Os átomos democritianos

Para Demócrito, o todo era formado por corpos invisíveis e muito pequenos, imperceptíveis, ao qual chamou de átomos, além de se constituírem de uma mesma natureza. Tais corpos seriam sólidos e cheios, e dessa forma, indivisíveis. Tendo como principal característica uma existência real, não teria em sua composição, aquilo que chamamos vazio. No entanto, existiria uma infinita diversidade de formas e tamanhos, sendo assim, a sua única característica preponderante.

O peso do átomo depende do seu tamanho e seu movimento, que tende inicialmente para baixo. Mas, à medida que os átomos se movimentam, colidem uns com os outros. Assim, o movimento final resultante será determinado pelo peso, formato e as colisões anteriores.

Os corpos visíveis seriam assim, criados a partir das várias formas de agregação e entrelaçamento de átomos variados. Fora dos átomos, há o espaço vazio, ou aquilo que não é. Os objetos (os corpos visíveis) diferem um dos outros por seus aspectos qualitativos, já que são considerados aglomerados de átomos. Assim, os átomos também diferem entre si, com relação ao tamanho e peso.

Se o todo consiste de átomos e vazio e, por conseguinte, todas as sensações humanas devem supor alguma forma de contato, a alma também seria composta por átomos esféricos, espalhados pelo corpo. O espírito seria então, essa tal concentração de átomos da alma. A unidade do espírito é na verdade, constituída de múltiplos átomos da alma movimentando-se no corpo, através dos interstícios dos espaços vazios. (KIRK e RAVEN, 2005, p. 426-430)

Demócrito também toma emprestado de Empédocles, a teoria dos eflúvios emitidos pelos objetos, e que ele chama de eidola (imagens). São átomos muito sutis que impressionariam os átomos da alma, produzindo as sensações e proporcionando o conhecimento das coisas e do mundo. O eidola democritiano seria, na mesma ordem de raciocínio, o equivalente em Lucrécio dos simulacros.

Em Demócrito, os átomos – infinitos em número e formato - encontram-se espalhados pelo vazio, que também é infinito. Espaço e vazio designam a mesma coisa (KIRK et al, 2005, p. 438). Um comentário de Schrödinger a esse respeito nos parece interessante, vindo de um físico das partículas:

Uma opinião que nos parece natural, mas que esteve sujeita a uma controvérsia infinita na Antiguidade, porque muitos filósofos concluíram que o não-ser, a coisa que não é, não podia ser, que é o mesmo que dizer que não pode existir espaço vazio!
(SCHRÖDINGER, 1996, p. 74)

Além disso, o movimento dos átomos é contínuo
, perpétuo, irregular e “desordenadamente distribuído em todas as direções” (idem, 1996, p.74); e que não há a predominância de nenhuma direção (parte frontal, parte posterior, parte de cima ou de baixo), o que nos leva a conclusão de que o átomo democritiano era “isotrópico” (ibidem, 1996, p. 74). Finalmente, o peso não era um princípio que regia o movimento e a queda dos átomos. Demócrito incluiu uma explicação, no mínimo engenhosa, onde o peso dos átomos era atribuído a um turbilhão ou redemoinho. A teoria se estende à alma, afirmando que é composta de átomos. Demócrito, assim como quase toda a metafísica da Antiguidade, inclusive Lucrécio, parte do princípio que a alma é um sopro vital, conforme o significado que lhes atribuíam os termos gregos e latinos – psyché, pneuma, spiritus, anima – mais utilizados.

Como conclusão inevitável do atomismo, chegamos ao postulado de que a natureza é inteligível, bastando ao sábio, compreender a constituição básica do universo e o movimento de seus elementos constituintes. Tal apanágio não foi ausente de críticas. Segundo Schrödinger (1996, p. 76), quando os primeiros atomistas incluíram a alma no conjunto de suas explicações sobre a phýsis, acabaram por derrotar a teoria na base, uma vez que inauguraram um paradoxo que foi repetido por Epicuro e Lucrécio, além de colocar um problema ético aparentemente sem solução. Vejamos o trecho em que tal problema é colocado, no seu livro A Natureza e os Gregos:

Todo o acontecimento é rigorosamente determinado no início e por isso não conseguimos ver de que forma é que pode abarcar igualmente o comportamento dos seres vivos, incluindo nós próprios, que sabemos ser capazes de escolher em grande medida os movimentos do nosso corpo através da livre decisão da nossa mente. Então se esta mente ou alma for ela própria composta por átomos que se
movimentam num mesmo sentido indigente, parece que deixa de haver espaço para a ética ou para o comportamento moral. Somos obrigados pelas leis da física a fazer em qualquer momento precisamente aquilo que fazemos; de que vale a pena pensar se está certo ou se está errado? Onde é que há espaço para a lei moral se a lei natural frustra completamente a lei moral? (SCHRÖDINGER, 1996, p. 76).

Apesar de aparentemente parecer um problema insolúvel, Schrödinger – prêmio Nobel de Física em 1933, pelo desenvolvimento de novas teorias atômicas - louva o espírito especulativo dos atomistas da antiguidade, considerando-os precursoras das investigações modernas acerca do microcosmo. Sobre isso, convém esclarecer que a afirmação acima foi enunciada em uma Conferência de 1948, e assim, outras importantes descobertas sobre a teoria atômica ainda não haviam fecundado. Apesar de o paradoxo existir e se constituir em um problema metafísico por excelência, pode ser que o conceito de alma nos atomistas – em particular em Epicuro e Lucrécio – não tenha sido devidamente avaliado pelo cientista em toda a sua amplitude, o que de fato, acreditamos. Além disso, se observarmos as modernas teorias da mente tanto modernas quanto helenísticas
– empresa que não faz parte do escopo deste trabalho – e os resultados atuais da ciência, as intuições dos atomistas podem não ser assim tão absurdas, como parecem à primeira vista.

De fato, Lucrécio introduz o clinâmen na explicação do movimento dos átomos, considerado por muitos como um absurdo e um ponto fraco na teoria atômica epicurista (SERRES, 2003, p. 12). Absurdo, já que é introduzido sem justificação, sendo causa de si mesmo:

Há neste assunto um ponto que desejamos que conheças: quando os corpos são
levados em linha reta através do vazio e de cima para baixo pelo seu próprio peso, afastam-se um pouco da sua trajetória, em altura incerta e em incerto lugar, e tão somente o necessário para que se possa dizer que mudou o movimento. Se não pudessem desviar-se, todos eles, como gotas de chuva, cairiam pelo profundo espaço sempre de cima para baixo e não haveria para os elementos nenhuma possibilidade de colisão ou de choque; se assim fosse, jamais a natureza teria criado coisa alguma (LUCRÉCIO, II, 149-214).

A justificação ética para o clinâmen diz respeito ao livre arbítrio presente nos seres vivos, eles mesmos compostos por átomos. Dessa forma, há um princípio de liberdade evocado por Lucrécio, onde bastaria um mínimo deslocamento para que instaurasse o sujeito livre e autônomo (GIGANDET, 2001, p. 31).

Em termos físicos, a declinação é a única possibilidade de justificar os choques atômicos, apesar da sua indeterminação. Trata de um desvio mínimo (não mais que o mínimo) para que a sua trajetória seja alterada, e assim ocorram os choques entre os átomos e, por conseguinte, as coisas sejam criadas. Em relação à regularidade dos fenômenos, trata-se de uma dificuldade, mas é necessário acrescentar que o entendimento da natureza entre os gregos e latinos da antiguidade, não era a mesma da ciência atual. Segundo Serres (2003, p.12), “Não se trata de uma ciência do mundo, mas de uma mistura impura de metafísica, de filosofia política e devaneios sobre a liberdade individual projetados sobre as coisas mesmas”.

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Fonte:
ANTONIO JÚLIO GARCIA FREIRE: "O Medo da morte e os temores infundados: Uma investigação acerca da natureza da alma em Lucrécio". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Markus Figueira da Silva). Natal-RN 2007.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada.

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