Thomas Kuhn: A função da ciência normal e das revoluções

A função da ciência normal e das revoluções

“Alguns aspectos dos escritos de Kuhn poderiam dar a impressão de que seu relato da natureza da ciência é puramente descritivo, isto é, que seu objetivo não é outro que descrever as teorias científicas ou paradigmas e a atividade dos cientistas. Fosse esse o caso, então o relato da ciência de Kuhn teria pouco valor como teoria da ciência. Uma suposta teoria da ciência, baseada apenas na descrição, estaria aberta a algumas das mesmas objeções que foram levantadas contra o relato indutivista ingênuo de como se chegava às próprias teorias científicas. A menos que o relato descritivo da ciência seja formado por alguma teoria, nenhuma orientação é dada quanto a que tipos de atividades e produtos de atividades devem ser descritos. Especialmente as atividades e as produções de cientistas picaretas precisariam ser documentadas com tantos detalhes quanto as de um Einstein ou de um Galileu.

É um erro, contudo, considerar a caracterização da ciência de Kuhn como se originando somente –de uma descrição do trabalho dos cientistas. Kuhn insiste que seu relato constitui uma teoria da ciência porque inclui uma explicação da função de seus vários componentes. Segundo Kuhn, a ciência normal e as revoluções servem funções necessárias, de modo que a ciência deve implicar estas características ou algumas outras que serviriam para desempenhar as mesmas funções. Vejamos quais são estas funções, segundo Kuhn.

Os períodos de ciência normal dão aos cientistas a oportunidade de desenvolver os detalhes esotéricos de uma teoria. Trabalhando no interior de um paradigma, cujos fundamentos dão como pressupostos, eles são capazes de executar trabalhos teóricos e experimentais rigorosos, necessários para levar a correspondência entre o paradigma e a natureza a um grau cada vez mais alto. É através de sua confiança na adequação de um paradigma que os cientistas são capazes de devotar suas energias a tentativas de resolver os enigmas detalhados que se lhes apresentam no interior de um paradigma, em vez de se empenharem em disputas a respeito da legitimidade de suas suposições e métodos fundamentais. É necessário que a ciência normal seja amplamente não-crítica. Caso todos os cientistas fossem críticos de todas as partes do arcabouço no qual trabalhassem todo o tempo, trabalho algum seria feito em profundidade.

Se todos os cientistas fossem e permanecessem cientistas normais, então uma ciência específica ficaria presa em um único paradigma e não progrediria nunca para além dele. Este seria um erro grave, do ponto de vista kuhniano. Um paradigma incorpora um arcabouço conceitual específico através do qual o mundo é visto e no qual ele é descrito, e um conjunto específico de técnicas experimentais e teóricas para fazer corresponder o paradigma à natureza. Mas não há motivo algum, a priori, para que se espere que um paradigma seja perfeito, ou mesmo o melhor disponível. Não existem procedimentos indutivos para se chegar a paradigmas perfeitamente adequados. Conseqüentemente, a ciência deve conter em seu interior um meio de romper de um paradigma para um paradigma melhor. Esta é a função das revoluções. Todos os paradigmas serão inadequados, em alguma medida, no que se refere à sua correspondência com a natureza. Quando esta falta de correspondência se torna séria, isto é, quando aparece crise, a medida revolucionária de substituir todo um paradigma por um outro torna-se essencial para o efetivo progresso da ciência.

O progresso através de revoluções é a alternativa de Kuhn para o progresso cumulativo característico dos relatos indutivistas da ciência. De acordo com este último ponto de vista, o conhecimento científico cresce continuamente à medida que observações mais numerosas e mais variadas são feitas, possibilitando a formação de novos conceitos, o refinamento de velhos conceitos e a descoberta de novas relações licitas entre eles. Do ponto de vista específico de Kuhn isto é um engano por ignorar o papel desempenhado pelos paradigmas na orientação da observação e da experiência. Exatamente porque os paradigmas possuem uma influência tão persuasiva sobre a ciência praticada no interior deles é que a substituição de uni por outro precisa ser revolucionária.

Vale a pena mencionar uma outra função servida pelo relato de Kuhn. Os paradigmas de Kuhn não são tão preciosos que possam ser substituídos por um conjunto explícito de regras, como foi mencionado acima. É bem possível que cientistas diferentes ou diferentes grupos de cientistas interpretem e apliquem o paradigma de uma maneira um tanto diferente. Face à mesma situação, nem todos os cientistas chegarão à mesma conclusão ou adotarão a mesma estratégia. Isto possui a vantagem de o número de estratégias tentadas ser multiplicado. Os ricos são distribuídos, assim, através da comunidade cientifica e aumentadas as chances de algum sucesso a longo prazo. “De que outra forma”, pergunta Kulin, “poderia o grupo como um todo distribuir as suas apostas?”


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Fonte:
Alan F. Chalmers: “O que é Ciência afinal?” Tradução: Raul Filker. Editora Brasiliense, 1993, 134-136.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra.

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