1273, São Tomás de Aquino escreve sua Summa Theologica, que reafirma a interdição do suicídio e a proibição da sepultura de suicidas em terras sagradas, retomando as posições de Santo Agostinho. Entretanto, coloca em circulação uma nova discursividade: a de que o homem pertence à sociedade e, suicidando-se, prejudica a comunidade. Introduz, baseado em Aristóteles, o princípio jurídico-social que o suicídio é um ato contra o Estado. (WERLANG et al. apud. WERLANG e BOTEGA, 2000, p. 82)
Todos os casos de suicídio nesta época da Idade Média são atribuídos a uma causa precisa. Morrer simplesmente por desgosto, tristeza ou melancolia era visto como loucura, sintoma de desequilíbrio mental. Começa-se a “fabricação” da loucura como possibilidade de escapar às sanções instituídas aos suicidas e familiares.
Paradoxalmente, o suicídio, fenômeno tão humano, parece tão desumano que só pode ser explicado pela intervenção do diabo ou pela loucura. No primeiro caso, a Igreja oferece auxílio através da confissão, e aquele que ainda assim se suicida, comete um crime contra Deus e o Estado e é por isso castigado; no segundo caso, o sujeito não é responsável pelo seu ato e por isso pode ser salvo."
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Fonte:
Monica Vasconcellos Cruvinel: “Rastros virtuais de uma morte (a)enunciada: uma análise dos discursos do suicídio pelas páginas “brasileiras” do Orkut”.(Orientador : Maria Bernadete Marques Abaurre. Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Campinas-SP, 2008.
Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese. As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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