Princípios da Filosofia

“Nos Princípios da Filosofia, Descartes vai definir um pouco melhor o vocabulário ontológico utilizado ao longo das Meditações Metafísicas. Segundo Garber, “Como parte do projeto de tornar sua filosofia apropriada para o ensino nas escolas, Descartes tentou dar uma exposição clara da estrutura metafísica na qual sua concepção de corpo (e mente) se encaixa, definições claras e explicações semelhantes aos tipos que um estudante estava acostumado a encontrar em um manual como o de Estachius, o manual que ele tinha em mãos. Isto envolvia uma definição mais clara de substância que a que ele tinha dado até então”.

Tentaremos acompanhar, através da análise de alguns dos artigos dessa obra, como Descartes realiza essa conceituação mais precisa de seu vocabulário e como essa conceituação nos ajuda a entender um pouco melhor qual é a relação existente entre a substância extensa, sua extensão e seus modos. Pois essa relação, entendida estritamente segundo o texto da Sexta Meditação e das respostas a Hobbes, pode nos levar à consideração de que ela se dá unicamente no plano da relação entre diferentes conceitos (por exemplo, o conceito de figura envolve, para ser entendido, o conceito de extensão, sendo que o contrário não acontece). Ao aclarar e diferenciar os conceitos de modo e atributo (que antes pareciam poder ser tomados um pelo outro sem problemas), a relação de dependência ontológica existente entre eles vai passar para o primeiro plano. Os artigos analisados serão: o 48, 51 a 57, e 60 a 63 da parte I; e o artigo 1 da parte II, onde é provada a existência do corpo extenso, prova que pretendemos comparar com a prova da existência do corpo presente nas Meditações.

No artigo 48 da parte I dos Princípios da Filosofia, Descartes faz uma separação e catalogação de “tudo aquilo de que temos alguma noção” (Princípios 48, I) ou que cai sob a alçada de nosso conhecimento. Teremos as coisas e suas afecções (atributos, modos etc.) e as noções comuns ou axiomas. As primeiras têm algum tipo de existência, as segundas não possuem nenhuma existência fora de meu entendimento. Para as coisas existem algumas noções gerais aplicadas a todas elas em geral, por exemplo, as noções de duração, existência, ordem e número e até mesmo outras mais. Estas “noções gerais” devem ser aplicadas a todo tipo de substância, elas são afecções (por assim dizer) anteriores à diferenciação entre substância extensa e substância pensante. Além dessas noções gerais, temos algumas noções mais particulares usadas para distinguir as substâncias em dois tipos diferentes: a noção de extensão (o corpo) e a de pensamento (mente), sendo que cada uma delas possui um conjunto de propriedades exclusivo. Além desses dois conjuntos de propriedades, ainda haveria um terceiro conjunto que não pode ser referido nem ao corpo unicamente, nem ao pensamento unicamente, a saber: apetites, sensações, e emoções (ou paixões da alma). Como dito anteriormente, nos pareceu adequado interpretar que essas afecções ou são afecções da alma (dependentes em alguma medida do corpo) ou afecções de um terceiro tipo de substância: a substância composta de corpo e alma, apresentada em uma carta à princesa Elizabeth como uma noção primitiva (conferir nota 43), comparada ao que a extensão é para o corpo e ao que o pensamento é para o espírito.

Depois de catalogar as noções referentes às coisas possuidoras de alguma existência (extra-mental, embora ainda não comprovada nesse momento da argumentação), Descartes dá um segundo passo: vai definir melhor essas noções de maneira a explicitar todo um vocabulário ontológico próprio. A primeira distinção feita diz respeito (51, I) à substância e a seus atributos/modos. Substância é qualquer coisa capaz de subsistir por si mesma, ou melhor, apenas Deus seria capaz de tal subsistência, portanto essa noção de substância não deve ser usada de maneira unívoca em relação a Deus e às coisas criadas. Rigorosamente, apenas Deus subsiste por si mesmo, enquanto os demais seres criados e dependentes da ação continuada do criador se dividem entre aqueles que, para existir, dependem apenas da ação divina e aqueles que, para existir, dependem de um substrato que os apóia na existência, ou seja, substâncias e, além dessas, suas qualidades, atributos e modos.

A simples independência ontológica apenas é capaz de nos fornecer uma compreensão do que é a substância, mas não nos permite verificar sua existência real no mundo. Para que possamos fazer isso, é preciso que as substâncias afetem de algum modo o sujeito por meio de suas qualidades ou modos. Baseados no axioma “o nada não têm propriedades”, podemos chegar à conclusão de que onde existem propriedades ou atributos existe uma substância (um substrato ontológico que os sustenta). Apesar de possuir diversos atributos (ou modos, mais à frente a distinção entre essas duas noções será explicitada, porém, em um primeiro momento, o vocabulário ainda é usado de uma maneira mais vaga), um deles em cada um dos tipos de substância têm um papel especial e diferenciado, é seu atributo principal e essencial (todas as demais afecções/qualidades da substância vão depender desse atributo especial). No caso da substância material, tal atributo é a extensão e, no caso da substância espiritual, tal atributo é o pensamento. A relação que esse atributo especial mantém com as demais características da substância é uma relação de subordinação e dependência; todas as características de uma substância extensa vão pressupor a extensão e depender da extensão, visto que essas mesmas características são maneiras diferentes de algo se estender no espaço. A partir de agora fica um pouco mais claro como vai se dar a relação ontológica existente entre a extensão e os demais modos presentes em um corpo extenso: a dependência existente não é apenas lógica (a noção de figura necessita, para ser compreendida, da noção de extensão) mas de outro tipo, pois os modos do corpo extenso (por exemplo, a figura) dependem, para existir, da extensão (daí por que Descartes vá preferir o termo modo ao termo tradicional acidente).

Assim podemos considerar que as substâncias cartesianas (substratos portadores de certa independência ontológica) possuem três níveis diversos de qualidades: as noções gerais que se referem a todos os tipos sem distinção (ordem, número e duração), seus atributos essenciais (o pensamento e a extensão), os quais constituem a essência e natureza da substância, e por fim os modos, que não passam de maneiras sob as quais o atributo essencial se diversifica.

A partir dessa classificação, fica claro que o corpo extenso cartesiano apenas vai ter um conjunto particular de propriedades intimamente ligadas à extensão, assim como a substância pensante tem seu conjunto particular de propriedades dependentes do pensamento. Essa é a concepção distinta e clara que podemos ter de cada uma delas. E, a partir dessa idéia clara e distinta, enfim podemos garantir que são realmente distintas uma da outra.

Nessa mesma obra, não só as noções de atributo essencial, modo e substância serão explicitadas, mas também a noção de distinção, que será dividida em Real, Modal e de Razão (60, I). “O n mero que observamos nas próprias coisas deriva da distinção entre elas” (60, I). O primeiro tipo de distinção observado a distinção real entre duas substâncias de atributo diferente ou muitas substâncias de mesmo atributo. Ou seja, o corpo e a alma são realmente distintos (mesmo havendo uma composição de fato no caso do ser humano) , assim como diversas mentes também vão ser realmente distintas.

A distinção real vai depender da possibilidade de pensar uma substância independentemente de outra. Podemos pensar a substância extensa sem pensar o espírito, da mesma maneira que podemos pensar uma mente independentemente de outras mentes. No entanto, em nenhum momento Descartes confunde a distinção no plano dos conceitos com a distinção real no plano das existências. Como as Meditações deixam claro, é preciso primeiro validar as idéias claras e distintas por meio da veracidade divina para depois garantir sua adequação com o mundo por meio de provas racionais dependentes da veracidade divina. Primeiro Descartes garante a verdade da idéia (sua realidade objetiva), para enfim provar a existência no mundo de uma realidade formal que lhe corresponda. Assim, primeiro adquirimos as idéias claras e distintas de dois tipos diversos de substâncias, para depois constatar que essas substâncias são realmente distintas no mundo.

O segundo tipo de distinção é a distinção modal: ela permite diferenciar entre uma substância e seus modos e entre os diversos modos de uma mesma substância. Nesse tipo de distinção, a substância pode ser pensada independentemente de qualquer um de seus modos, e cada modo pode ser pensado sem que se precise pensar em outro modo. Por exemplo, a substância extensa pode ser pensada sem a figura, mas a figura não pode ser pensada sem a substância extensa; por sua vez, o movimento pode ser pensado sem que se pense a figura e vice-versa.

Um terceiro tipo é a distinção de razão: nela se distingue uma substância de seu atributo essencial e das noções gerais (como a duração e a existência). Esse tipo de distinção não passa de uma abstração, pois não podemos entender as substâncias sem essas características (um corpo que deixa de ser extenso deixa de ser corpo, da mesma maneira que, se deixa de durar, deixa de ser substância), nem essas características independentes entre si.

Toda essa análise dos Princípios até o presente momento foi realizada para que pudéssemos entender um pouco melhor a lógica substancial do cartesianismo e para que enfim seja possível entender algumas das críticas que Leibniz dirige a essa teoria, assim como as respostas que Leibniz dará aos problemas ocasionados pela Filosofia cartesiana.

No entanto, antes de terminarmos, vamos nos remeter brevemente à prova de existência dos corpos presente nos Princípios da Filosofia, comparando-a com a prova presente na Sexta Meditação. A prova funciona basicamente da mesma maneira. A partir da idéia de corpo (realidade objetiva) se busca uma realidade formal que seja sua causa. Para isso, primeiro o próprio sujeito pensante tem de ser desqualificado como causa, depois Deus e enfim qualquer outro ser portador de uma realidade formal superior à realidade objetiva da idéia de corpo. No entanto, a prova apresenta algumas diferenças a serem consideradas. Em primeiro lugar, Descartes parte do convencimento partilhado por todos de que existem corpos (ninguém precisa ser convencido da existência do mundo material por uma elaborada contraprova), entretanto esse convencimento do senso comum não é suficiente para o projeto cientifico e filosófico de Descartes, que precisa de uma rigorosa prova que justifique essa persuasão. O passo seguinte, assim como nas Meditações, diz respeito à desqualificação do sujeito pensante como o causador da realidade objetiva das representações do mundo material que possui. Visto não estar no poder do sujeito controlar livremente as representações do mundo material que tem em sua mente, não pode ser devido ao sujeito que estas representações existem na mente. Assim como na prova anterior, o constrangimento tem um papel decisivo ao desqualificar o sujeito como o responsável pela representação do mundo material na mente. O próximo passo da prova é demonstrar que a causa dessas representações do corpo não pode ser Deus ou qualquer outra causa diferente do corpo material.

Deus não poderia ser a causa dessa representação, porque é sumamente veraz, não engana em nenhum momento ou circunstância. No entanto, como na prova anterior, fica aberta a possibilidade de que as representações do corpo sejam causadas por qualquer outro ser possuidor de uma realidade formal maior do que a realidade formal do corpo, que aliás, por ser muito pequena, deixa totalmente indeterminado o que seria essa causa eminente (possuidora de mais realidade formal do que seria preciso para ser causa da realidade objetiva ínfima da representação do corpo). Porém aqui parece surgir uma pequena diferença: se na versão anterior da prova a inclinação natural teve um papel determinante, agora parece ser diferente, pois ao invés de invocar a grande inclinação que tenho a acreditar que o corpo existe e corresponde à minha representação dele (sendo essa inclinação validada pela veracidade divina, que não guarneceu o sujeito de qualquer meio para desmentir essa mesma inclinação), a clareza e distinção parecem ser invocadas. Na verdade, nesse momento, o foco da prova parece estar mais na clareza e distinção da minha percepção da extensão como do corpo material: “porque sentimos, ou antes, porque muitas vezes os nossos sentidos nos levam a percepcionar clara e distintamente uma matéria extensa em comprimento, largura e altura” (1, II, versão francesa) e ainda de maneira mais patente na versão latina: “e parece-nos também que vemos claramente que a sua id ia vem das coisas postas fora de nós” (1, II, versão latina). Como a prova vai terminar por constatar que a representação de corp o extenso que tenho é claramente percebida como correspondendo a um corpo extenso existente no mundo, isso parece demonstrar uma pequena mudança de foco. O foco passa dos argumentos filosóficos extremamente elaborados da Sexta Meditação, com a consideração da inclinação natural e da veracidade divina, para uma prova mais científica, com a consideração no corpo daquilo que percebemos mais clara e distintamente.”

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Fonte:
Wilson Alves Sparvoli: “A Questão das Substâncias Corporais em Leibniz”. (Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Luís César Guimarães Oliva). São Paulo, 2010.

Nota
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