Higiene e Eugenia no Brasil - I

HIGIENE E EUGENIA

“O Jeca do conto Urupês, publicado pela primeira vez no jornal O Estado de S. Paulo em 23.12.1914, incapaz de evolução e impenetrável ao progresso, arredio à civilização, vegetando no seu isolamento e ignorância, indisciplinado e refratário ao trabalho árduo e contínuo de que tanto necessitava o país, reafirmava, agora pela via literária, o rol de estigmas que pesava sobre a maioria da população brasileira, corroída por uma inferioridade primordial. Na figura caricata do caboclo de cócoras, Lobato enfeixou de forma altamente expressiva as avaliações pouco lisonjeiras que ele vinha tecendo sobre o Brasil e os brasileiros desde os tempos da Faculdade de Direito. Nessas assertivas pode-se rastear a influência de Le Bon, autor que ele próprio identificou como central na sua formação intelectual.

A rudeza com que Lobato descreveu seu personagem, se, por um lado, parecia confirmar as avaliações feitas pelos que proclamavam a inferioridade racial da grande maioria do povo brasileiro, por outro, abalou uma determinada visão idílica do campo, cultivada por certos setores da literatura, assim como incomodou os que tinham o sertão como berço da raça brasileira em elaboração. Esse contexto certamente colaborou para criar uma polêmica em relação ao grau de verossimilhança entre ficção e realidade, que se tornou ainda mais acesa quando, em 1919, Rui Barbosa citou o personagem no seu famoso discurso sobre a questão social.

O enorme poder evocativo do Jeca permitiu que ele fosse mobilizado com propósitos muitas vezes contrastantes. Assim, para alguns ele era o retrato fiel do homem sertanejo do norte e do sul do país, estagnado na escala evolutiva, uma quantidade negativa, nas palavras do seu criador, inapto para enfrentar os desafios da modernização. Vozes possantes, como a de Câmara Cascudo, saíram em defesa do escritor:

Jeca na porta do casebre, sentado no calcanhar, sugando a terra, ociosa e triste, é peculiar a todo o norte do Brasil... Não quer dizer que o sertanejo ... seja literalmente um Jeca Tatu. Porém, quem viaja e quem vê pelo sertão o fatalismo sertanejo, a limitação da sua agricultura, a instintiva desconfiança pela civilização, a sua habitual indolência que o faz esquecer a rude lição das secas e nada encelerar nos anos de inverno, a sua palestra, a sua ignorância política, enfim, os remédios populares, a ingênua crendice dos curandeiros e das
meizinhas verá a imensa verdade das páginas vivas do Urupês.

A sua decantada incapacidade de compreender as noções elementares da política, era invariavelmente citada pelos críticos do projeto liberal, que colocavam em dúvida a viabilidade do jogo democrático em um país habitado por Jecas. De outra parte, o abandono em que vegetava a população do interior também permitia apresentar o personagem como uma pobre vítima da irresponsabilidade social de governos que só se preocupavam em cobrar impostos. Também não faltaram interpretações que apresentavam o Jeca como produto do meio. Assim, sob a influência benéfica das terras férteis do oeste paulista: "o Jeca, até agora miserável no paupérrimo e ainda atrasado Norte paulista, se transfigurou com a terra do Oeste e, com ele, sua prole ... Os filhos do sertão fizeram-se homens nessa escola de trabalho remunerador e organizado, ganharam ambições, demonstraram iniciativas, conquistaram posição de alto prestígio". Entretanto, ninguém mais do que o próprio Lobato contribuiu para dar ao Jeca outras dimensões.

A eclosão da Primeira Guerra Mundial subverteu o mercado de trabalho internacional, privando o Brasil da mão-de-obra farta e barata até então fornecida pela Europa. Essa nova conjuntura coincidiu com o predomínio, nessa altura inconteste, do paradigma microbiano e bacteriológico que, graças aos trabalhos de Pasteur e Koch, propiciaram uma outra compreensão da causa das doenças, suas formas de transmissão e cura. A identificação dos agentes etiológicos das doenças infecciosas propiciou o desenvolvimento de vários métodos de imunização e combate aos vetores e seus reservatórios naturais. Surgiram métodos específicos de profilaxia, normalmente bastante eficazes, que levaram alguns a acalentar o sonho de que todo e qualquer mal poderia ser remediado pelo novo saber:

A velha medicina - ainda aí presente, recalcitrante, impenitente e por força de rotina sobrevivente durante muitas décadas ainda – é a medicina curativa, remedieira, terapêutica. A nova medicina – já instalada e propagada, de mais em mais, embora a crendice, a ignorância, o misoneismo -, é a medicina preventiva, a higiene, a profilaxia ... A nova medicina funda-se, pois, no conhecimento da causa ou etiologia das doenças, de onde a oposição que a corrige ou suprime, a prevenção que a evita e faz desaparecer. É a ela que pertence toda essa maravilhosa eclosão de ciências da família da Higiene - a Microbiologia, a Parasitologia, a Imunoquímica, a Quimioterapia, a Dietética, a Fisioterapia, a Eugênica que representam as forças novas de ação contra a doença, inventadas pelo gênio humano ... Se eliminarmos as doenças parasitárias, infectuosas e tóxicas, teremos eliminado logo imediatamente quota imensa daquelas que lhe são consectárias. Para não perder tempo no debate basta indagar: quantas
doenças orgânicas, constitucionais, hereditárias, cardiopatias, cirroses, nefrites, epilepsias, degenerações não se suprimirão, acabando com o alcoolismo? Só a sífilis é metade da patologia: noventa e cinco por cento dos aneurismas dos grandes vasos são dessa causa específica ... A Higiene é uma nova medicina, de menos de um século ... Mas a Higiene apareceu, tornou-se moda, impôs-se como hábito e se vai impondo como necessidade. A vacina salva milhões de vidas ... O advento da Microbiologia, procurando o conhecimento da causa das doenças, altera a face do mundo, dando a esperança e já a certeza da vitória sobre a doença. A difteria, a raiva, a peste, a febre tífica, o tétano, o carbúnculo são prevenidos; elas mesmas e outras tantas são curadas; todas são agredidas pela notificação compulsória, o isolamento, a desinfeção ... Como da Astrologia saiu a Astronomia, da Alquimia saiu a Química, sai da Medicina a Higiene. Não é má sorte das larvas produzirem borboletas.

O combate às epidemias que assolavam São Paulo e o Rio de Janeiro, dificultando o pleno funcionamento da economia agroexportadora e afastando de seus portos os trabalhadores estrangeiros, levou os poderes constituídos a criarem, na virada do século XIX, um aparato legal para regular os serviços sanitários, assim como um conjunto de instituições - os Institutos Manguinhos (RJ), Butantã, Vacinogênico e Bacteriológico (SP). Esses centros passaram a ditar os rumos da saúde pública e seus mais ilustres membros, Oswaldo Cruz, Vital Brasil, Emílio Ribas, Carlos Chagas, Belisário Penna, Artur Neiva, entre outros, exerceram posições de comando na área (Mascarenhas, 1949 e 1973; Merly, 1987; Costa, 1985).

As vitórias de Oswaldo Cruz sobre a malária, a febre amarela, a varíola e a peste bubônica acabaram por dobrar as resistências impostas pelos detratores das novas práticas. (Carvalho, 1987, Stepan, 1976; Brito, 1995). A Higiene, ungida pelo prestígio que somente a ciência era capaz de conferir, adentrava o cotidiano dos indivíduos, inspecionando, vigiando e controlando por meio de um conjunto de normas, cuidados, prescrições e recomendações.

As péssimas condições sanitárias da população rural brasileira, que motivaram a famosa máxima de Miguel Pereira proferida em 1916 - o Brasil é um vasto hospital - não se constituía propriamente em uma novidade. Entretanto, sua afirmação encontrou terreno extremamente propício para frutificar. Na mesma época, outros higienistas como Belisário Penna, Artur Neiva e Afrânio Peixoto também começaram a denunciar sistematicamente o quadro desolador do interior do país. Penna, com a autoridade de quem, juntamente com Neiva, percorreu durante vários meses sertões distantes, avaliava que mais de dois terços dos habitantes

se definham, se abatem, se degradam e se arruinam, chupados e empreguiçados pelos vermes intestinais; picados, sugados e intoxicados por mosquitos, percevejos e barbeiros; a bater queixos, a carregar baços colossais; ou aleijados, paralíticos, cretinos, papudos e cardíacos, com o sangue e tecidos repletos de protozoários patogênicos; roídos e apodrecidos em vida pela lepra e pelas úlceras; cegos pelo tracoma, pela varíola, pela sífilis e pelas gonococcias; aviltados pela cachaça; entocados em pocilgas de taipa e palha; e atolados na mais espessa ignorância de rudimentares preceitos de higiene, suficientes para livrar a coletividade de doenças transmissíveis, para apurar e melhorar a raça, e arrancar-lhe o infamante labéu, infelizmente até certo ponto verdadeiro, de preguiçosa e incapaz, devido às doenças, cujos focos se multiplicam incalculavelmente em milhões de indivíduos incurados, abandonados, portadores de vermes e de germens, para serem inoculados nos incautos, pela terra, pela água, pelos alimentos, pelas moscas e pelos mosquitos barbeiros; foi preciso que a tremenda conflagração européia nos impossibilitasse a importação de mais lenha humana de boa qualidade para queimar criminosamente nessa fogueira de endemias evitáveis, ou deixar até esfarelar-se; foi preciso que a nação fosse arrastada até o descrédito, e levada às portas da falência moral e material, por uma série de aventuras, de erros e de crimes, praticados à luz do dia; foi preciso tudo isso, para começarmos a enxergar as misérias da nossa gente, e o criminoso abandono em que a havíamos deixado, taxada de incapaz, e marcada inconscientemente com o ignominioso ferrete de raça vil e desprezível, indigna de ocupar um lugar na face da terra.

Descrições do gênero, eivadas de dramaticidade, tornaram-se lugar comum. Recorria-se a cifras e porcentagens, inventariavamse doenças, como que para dar um sentido literal à frase de Miguel Pereira. Exemplar, nesse sentido, era o relatório de Oswaldo Cruz a respeito das condições sanitárias da área em que estava sendo construída a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Afirmava o sanitarista que "a região está de tal modo infectada que a sua população não tem noção do que seja o estado hígido e para ela a condição de ser enfermo constitui a normalidade".

Também os artigos publicados no Estado no decorrer de 1918 por Monteiro Lobato, que se engajou apaixonadamente na
campanha em prol do saneamento, ilustram a mesma tendência, bem expressa nos títulos: Dezessete milhões de opilados; Três milhões de idiotas; Dez milhões de impaludados. Este material foi posteriormente enfeixado no livro Problema Vital, editado pela Revista do Brasil sob o patrocínio da Liga Pró-Saneamento e da Sociedade Paulista de Eugenia, com prefácio de Renato Kehl” (...)

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Fonte:
"A REVISTA DO BRASIL: UM DIAGNÓSTICO PARA A (N)AÇÃO”: TANIA REGINA DE LUCA. Editora UNESP. São Paulo, 1998, 202.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra.
As referência bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas no citado livro.

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