Para entender Edgar Morin

O pensamento complexo de Edgar Morin

“Edgar Morin, filho de judeus espanhóis que emigraram para a França, nasceu em Paris no dia 8 de julho de 1921. Desde cedo sua vida foi marcada por contradições: vida e morte, amor e abandono, esperança e desesperança, ceticismo irremediável e esperança sempre renovada, inocência e culpa, fé e dúvida, contradições políticas, entre outras. Escreveu que

nunca deixei de estar submetido à pressão simultânea de duas idéias contrárias e que me parecem ambas verdadeiras, que me leva ora a ir de uma a outra, segundo as condições que acentuam ou diminuem a força de atração de cada uma, ora a aceitar como complementares essas duas verdades que, no entanto, deveriam logicamente se excluir uma à outra. Tenho, ao mesmo tempo, o sentimento da irredutibilidade da
contradição e o sentimento da complementaridade dos contrários. É uma singularidade que vivi, primeiramente admitida, depois assumida, enfim integrada.

Por dez anos foi membro do Partido Comunista da França. Morin escreve que o Marxismo representou para ele a “abertura” e não uma “teoria reducionista”, impelindo-o “ao saber ‘total’, isto é, ao conhecimento do todo enquanto tal, permitindo integrar o conhecimento das diversas partes constituintes desse todo. Esta visão satisfazia, naturalmente, meu desejo de abraçar tudo”. Em 1962, quando convalescia de um distúrbio cardíaco num hospital de Nova Iorque, decidiu procurar por um método para “coligar as ciências humanas, a física e a biologia. Ele próprio via a sua enfermidade como um sinal de que o seu modo de vida anterior tinha chegado a um beco sem saída”.

A sua vida impulsionou-o a buscar, como não poderia deixar de ser, com muito entusiasmo a realização desse projeto. Nas palavras de Myron Kofman, Morin “se via como um orquestrador ou organizador de uma cruzada”. Este projeto é a religação dos saberes pelo pensamento complexo, cujo significado Morin explica usando uma metáfora: “como o Vale recebe riachos que vêm das encostas opostas, pude elaborar o pensamento complexo ‘reunindo o separado’” e acrescenta:

Religar, religar. Tornou-se, não a palavra-chave, mas a Idéia-mãe. O conhecimento que religa é o conhecimento complexo. A ética que religa é a ética fraternal, a política que religa é a política que sabe que a solidariedade é vital para o desenvolvimento da complexidade social.

O encontro com o universo complexo
Morin faz uma análise bastante extensa da situação em que se encontra o pensamento científico atual. A sua análise é racional-empírica mesmo que comporte, como veremos, a dialógica com o irracional. Esta já está na base do conhecimento científico, ou seja, não é possível de todo excluir a dialógica existente entre os quatro fundamentos da ciência atual: empirismo e racionalismo, imaginação e verificação.

Escreveu O Método, sua obra maior de seis volumes ao longo de trinta anos que, segundo ele,“constitui um esforço polivalente contra as armadilhas da falsa racionalidade.

Esse esforço, que vale para as concepções filosóficas e científicas, é de importância vital para o pensamento e ação políticos.”

A falsa racionalidade é a racionalidade imposta pelo paradigma científico da modernidade que ainda está vigente. Ela está fundamentada na lógica clássica: dedução, indução e na absolutização pela razão e ciência clássicas, dos três princípios básicos e inseparáveis da lógica identitária: o princípio da identidade, o princípio de não-contradição e o princípio do terceiro excluído. “Os três axiomas [absolutizados] estruturaram a visão de mundo coerente, inteiramente acessível ao pensamento, tornando ao mesmo tempo fora da lógica, fora do mundo e fora da realidade tudo o que excedia a essa coerência”. As contradições, entre outras, que surgem a partir do “exercício do pensamento empírico-racional (onda/corpúsculo), e outras inerentes à própria racionalidade (as antinomias kantianas)”,não podem ser toleradas. Para a ciência clássica, a contradição “só podia ser o indício de um erro de raciocínio e, por isso mesmo, devia não apenas ser eliminada, mas determinar a eliminação do raciocínio que a ela conduzia”. É a partir do encontro dessa lógica com o real que a racionalidade se apresenta como simplificadora, pois o real não se submete inteiramente ao pensamento racionalista, ou seja, a realidade é complexa. Aqui se encontra o problema fundamental do pensamento científico: “A racionalidade pervertida e a racionalidade simplificadora são as doenças degeneradoras que ameaçam a todo o instante o exercício de nosso pensamento”, pois resultam na simplificação e conseqüentemente na fragmentação da realidade.

Grande parte do trabalho de Morin tem sido o de levantar, em todas as áreas do saber, as contradições em que caiu a racionalidade moderna e apresentar as características da racionalidade não pervertida. Para Morin a “verdadeira” racionalidade,

comporta, (...) não a recusa da contradição, mas o enfrentamento das contradições que surgem a partir do exame empírico-lógico dos problemas. Não nego a lógica clássica, coloco-a em dialógica com a transgressão lógica. Não digo que contradição está no centro mesmo da realidade, digo que nosso espírito, logo que se aproxima do cerne da realidade, desemboca em contradições.

Morin adverte que não se trata de qualquer contradição. Interessa neste caso somente aquela que surge ao final de “uma dedução correta a partir de premissas consistentes”(Watzlawick). Caso contrário,

qualquer incoerência teria o estatuto de verdade superior. O que nos interessa é a inadequação entre a coerência interna de um sistema de idéias aparentemente racional e a realidade à qual ele se aplica: a coerência lógica impede a adequação e esta impede a coerência lógica.

Ele exemplifica esse tipo de inadequação com a “contradição” onda/corpúsculo. E argumenta que ela não se originou da falta de raciocínio lógico e sim do experimento, o que levou à necessidade lógica de considerá-los, onda e corpúsculo, como sendo complementares. Outro exemplo pode ser a constatação científica da convivência paradoxal entre ordem e desordem no universo. Pelo segundo princípio da termodinâmica sabe-se que o universo tende para a desordem máxima e, mesmo assim, nele “as coisas se organizam, se complexificam e se desenvolvem”. Ou seja, a aceitação da contradição não significa a negação da racionalidade nem a valorização da irracionalidade e do pensamento incoerente. Trata-se antes, da aceitação de que a realidade não se deixa submeter inteiramente sob a razão e seus instrumentos. Essas contradições ou brechas, não existem apenas no conhecimento científico (física contemporânea). Morin identifica ainda outras: na lógica (paradoxo do cretense), na ontologia (filosofias dialéticas) e no formalismo (teorema de Gödel). Destas brechas lógicas retira duas lições:

a) Elas limitam o conhecimento, na medida em que: “um sistema explicativo não [pode] explicar a si mesmo; um princípio de elucidação é cego em relação a si mesmo; e o que define não pode ser definido por si mesmo”.

b) Elas apontam uma nova via para o conhecimento. Pois, “Toda descoberta de uma limitação abre paradoxalmente uma nova via para o conhecimento, a qual é muito claramente indicada por Gödel e Tarski.” O teorema de Gödel, ao mesmo tempo em que evidencia o limite de uma teoria/sistema, abre a possibilidade de recorrer a uma teoria/sistema mais geral, que Morin denomina metassistema ou metaponto de vista. Este metassistema, por sua vez, é também limitado, mas pode também fazer uso de um metametassistema e assim por diante. De maneira análoga, Tarski demonstrou que o mesmo acontece com as linguagens formalizadas. “O conceito de verdade relativo a uma linguagem não é representável nessa linguagem” podendo, porém, recorrer para este fim a uma linguagem mais rica (metalinguagem). Portanto, existe a limitação do conhecimento mas, nela mesma, está a possibilidade de avançar no conhecimento recorrendo infinitamente a uma instância mais complexa.

Como há a possibilidade de “‘ultrapassar’ a incerteza ou a contradição” recorrendo a um metassistema, Morin pode dizer que as contradições ou as brechas que resultam desse processo não são mais, como na lógica clássica, indicação de erro. Elas passam a ser o “indício e o anúncio do verdadeiro”. Ou, em outras palavras, elas são “o atingir de uma camada mais profunda da realidade que, justamente por ser profunda, não encontra tradução em nossa lógica”. Mas, ao mesmo tempo e por isto mesmo, a verdadeira racionalidade nunca está completa, ou seja, a complexidade não deve ser confundida com completude nem com certeza.

Portanto, tanto a capacidade de descobrir como o enfrentamento dessas contradições/brechas apontam para uma outra racionalidade, a racionalidade complexa. Por sua vez, a racionalidade e o pensamento complexos pressupõe uma lógica diferente da lógica clássica.

O pensamento complexo
Como vimos, a racionalidade complexa e o pensamento complexo não podem surgir no contexto da lógica clássica. Na verdade, o que deve acontecer é a abertura ou o enfraquecimento da lógica, para que a constatação de uma contradição não exclua sumariamente esta porção da realidade da realidade toda. Neste sentido, se o conhecimento pretende alcançar o todo, a sua lógica deve ser fraca o suficiente para poder ser transgredida. Se não há como evitar a necessidade lógica da separação dos objetos, deve-se, simultaneamente, aceitar a exigência da complexidade. Por isto a “complexidade é metalógica (engloba a lógica, embora transgredindo-a)”. Para Morin, “a complexidade salva a lógica como higiene do pensamento e transgride-a como mutilação do pensamento”. É importante notar que a complexidade não surge de alguma síntese mas vive na e a partir da dialógica entre opostos:

O pensamento complexo tem como tarefa não substituir o certo pelo incerto, o separável pelo inseparável, a lógica dedutiva-indentitária pela transgressão de seus princípios, mas efetuar uma dialógica cognitiva entre o certo e o incerto, o separável e o inseparável, o lógico e o metalógico. O pensamento complexo não é a
substituição da simplicidade pela complexidade, ele é o exercício de uma dialógica entre o simples e o complexo.

Se a complexidade salva e transgride a lógica, ela passa a ser o novo referencial para o pensamento, como será possível alcançá-lo? Abaixo estão relacionados os sete principais princípios que, segundo Morin, são os guias para o pensamento complexo:

1. Princípio sistêmico ou organizacional: liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo, conforme a ponte indicada por Pascal (...): “Tenho por impossível conhecer o todo sem conhecer as partes, e conhecer as partes sem conhecer o todo”. A idéia sistêmica, oposta à reducionista, entende que “o todo é
mais do que a soma das partes”.(...) A organização do ser vivo gera qualidades desconhecidas [emergências] de seus componentes físico-químicos. Acrescentemos que o todo é menos do que a soma das partes, cujas qualidades são inibidas pela organização de conjunto.

2. Princípio “hologramático” (inspirado no holograma, no qual cada ponto contém a quase totalidade da informação do objeto representado): coloca em evidência o aparente paradoxo dos Sistemas complexos, onde não somente a parte está no todo, mas o todo se inscreve na parte. Cada célula é parte do todo - organismo global - mas o próprio todo está na parte: a totalidade do patrimônio genético está presente em cada célula individual; a sociedade como todo, aparece em cada indivíduo, através da linguagem, da cultura, das normas.

3. Princípio do anel retroativo: introduzido por Norbert Wiener, (...). Rompe com o princípio de causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e este sobre a causa, (...). O anel de retroação (ou
feedback) possibilita, na sua forma negativa, reduzir o desvio e, assim, estabilizar um sistema. Na sua forma mais positiva, o feedback é um mecanismo amplificador; (...). Inflacionistas ou estabilizadoras, as retroações são numerosas nos fenômenos econômicos, sociais, políticos ou psicológicos.

4. Princípio do anel recursivo: supera a noção de regulação com a de autoprodução e auto-organização. É um anel gerador, no qual os produtos e os efeitos são produtores e causadores do que os produz. (...)

5. Princípio de auto-eco-organização (autonomia/dependência): os seres vivos são auto-organizadores que se autoproduzem incessantemente, e através disso despendem energia para salvaguardar a própria autonomia. Como têm necessidade de extrair energia, informação e organização no próprio meio ambiente, a autonomia deles é inseparável dessa dependência, e torna-se imperativo concebê-los como autoeco-organizadores. O princípio de auto-eco-organização vale evidentemente de maneira específica para os humanos, que desenvolvem a sua autonomia na dependência da cultura, e para as sociedades que dependem do meio geoecológico.
(...)
6. Princípio dialógico (...). Une dois princípios ou noções devendo excluir um ao outro, mas que são indissociáveis numa mesma realidade. (...). A dialógica permite assumir racionalmente a associação de noções contraditórias para conceber um mesmo fenômeno complexo. (...), por exemplo, a necessidade de ver as partículas físicas ao mesmo tempo como corpúsculos e como ondas. Nós mesmos somos seres separados e autônomos, fazendo parte de duas continuidades inseparáveis, a espécie e a sociedade. Quando se considera a espécie ou a sociedade, o indivíduo desaparece; quando se considera o indivíduo, a espécie e a sociedade desaparecem. O pensamento complexo assume dialogicamente os dois termos que
tendem a se excluir.

7. Princípio da reintrodução daquele que conhece em todo conhecimento: esse princípio opera a restauração do sujeito e ilumina a problemática cognitiva central: da percepção à teoria científica, todo conhecimento é uma reconstrução/tradução por um espírito/cérebro numa certa cultura e num determinado tempo.

O pensamento complexo é antes de tudo um guia para a constatação das limitações da lógica e do pensamento disjuntivo dominado pelo paradigma científico. Ele pode, segundo Morin, dar a cada um de nós “um lembrete, avisando: ‘Não esqueça que a realidade é mutante, não esqueça que o novo pode surgir e, de todo modo, vai surgir’”. E a esperança de Morin é que o pensamento complexo trará consigo uma mudança paradigmática. Essa se faz necessária porque, no seu entender, “os indivíduos conhecem, pensam e agem conforme os paradigmas neles inscritos culturalmente. Os sistemas de idéias são radicalmente organizados em virtude dos paradigmas.” Portanto, após o despertar da complexidade por meio de pensamento complexo ele deve ser consolidado com o advento do paradigma da complexidade. Este, nas palavras de Kofman “não é uma formalização da realidade, mas um caminho através de uma realidade impenetrável.”


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Fonte:
ROBERT WALTER BEIMS: "A RELIGAÇÃO DOS SABERES E A TEOLOGIA: O SISTEMA DAS CIÊNCIAS DE PAUL TILLICH NO HORIZONTE DO PENSAMENTO COMPLEXO DE EDGAR MORIN". (Tese de Doutorado Para a obtenção do grau de Doutor em Teologia Escola Superior de Teologia Instituto Ecumênico de Pós-Graduação Área: Teologia e História Orientador: Enio Ronald Mueller). São Leopoldo, 2008.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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