A importância de Descartes



“Sabemos que Descartes elabora sua metafísica no momento em que escreve a obra Méditations sur la Philosophie Prémière. Sabemos também que juntamente com a confecção do seu Discurso do Método e os Princípios da Filosofia, o filósofo moderno apresenta uma ordem das razões à medida que tenta encontrar um fundamento indubitável para o conhecimento na intenção de efetivamente fazer Ciência. Por esta via, Descartes duvidará de todas as coisas, e mais, terá certeza de que está duvidando. Por consequência, estará certo do que pensa e existe; saberá que Deus existe e não pode enganar; e, por fim, fundamentará uma ciência do mundo a partir das ideias claras e distintas. Dessa ciência, ele poderá então retirar as aplicações técnicas, tornando, dessa maneira, o eu que sabe senhor da Natureza. O problema é que neste itinerário do sistema cartesiano surgirão implicações ontológicas, como as tratadas por Merleau-Ponty e que expusemos acima sobre a união corpo e alma. Sobretudo, surgirão confusões quanto à natureza deste eu que alcançou tudo isto que fora dito acima. Grosso modo, a questão que queremos evidenciar expondo isso é: por tudo que Descartes expôs nas Meditações, ou seja, considerando sua ontologia substancialista, quem afinal é este eu que conhece? Será a res cogitans das duas primeiras meditações, a mistura (corpo e alma) da sexta meditação, ou é o homem que resulta de sua metafísica? O porque deste problema e sua possível solução queremos mostrar através da análise das Meditações feita por Merleau-Ponty. Mas, primeiramente devemos fazer alguns apontamentos para a compreensão do porque seja necessário fazermos tal como o fazemos.

Nos Princípios, lembra-nos Alquié, Descartes diz que toda filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica; o tronco, a física; e os ramos, que saem deste tronco, as outras ciências, que podem ser reduzidas a três princípios, quais sejam, à medicina, à mecânica e à moral. Por isso, Alquié afirma que a maioria dos comentadores toma esta fórmula como o segredo último da ordem cartesiana, considerando o desenvolvimento de tal sistema por uma lógica rigorosa que nele já estaria intrínseca. Para eles, a metafísica seria o fundamento da física no pensamento cartesiano, e desta física, por sua vez, seria possíveldeduzir aplicações. No entanto, Alquié sugere-nos considerar que Descartes não pretendeu, nesta metáfora da árvore, apresentar uma ordem de dependência lógica para interpretação correta de sua filosofia, pois, no pensamento deste filósofo moderno, a constituição histórica do sistema nunca é negada em proveito do próprio sistema, ao contrário, os fatos permanecem sempre recordados e retomados. Para o comentador francês, longe de qualquer preconceito psicológico, devemos analisar a ordem histórica dos pensamentos de Descartes pelo seu próprio nascimento: Descartes queria constituir uma ciência objetiva e, por volta de 1630, pela perspectiva do plano do objeto e de seu criador, deu-se conta nas Meditações, do cogitocomo princípio e fonte dessa superação, enquanto não descobria nas cartas a Mesland, de 1645, que o pensamento contém uma liberdade que se pode desviar do próprio Ser. Lembremos que tal carta foi também retomada por Merleau-Ponty como o momento em que Descartes coloca o problema do corpo vivo e conjugado com a alma que apontamos anteriormente.

No sistema cartesiano, evidentemente nas Meditações, a metafísica precede e fundamenta a física, entretanto, esta mesma metafísica sucede no tempo a física e apenas se constitui em reação contra esta mesma física. Isso significa, explica Alquié, que a metafísica descobre por oposição à finitude não-ontológica dos objetos que compõem o universo da ciência, o Infinito que o faz ser e pela oposição ao homem técnico que se encontra submetido às leis do mundo em que atua. Tal infinito é Deus, ou seja, o criador destas leis. Desse modo, a dúvida no início das Meditações supõe previamente a objetividade do que negará: a ordem em que aparece, embora não pareça reter uma anterioridade cronológica da ciência relativa à metafísica, supõe na própria realidade essa anterioridade.

Assim, a metafísica de Descartes parte da negação. Podemos observar isso na “meditação primeira”, quando Descartes coloca em causa as essências matemáticas, e também na “segunda meditação”, quando descobre o eu penso, ou, o homem como o ser desta contestação. Todavia, Alquié argumenta que às vezes comentadores buscam analisar a obra de Descartes, buscando coerência entre os textos para obter deles valor objetivo no conjunto das ideias que estes textos podem revelar, e acabam reduzindo esta obra. Por outro lado, existem comentadores que buscam explicar Descartes por sua história, pois, para eles, a ordem legítima do cartesianismo não está no encadeamento lógico entre ideias, mas na ordem temporal em que seu pensamento vivo se desenvolveu. Para tal impasse, o comentador francês sugere que consideremos um apontamento de Bréhier em La philosophie et son passé , obra na qual escreve que a busca pela causalidade é possível sobre o que existe de acidental numa filosofia e não no que nela existe de essencial. Alquié escreve que Bréhier condena as tentativas daqueles que pretendem explicar os sistemas como fatos, buscando suas causas nos acontecimentos do tempo e no temperamento do autor trabalhado. Para Bréhier, essa conduta dos historiadores demonstra apenas a incompreensão destes do que seja realmente a Filosofia à medida que esquecem que o projeto do filósofo é o de se libertar da história, julgando-a em vez de suportá-la. Disso, Alquié nos fornece um apontamento importante:

A filosofia não é para Descartes um conjunto de ideias, é um pensamento: a sua ordem verdadeira não se pode confundir com o sistema, deve compreender o homem […] A filosofia de Descartes é um itinerário ontológico vivido, um movimento para o Ser […] o que a dúvida retoma, é o próprio ser do homem […] Para Descartes, o absoluto aparece no fim, isto é, depois da ciência, e depois da reflexão que descobre o cogito como fonte da própria ciência. Mas permanece no começo, razão pela qual o Deus de Descartes pode ir ao encontro do Deus do Cristianismo, simultaneamente Criador e reencontrado pelo homem no termo de uma ascese. Ele está no princípio, está antes do mundo e antes do eu que colocou no Ser. Mas Deus só pode ser atingido a partir do mundo que se abre diante dos nossos olhos ou do eu que contempla esse mundo.

A importância desta colocação é o fato de que nela está apoiada a maioria das interpretações sobre o eu como sendo o próprio homem no pensamento de Descartes; interpretações que emergem de uma análise minuciosa e, ao mesmo tempo, conjunta da obra cartesiana. Parece-nos que a leitura mitológica de Descartes, que Merleau-Ponty realiza, segue este mesmo caminho.

Alquié argumenta sobre isto que, é neste sentido, que a veracidade do homem equilibra o sistema e por esta via podemos perceber que não existe uma ordem cartesiana, mas duas, nas quais esta ideia de homem é fundamental: 1) O movimento de Deus para o mundo pelo caminho da veracidade divina, da verdade das essências e do conhecimento científico, é o movimento temporal da tomada do mundo por uma técnica segura; 2) O movimento do mundo posto em dúvida para a certeza do eu e para a de Deus, é o movimento da regressão ao ser, que é toda a metafísica. Para Alquié, apenas o homem torna possível a coincidência destes dois movimentos contrários, que “definem a sua situação [homem] e fazem do seu ser o de uma liberdade”, como avistava Descartes nas cartas a P. Mesland.

Mas, será que podemos dizer que por este caminho Descartes se dirigiu efetivamente para a ciência que almejava, ciência que nos ofereceria os fins vitais e ao mesmo tempo os meios de os atingir? Alquié responde: é evidente que não, muito pelo contrário, Descartes se afasta dela e não consegue fundamentar um saber universal e certo a não ser despojando a Natureza de todo o ser próprio. Para Alquié, o pensamento de Descartes resulta, sobretudo, numa tensão e num esforço dirigido contra a nossa apreensão espontânea das coisas. A atitude cartesiana traduz-se por uma espécie de heroísmo antinaturalista, o oposto de uma visão confiante ou poética do real. O comentador explica: “a concepção cartesiana não deixa de ser trágica: mas esse caráter trágico é, por excelência, anti-romântico”. Neste sentido, é que no pensamento de Descartes, e em seu século (XVII), podemos dizer que o sentido da Naturezafoi menosprezado, e apenas as paixões e a glória do homem foram exaltadas, uma vez que a Natureza, tanto na visão dos filósofos como na visão dos físicos desta época, foi interpretada exclusivamente como resultado do mecanicismo. Assim, o Ser, apenas, foi descoberto, neste momento, na consciência e na vontade, isto é, no homem e em Deus.

Diante disso, a tarefa da crítica merleau-pontiana a Descartes é indagar sobre a relação entre representação e mundo, subjetividade e objetividade, que fora destinada pela empresa do último para a ligação exclusiva entre sujeito e objeto. Merleau-Ponty tomará o legado cartesiano pela perspectiva do problema da relação de alteridade e da Natureza. Em relação a Deus ou à perspectiva e vontade substancialista de um único ser, ao qual toda uma pluralidade dos indivíduos estaria condenada, Merleau-Ponty argumentará que a humanidade não parece ser constituída de indivíduos que participam de uma mesma essência pensante. Para Merleau-Ponty, a humanidade parece estar sim destinada a uma “situação instável”. Segundo Merleau-Ponty, cada individuo parece acreditar no que reconhece interiormente como verdade, entretanto, ao mesmo tempo este individuo pensa e decide estando já preso à relação com o outro: “não há vida em grupo que nos livre do peso de nós mesmo, que nos dispense de ter uma opinião; e não existe vida interior que não seja como uma primeira experiência de nossas relações com o outro”.

Para Merleau-Ponty, posso perfeitamente pensar o espírito tal como Descartes o formulou, mas apenas posso concebê-lo se realizando, ou seja, saindo de si mesmo, à medida que o vejo participando da vida do mundo. Estamos sós e misturados ao mesmo tempo, e esta situação ambígua emerge porque temos uma história individual e coletiva, além de um corpo. Segundo Merleau-Ponty, Descartes teria avistado isso quando criticou a metáfora aristotélica da alma como o piloto em seu navio e a concebeu muito estreitamente unida ao corpo, “como observamos quando dizemos que temos dor de dente”. Contudo, o problema surgiu quando, mesmo atribuindo o reconhecimento da união às experiências obtidas através da vida prática, Descartes ainda sustentou o pensamento vinculado a uma concepção mecanicista do corpo e manteve a separação radical da substâncias que a própria união havia negado. Ele encontrou o homem e a estrutura da reflexão, mas quis retornar ao mundo da coisa pensante mesmo depois de tê-la reconhecido homem, como se pudesse separar o que é de princípio e o que é de fato. O fato para Merleau-Ponty é que às vezes “acontece aos homens se reconhecerem e se encontrarem”, como num momento de raiva em que posso constatar tranquilamente este sentimento pelo pensamento; mas posso também, por minha experiência, constatar que tal sentimento às vezes não parece uma simples animação da alma, inexplicavelmente ele está presente em meu corpo e pode ser traduzido como um comportamento.

Para esclarecer tal ponto de vista, Merleau-Ponty partirá em suas primeiras obras da premissa de que o existente está no mundo em detrimento da máxima, do paradigma a ser confrontado, a saber, cartesiano, que reserva a ele conhecer o mundo, como apontamos anteriormente. Merleau-Ponty descreverá a fusão da consciência com o universo e seu compromisso dentro de um corpo, ou seja, sua coexistência com o outro. A proposta passa à revisão e, se for o caso, refutação, da sexta meditação cartesiana para fundamentar a importância primordial da experiência perceptiva, propondo assim um sujeito encarnado ao mundo. Neste empreendimento, veremos então, no decorrer desta dissertação, como Merleau-Ponty buscará a motricidade originária do corpo como alternativa ao corpo mecânico cartesiano e tentará fundamentar que a mistura entre nós e o mundo precede a reflexão recuperando, como veremos em a Estrutura do comportamento, o legado existencial deixado por Descartes numa tentativa de fixar o sentido dos sentimentos, ou melhor, do comportamento.

Portanto, é assim que podemos também argumentar com Alquié que “a filosofia de Descartes apresenta-se simultaneamente como uma ordem de razões e como um itinerário espiritual” e que “desdenhar um desses aspectos seria mutilar Descartes”. Por isso, apresentaremos as Meditações supracitadas por Merleau-Ponty, tentando seguir seu rigor para melhor avaliar a que conclusões podemos chegar. Para tanto, contamos com o auxilio dos comentadores de Descartes, para confeccionar uma análise detalhada do pensamento deste na obra de Merleau-Ponty, principalmente nas obras merleau-pontianas Estrutura do comportamento e Fenomenologia da percepção. A intenção será também ressaltar as aproximações e distanciamentos da filosofia de Merleau-Ponty com a filosofia de Descartes.

A questão sobre a natureza do eu exposta por Descartes nas Meditações pelas ideias de corpo, alma e mistura, como dissemos, trazem consigo implicações ontológicas, e tais implicações tentaremos ressaltar em nossa análise confrontando ao passo que evidenciamos a leitura feita por Merleau-Ponty. Veremos então adiante que, na “segunda meditação”, Descartes fornece a tese de que a alma é substância imaterial e puro intelecto, que caracteriza o que podemos chamar de movimento intelectualista na obra deste autor e que será criticado por Merleau-Ponty. Na “sexta meditação”, no entanto, a existência do corpo e do corpo unido a alma, introduzirá a importante tese ontológica de que o homem é uma unidade composta que consiste numa mistura íntima entre duas substâncias que são, entretanto, distintas e excludentes. Neste momento é que Descartes teria avistado a imbricação homem e natureza. A mistura íntima significaria que as substâncias não estão de maneira alguma justapostas e, dessa forma, não se completam e tampouco são incompletas, tratando definitivamente de uma mistura. Portanto, a natureza da alma e do corpo será apresentada por Descartes na sexta meditação, não apenas como naturezas diversas, mas contrárias. Aqui estaria mais um ponto da crítica de Merleau-Ponty: o movimento naturalista da sexta meditação, terreno fértil para a construção de uma nova filosofia capaz de tratar do encarnado. Ambos os movimentos serão importantes para a análise da leitura merleau-pontiana de Descartes na Estrutura do Comportamento e na Fenomenologia da Percepção que adiante exporemos."

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Fonte:
Eloísa Benvenutti de Andrade: “Corpo e Consciência: Merleau-Ponty, crítico de Descartes”. (Dissertação apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP/Marília, para obtenção do Título de Mestre em Filosofia. Área de concentração: Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica Orientador: Prof. Dr. Jonas Gonçalves Coelho). Marília, 2010.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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