A representação dos povos indígenas na imprensa brasileira

O índio na ESFERA CULTURAL brasileira: A IMPRENSA

“No exemplo da representação dos povos indígenas pela imprensa, a aplicação prática destes estudos volta-se à identificação dos fatores que levam a imprensa a retratar o índio como vilão, selvagem, ou como o coitado, que vive à margem da sociedade. Acredita-se que ao longo da história da sociedade brasileira (grupo cultural em questão neste momento), os signos responsáveis pela identificação e geração de conceitos sobre os índios sofreram uma re-significação (Lotman, 2004), assimilando e alterando os conceitos existentes para valores que correspondiam à ordem intracultural desta sociedade, organização responsável por estabelecer as fronteiras da cultura de uma coletividade. Por volta de 1500, Hans Staden e outros exploradores, além da fama de heróis desbravadores, tratavam os índios da mesma forma que tratavam os recursos naturais, como mercadorias na sociedade mercantilista (Romano, 2004). José de Alencar, assim como Gonçalves Dias e outros escritores do Romantismo descendentes de códigos culturais pós-Iluministas, viam no índio a figura do herói nacional e projetavam nessa imagem a figura de uma sociedade que atravessava uma crise política, econômica e social.

Por estas re-significações, o índio hoje representa um personagem. Perdeu sua identidade quanto indivíduo e está subjugado aos valores sociais que a sociedade através da mídia lhe atribui. Isso ocorreu porque o índio-signo, homem social35, ficou perdido no passado, escondido atrás das re-significações criadas pelas histórias de viajantes e escritores ao longo do tempo. Inverdades não foram questionadas e acabaram por anular o índio real, como foi explicado no início deste capítulo. Sobre isto, o etnólogo e filósofo Frédéric Rognon (1991) também teceu seu comentário:

“Sociedades da ordem, sociedades da harmonia, sociedades sem repressão nem Estado, sociedades de abundância: tantos lemas, tantas manifestações contra a modernidade desordenada, desarmoniosa, repressiva e ameaçada pela penúria. A crítica de tal discurso é fácil, pois ele nada mais é do que a imagem invertida das ideologias que o precederam. É o reflexo das preocupações e das angústias de uma época. Donde o sucesso na mídia e entre o grande público. Suprema alienação para o selvagem: retira-se-lhe o direito à palavra ou espera-se seu desaparecimento para glorificá-lo” (ROGNON, 1991:130).

É dessa falsa realidade, ou seja, de uma simulação da figura do índio, que a sociedade em geral tem como referência. O personagem ocupa o papel do índio real, e apesar deste índio ainda estar fisicamente presente na sociedade brasileira, não é identificado conforme seus valores reais, mas pelos valores que lhe foram atribuídos. Simulações e, eventualmente, simulacros quando há a necessidade de preencher lacunas nas mudanças que ocorrem nos códigos culturais, conforme analisa Jean Baudrillard (1981).

Os valores culturais não são transmitidos apenas pela mídia, mas, atualmente, devido à expansão dos meios de comunicação, a mídia tem ocupado um espaço cada vez maior na vida das sociedades. Não são apenas as tecnologias que favorecem esta dinâmica, mas os critérios para transformar um fato em notícia e, a partir disto, o potencial da informação em gerar comentários, por um grande período tempo ou com uma grande intensidade, mesmo que em um curto espaço de tempo. Como exemplo, o caso do índio Paiakan, que foi publicado durante dezoito dias nos jornais impressos, e do índio Galdino que durou apenas uma semana, mas com uma média de duas páginas diárias sobre o acontecido e fatos relacionados. Está entre os critérios de noticiabilidade o sensibilizar e mobilizar o público, seja para sentimentos positivos como a vitória da vida sobre a morte, ou negativos como o ódio e o desejo de justiça por um crime cometido (Cervi, 2007). Uma boa informação deixa margem para exploração de assuntos relacionados aos desdobramentos do fato principal, como no caso, por exemplo, do índio Paiakan, a exploração de madeireiras em reservas ambientais, a imputabilidade dos índios brasileiros e o abuso sexual contra crianças e jovens. No caso do índio Galdino, a falta de limites dos jovens, a demarcação de terras indígenas, os direitos indígenas e as discriminações sofridas pelas classes menos favorecidas como os índios, negros e mulheres.

Entre estas “histórias de imprensa”, mudam os personagens, os cenários, as datas, mas, a essência da informação e a crítica continuam, em base, as mesmas, atendendo aos padrões informativos (Cervi, 2007). Os meios de comunicação, nas últimas décadas, têm ocupado um importante espaço de forma individual e grupal na sociedade. O sistema projeção-identificação, a re-significação ou reapresentação (Baitello, 2005) dos signos são algumas das mudanças nos códigos culturais causados pela mídia. São mudanças que normalmente já ocorreriam, mas com a contribuição dos meios de comunicação foram intensivadas e direcionadas de acordo com os critérios de ordem social adotados pelas instituições que têm o poder de decisão na sociedade. Para o historiador Renato Ortiz (2003), o Estado deve estimular a cultura como meio de integração, mas sob o seu controle, para que se atenda aos Objetivos do Estado:

“A noção de integração, trabalha pelo pensamento autoritário, serve assim de premissa a toda uma política que procura coordenar as diferenças, submetendo-as aos chamados Objetivos Nacionais. (...) Não estou sugerindo com isto que esse controle é absoluto. Existe evidentemente um hiato entre o saltar é que esta ideologia ao se voltar exclusivamente para a repressão, mas possui um lado ativo que serve de base para uma série de atividades que serão desenvolvidas pelo Estado”. (ORTIZ, 2003:83)

Desde o século XIX, com o desenvolvimento do tipógrafo e da imprensa, depois com o rádio e a televisão, os padrões de consumo mudaram e com as alterações ocorridas vieram os novos padrões de comportamento. Na última metade do século XX no Brasil, algumas das mudanças aconteceram na imprensa, devido às exigências políticas e sociais, são exemplos de como elas acontecem desde o século XIX. Na década de 1960, os meios de comunicação em geral precisaram adaptar suas programações e formatos: primeiro, em obediência às exigências políticas da ditadura militar; em seguida, para tentar burlar a censura e informar os leitores, ouvintes e espectadores sobre a crise política que o país atravessava.

Para isso, a criatividade aprimorou a união já existente entre informação e entretenimento como forma de transmitir o conteúdo que interessava a uma parcela da população preocupada em estar informada. Alguns anos depois, essa criatividade continua a servir os interesses dos meios de comunicação, mas de forma a direcionar o olhar da massa para a ordem social que os poderes determinam como melhor padrão de comportamento. O excesso de informação, de re-significações, inibe a capacidade de formação da opinião própria do indivíduo, ao menos para a maioria da sociedade, subjugando-a, assim, à opinião pública (Landowski, 1992).

Um fato possível de virar notícia normalmente está baseado na realidade, no entanto, ao ser transformado em notícia, passa do real para a representação do real. O real bruto passa a ser representado por imagens do real. Em um estudo específico sobre imagens, mas compatível com esta reflexão, Norval Baitellor Jr. (2005) analisa imagens como suportes de memória onde há uma apropriação simbólica ou não da imagem, seja ela um conjunto de elementos visuais, sonoros, olfativo, gustativos ou espaciais, como uma antropofagia.

“As formas de apropriação (simbólica ou não) como manifestação da antropofagia são ainda muitas outras; a apropriação do espaço e seus recursos, a apropriação do tempo e seus atributos, a apropriação das mentes e suas imagens nem sempre passam pela relação direta de apropriação entre dois corpos, sofrendo nestes casos um processo de mediação pelas imagens. É então que teremos o surgimento da iconofagia”. (BAITELLO, 2005: 94)

A imagem como suporte de memória surge, portanto, da apropriação da imagem real. A iconofagia descrita por Baitello é a transformação do real na simulação do real, a criação do não-real, citada por Baudrillard (1981). A antropofagia também está presente quando o fato em questão é uma representação da realidade, estigmatizado e assimilado aos códigos culturais como verdade. Neste caso, a representação é um simulacro, pois há uma representação do que nunca existiu ou do que já não existe mais, pois perdeu seu caráter real, tornou-se irreal. Ou seja, como os índios que já perderam seu poder como signos, e tornaram-se resignificações, representações do índio, de uma irrealidade. Tanto é que,

“Na construção de um conjunto de imagens, sejam elas pertencentes ao universo icônico visual ou sonoro, sejam elas pertencentes a outros universos (verbais, performáticos, olfativos, gustativos), é notável a utilização de imagens precedentes como referência e como suporte de memória. Assim, a representação de um objeto não é apenas a representação de algo existente no mundo (concreto, das coisas, ou não concreto, das não-coisas), mas também uma reapresentação das maneiras pelas quais este algo foi já representado. Em outras palavras, toda imagem se apropria das imagens precedentes e bebe nelas ao menos parte de sua força”. (BAITELLO, 2005: 95)

É com base neste suporte de memória que há a re-significação do índio, aqui como exemplo em questão. O índio bom ou mal é uma relação assimétrica, pois devido ao fato do índio não ser mais uma realidade, mas uma representação da realidade, ele é definido como bom ou mal em função do contexto em que esta representação é inserida. E, novamente, sofre adaptações quanto a sua resignificação, respeitando os objetivos de integração e ordem social do Estado e outras instituições de poder, como os meios de comunicação. Tanto que um índio ora definido como símbolo do bom selvagem, em outra ocasião pode servir a uma situação em que melhor cabe identificá-lo como apenas o mau selvagem.

No entanto, estas situações não são criadas do nada, sempre existem outros fatores que reunidos criam a oportunidade para determinada situação tornar uma representação positiva ou negativa. Segundo Lótman (2004), acreditar que alguma coisa acontece por acaso, é o mesmo que assumir desconhecer os motivos que levaram a determinada situação, mas nunca que elas surgiram do nada. Portanto, toda notícia surge de uma reunião de fatos consecutivos que contribuíram para a construção de uma realidade ou uma nova representação do irreal já representado.

Em entrevista a esta pesquisa, o representante dos povos indígenas brasileiros na Organização das Nações Unidas (ONU), Marcos Terena, quando questionado sobre o impacto das notícias sobre Paulinho Paiakan na participação dos índios na Conferência pela Biodiversidade, a Eco-92, ou Rio-92, disse compreender que todos os tipos de movimento sociais ou políticos precisam da mídia como aliada, assim como a mídia também precisa destes eventos, mas que para os índios, os movimentos não nascem deste princípio, nascem das questões da terra, dos direitos humanos, da diversidade, e a mídia avalia estas questões de acordo com esses interesses:

“De maneira geral quando a Veja coloca na capa, em plena RIO 92, que foi o grande movimento ecológico do mundo, o termo “O Selvagem”, o titulo da capa era “O Selvagem” e o retrato do Paikã com toda sua indumentária tipica do Caipó, cocar, cores, etc... isso foi uma afronta muito grande contra os povos indígenas, não a figura do Paikã, mas a figura do índio, do selvagem. Isso é o que tentamos combater, com esses movimentos, com esses debates, os jogos indígenas, enfim. (...) Aquilo poderia ter um outro título “O Bom Selvagem”, por exemplo, e nós teríamos a mesma crítica, porque nós não queremos ser tratados como uma figura exótica, como a de que nós só fazemos coisas certas ou só fazemos coisas erradas, mas queremos ser tratados como ser humano comum com falhas, defeitos e um ponto muito básico também, com direitos. Nós realmente temos direitos, mas também responsabilidades e deveres. E também é uma forma de preconceito achar que os indios so têm direitos, que podem fazer o que quiser, mas têm que ter responsabilidade em seus atos (...), e com a figura do indio incapaz, isso favorece a manipulação”. (TERENA, 2006)

O fato do índio, Paulinho Paiakan, ser acusado de estupro, por uma jovem, só pôde existir porque uma seqüência de fatos criou a oportunidade para esta informação receber a atenção que teve da imprensa. Paiakan era um índio conhecido por representar o bom selvagem, mas não escondia outros hábitos de vida como, por exemplo, o de homem selvagem que seduz as mulheres (VEJA, 1992), algo típico das histórias de aventuras e romances como O Guarani, conforme já foi dito. A acusação contra Paiakan pode ser verdade ou inverdade com objetivos escusos de um ou mais poderes, mas vestiu-se de realidade a partir do momento em que fatos e hábitos tornaram esta acusação uma possibilidade. Paiakan, mesmo sem ter as provas divulgadas pela imprensa, foi condenado pela opinião pública conforme foi apresentado pelos representantes da voz do povo (Landowski, 1992) – imprensa e políticos.

O povo também condenou, segundo a imprensa e representantes do governo, os cinco jovens que queimaram o índio Galdino. Enquanto o assunto repercutia em Brasília, o público questionou o fato de os índios correrem o risco de ficarem para fora da pensão, além dos motivos que levaram aqueles jovens a cometer ato tão primitivo, mas sempre impulsionada pela imprensa. Segundo o jornalista Luiz Nassif, em suas críticas publicadas no jornal Folha de São Paulo, em 1997, e revisadas por ele mesmo em 200336: a opinião pública apenas os condenou em manifestações que clamava pelos direitos dos povos indígenas. No entanto, este estudo observou que houve sim um forte apelo pelos direitos dos índios, mas impulsionados pela imprensa e por ordens do governo que pr etendia preservar sua imagem na esfera internacional.

A exemplo do caso Galdino, a princípio acreditou-se na possibilidade de que a mobilização realizada pelos índios tivesse sido a responsável pela repercussão, mas, apesar de compreender que isso contribuiu para alimentar a imprensa com informações, logo se percebeu a inviabilidade em crer nesta hipótese, pois a imprensa jamais perderia o controle sobre uma informação. Ela sobrevive deste controle. Em entrevista a esta pesquisa, o representante indígena Carlos Terena, relembra fatos relacionados ao caso Galdino que contribuem para confirmar esta observação:

“Lá no IML eu falei para os repórteres que nós íamos fazer um velório, um protesto, e todo mundo achou legal a notícia. (...) Eu não sou ‘fazedor’ de notícia, mas se têm fatos, você trabalha com eles negativamente ou positivamente, de acordo com o que você quer fazer com a noticia. Ele é bom ou é ruim. Nós temos que ter realmente a capacidade de saber o quê que está fazendo e pra quê que está fazendo e quais as conseqüências de tudo isso. A sociedade de uma maneira geral ela vive de fatos, (...) a mídia também, o próprio jornal, o jornalismo, eles vivem de fatos. Ela repercute uma notícia aqui e dá a mesma notícia em noutro lugar com o mesmo fato. (...) A morte, por exemplo, do índio Cretã, tudo mundo já esqueceu,. A morte do Tubain, no Mato Grosso, uns anos atrás, já passou. E a morte daquele Chicão que foi sacrificado, imolado. Que o cara atirou nele e disse ‘eu matei mesmo’ Isso já passou, nem repercutiu, então a sociedade vai esquecendo porque é a imprensa que informa. E mesmo depois que o Galdino morreu nos ficamos acompanhando pari passo (...) e ninguém mais está preocupado porque isso já passou”.

O interesse da imprensa em direcionar o olhar da massa está relacionado ao consumo de bens materiais e não materiais. Os materiais são os bens relacionados à publicidade; os não materiais, isto é, os valores morais de ordem social, talvez sejam os mais importantes por serem os responsáveis pela manutenção de uma cultura. Como se pode notar,

“A sociedade modernizada até o estágio do espetacular integrado se caracteriza pela combinação de cinco aspectos principais: a incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo”. (DEBORD, 1997:175)

No período pós Ditadura Militar, os meios de comunicação necessitavam manter uma qualidade informativa, e também desenvolver o entretenimento para atender aos novos padrões de consumo. Estas relações de domínio sobre a informação tornam-se mais freqüentes, até mesmo por uma questão de sobrevivência dos veículos de comunicação. Nesse período, as indústrias começaram a produzir mais e a classe média, como conseqüência, passou a consumir mais. O entretenimento vinha para prender ainda mais a atenção das massas e, dessa forma, garantir a publicidade o retorno desejado em vendas dos produtos anunciados. À medida que o IBOPE37 crescia, avançavam também as técnicas de publicidade e os recursos econômicos nos meios de comunicação pela venda de espaços publicitários. Esses recursos eram novamente investidos em estratégias para prender o leitor, ou ouvinte, ou ainda, o espectador. Foi quando começou a delinear o que mais tarde se tornaria a filosofia das empresas de comunicação: o padrão de jornalismo baseado na política editorial do veículo. Sabese que:

“O crescimento da classe média, a concentração da população em grandes centros urbanos vão permitir ainda a criação de um espaço cultural onde os bens simbólicos passam a ser consumidos por um público cada vez maior. Em 64 inaugura um período de enorme repressão política e ideológica, mas significa também a emergência de um mercado que incorpora em seu seio tanto as empresas privadas como as instituições governamentais. Durante o período 64-80 ocorre uma formidável expansão, a nível da produção, da distribuição e consumo de bens culturais. É nesta fase que se dá a consolidação dos grandes conglomerados que controlam os meios de comunicação de massas (TV Globo, Ed. Abril, etc).” (ORTIZ, 2003:83)

Para a imprensa, que deveria noticiar todos os fatos que fossem de interesse do público e do governo, era fundamental agradar a todos para evitar atritos que poderiam interferir nos interesses econômicos dos veículos de comunicação. Poderiam falar sobre qualquer coisa, desde que não prejudicasse a credibilidade do povo no governo:
esses foram os resquícios do Regime Militar. Como conseqüência, definir a linha editorial de um veículo de comunicação poderia ser determinante para sua sobrevivência. Deste ideal de jornalismo, surgem os padrões de jornalismo com o objetivo fidelizar o público consumidor da informação que havia se tornado produto não-material. Os padrões atuam diretamente nas relações e articulações no sistema social. Para o pesquisador em comunicação, José Luiz Braga (2006):

“A noção de “sistemas sociais” pode cobrir uma gama variada de caracterizações, desde um patamar concreto, de instituições formalizadas e com articulações normatizadas expressamente (“sistema Globo de produções midiáticas”, por exemplo), até um padrão em que o que enfoca não é o agregado real de pessoas,
grupos, idéias e objetos, mas sim “um instrumento intelectual, um procedimento heurístico, um “modelo” destinado a guiar a percepção da realidade”. (BRAGA,2006:29)

No entanto, os padrões de diferentes veículos não trabalham em conjunto, mas as respostas na sociedade acontecem ao mesmo tempo. Cada veículo desenvolve o padrão que melhor atende a sua política editorial, mas todos acabam atuando dentro de um mesmo círculo de intenções e tensões correspondente ao sistema social. O fato é que

“Os diferentes dispositivos e ações
específicas não fazem sistema institucionalizado entre si, mas participam, pela natureza mesmo de suas atividades, de um sistema social mais amplo, reações e interpretações sobre a mídia e seus produtos e processos – de produzir respostas. Isso significa que atividades de uma mesma classe podem ser percebidas como desenvolvidas em diferentes estruturas e uma mesma classe de estruturas pode ser observada gerando classes de atividades diferentes. Podemos falar então em “sistemas processuais”, com relativo deslocamento em relação aos “sistemas estruturais” em que ocorrem. Dito de outro modo: é preciso pensar que os processos eram estruturas tanto quanto as estruturas se realizam em processos”. (BRAGA,2006:30)

O padrão estabelecido pela Revista
Veja na década de 1990, por exemplo, talvez não tivesse a pretensão de mudar o sistema social, mas em viver a partir dele. Uma amostra deste estilo era o uso de pautas com citações que os repórteres deveriam tirar dos entrevistados, as polêmicas denúncias de fontes sigilosas que nunca eram apuradas de fato, apenas polemizadas. A exemplo, o caso Paiakan em que Veja não se preocupou em verificar se a acusação era verdadeira, mas na polêmica que um índio selvagem poderia gerar diante da “opinião pública” que ela mesma coordenava junto com os outros padrões de jornalismo da época – Folha de São Paulo, Rede Globo de Televisão, etc.

A capa do dia dez de junho de 1992, com “O Selvagem” era surpreendente, polêmica, exclusiva, apenas com base em uma acusação mal apurada e o índiopersonagem ao melhor estilo do selvagem, de Hans Staden. Mas, assim como o índio era apenas um personagem baseado em fatos reais, uma simulação, o status selvagem também não representava o real, era a representação do selvagem que melhor cabia à situação. Conforme define o antropólogo Claude Levi-Strauss:

“Cada civilização tende a superestimar a orientação objetiva de seu pensamento; é, por isso, então, que ela nunca está ausente. Quando cometemos o erro de crer que o selvagem é exclusivamente governado por suas necessidades orgânicas ou econômicas, não reparamos que ele nos dirige a mesma censura, e que, aos seus olhos, seu próprio desejo de saber parece melhor equilibrado que o nosso”. (LEVI-STRAUSS, 1976:21)

Selvagem, como sinônimo de primitivo, foi o que a revista Veja e os jornais Folha de São Paulo, e O Estado de São Paulo, entre outros veículos da época, pretendiam dizer para atender à demanda do sistema social. Agiam pelo impulso, pela primitiva necessidade de superação da morte, a morte simbólica e a não simbólica da empresa de comunicação e do produto da informação.”


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Fonte:
Giselle Aparecida Piragis: "CÓDIGOS CULTURAIS E IMPRENSA: O ÍNDIO NA REPRESENTAÇÃO DO BEM E DO MAL". (Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre. Orientador: Prof. Dr. Alberto Klein). Curitiba-PR, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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