

Segundo Aluízio Alves  Filho, em As metamorfoses do Jeca  Tatu,  o personagem apareceu pela primeira vez num publicado no jornal O Estado de S. Paulo, intitulado “Velha praga”,  e  em outro artigo chamado “Urupês”.  Os dois integrariam, mais tarde, o livro de contos publicado em 1918 com o título de Urupês. A primeira identidade do Jeca Tatu – que, para  Alves Filho, foi a  que  mais se  fixou no  imaginário social como representativa  da identidade  do brasileiro  –  foi a  do caipira. Nessa primeira  construção,  Monteiro Lobato descrevia o Jeca Tatu como um caboclo de barba rala, fruto da mistura do branco com o índio, que  vivia  incrustado na  Serra  da  Mantiqueira  e  que  nada  fazia senão  ficar de  cócoras e modorrar. Alves Filho chama aten ão para  o fato de  que, com o adjetivo “umberava qualquer”, modo atrav s  do qual o neto do barão de  Trememb   qualificava  o Jeca  Tatu, oescritor taubateano localizava socialmente o “soturno personagem” como um indivíduo sem posse, sem tradição familiar e analfabeto, isto é, como agregado. Lobato o classifica também como o eleitor de cabresto da Primeira República que vegetava à margem da civilização. Pelo seu modo de  vida,  determinado pela carência  de  terras e  de  bens e  pelo seu atavismo, considerava-o um parasita, um “piolho da  terra”  que  nada  produzia e  que  estava  sempre alienado de sua época.
Alves Filho também vê  nessa primeira  identidade  do Jeca  Tatu o produto de estereótipos típicos de um proprietário rural na Primeira República. Lobato se utilizaria desses estereótipos como ironia, como modo de  chamar atenção para  a  miséria  da  população do campo. Mas, ao mesmo  tempo responsabilizaria  o agregado pelo atraso brasileiro. Por  isso retratava  o umberava  como  agregado, preguiçoso, irresponsável, predador e  avesso à civilização.
Com o Jeca, Lobato critica também o fato de a elite brasileira sempre se enredar por determinações exógenas  em detrimento das endógenas, fato que  teria dado origem a  uma visão distorcida  do homem e  da  identidade  brasileira. Segundo ele, esse tipo de  visão encobriria a corrupção dos sistemas eleitorais e a condição de vida miserável das populações do interior.
A primeira  metamorfose  sofrida pelo “Piraquara  do Paraíba”  na  imaginação de  seu  criador foi em 1918. O Jeca Tatu, que tinha sua identidade construída a partir da ótica de um dono de terras a respeito da população pobre do campo brasileiro, considerado um inadaptável à civilização, passava a ser vítima dela. Nessa época Lobato pediu perdão ao Jeca, por tê-lo ignorado  como  um doente, na  epígrafe  de  Problema vital (1918). Neste livro, influenciado pelo contato com as propostas de intelectuais que fomentavam a campanha feita entre os anos de 
Segundo Alves Filho, o objetivo de Monteiro Lobato 
O Jeca doente de  Problema vital se transformou no Jeca subdesenvolvido, a partir da comparação que Lobato estabeleceu entre Brasil e Estados Unidos – durante a época em que morou neste país, entre 1927 e 1931. Impressionado com a riqueza daquela nação, passou a ver a industrialização como a mola propulsora do progresso. Foi nesta fase da vida de Lobato que, em sua  imaginação, o Jeca  apareceu não apenas como a  identidade  do caipira, mas também como a do brasileiro 
Contudo, em seu livro As metamorfoses do Jeca Tatu: a questão da identidade  do brasileiro 
Com mais ou menos letras, mais ou menos roupas, na Presidência da República sob o nome de Wenceslau ou na literatura com a Academia Brasileira de Letras, no comércio como na indústria, somos todos uns irredutíveis Jecas. O Brasil é uma Jecatatuásia de oito milhões de quilômetros quadrados (Alves Filho, 2003).
Em 1947 aconteceu a última metamorfose do Jeca na imaginação de Monteiro Lobato. “O Zé  Brasil”   o título de um conto que foi criado após os seis meses que literato passou preso em uma “casa  de  detenção”. Ele foi condenado a  cumprir  pena  por  denunciar que  o governo de  Getúlio Vargas teria  privilegiado a  Standard Royal Dutch em detrimento das iniciativas nacionais  de  encontrar petróleo. Na  prisão, Lobato  conheceu  José Crispin, um modesto operário que  havia sido preso, acusado  de  ser comunista. Nessa  época  o escritor também ficou amigo de Caio Prado Júnior, estudioso marxista, e de Luís Carlos Prestes, líder comunista.
Para  Alves Filho, nesse  período Monteiro Lobato deixou de  responsabilizar o trabalhador  rural pelo atraso de  nossa  sociedade  e  passou a  apontar  as atitudes das classes dominantes, vinculadas à estrutura fundiária do país, como fatores causais do nomadismo e da  pauperização do agregado: a partir daí o Jeca transfigurou-se 
Esta é  a  trajetória literária do Jeca  na  obra  de  Monteiro Lobato. Ela retrata o modo como o literato via o caipira, o povo brasileiro e os problemas do país. Já itinerário do Jeca Tatu no imaginário social   diferente. Aluízio Alves Filho a  qualifica  como uma “casca  vazia”; trata-se  de  uma fórmula  que  pode  ser retomada  a  qualquer  momento, ilustrando as diferentes  situações  do  homem e  da  cultura  brasileira.  Contudo, existiria  em todas  as  construções do  senso comum  um traço ideológico constante: a  representação  do caipira  haurida do estereótipo da  preguiça, ou seja,  como um tipo humano avesso à  civilização  capitalista; a imagem do brasileiro como um povo antiempreendedor.
O elemento fundamental dessa construção simbólica seria o contraste, de início, com a classe  latifundiária  e,  mais tarde, com  os países desenvolvidos capitalistas, em especial os Estados Unidos da América. Alves Filho considera que esse tipo de representação responsável  pela permanência do Jeca  no nosso imaginário  social é  uma elaboração típica  de  uma sociedade subdesenvolvida, dependente de capital estrangeiro e rigidamente estratificada em classes, com uma acentuada  concentração de  renda  e  poucas  possibilidades de  mobilidade social vertical.
Esse suposto hiato a  que  nos referimos, entre  as intenções do neto do barão de Tremembé e as construções do imaginário social, seria causado pela progressiva separação de Lobato em relação às crenças médias e  aos padrões derivados de  sua situação de  classe original de  proprietário  de  terras. As metamorfoses produzidas por Lobato em seu personagem  Zé  Brasil, a  última  identidade  do  Jeca  Tatu, estariam ausentes do imaginário social. E isso ocorre devido à posição subalterna ocupada pelo caipira na estrutura produtiva de nossa sociedade, impedindo que ele assuma as feições positivas daquele responsável pela modernização de nossa economia e de nosso país.
É importante ressaltar  que  Aluízio Alves Filho emprega  o conceito de  ideologia frisando sua função de  justificar a  exploração  e  a  desigualdade. A ideologia dominante burguesa condiciona a atitude e o modo de pensar de todas as classes da sociedade em que é produzida. Esta seria, portanto, a razão apontada por ele para o hiato existente entre a intenção de  Monteiro Lobato e  a  imagem do brasileiro e  do caipira  conforme veiculada  pelo senso-comum.
A imagem do brasileiro e do caipira Jeca Tatu no nosso imaginário social foi tecida e montada  em torno do estereótipo da  preguiça. Ela seria, portanto, uma representação ideológica da classe latifundiária vinculada aos setores exportadores. Já Monteiro Lobato, ao contrário, à medida que se conscientizava das reais condições econômicas e sociais do Brasil, se distanciou da estética e dos valores da classe latifundiária à qual pertencia. Por isso, com o tempo, abriu-se um hiato entre o Jeca Tatu como criação da imaginação do literato e o Jeca Tatu construído e mobilizado pelo imaginário social. Com este último, a sociedade brasileira racionalizaria  desigualdades socioeconômicas  internas e  externas, através de  binômios subjetivos como responsabilidade / irresponsabilidade e labor / preguiça.
Aluízio Alves Filho chama atenção ainda para o fato de que o Jeca Tatu permanece no  imaginário social como identidade nacional porque remete à bondade do povo brasileiro. Na representação ideológica  das classes subalternas,  não importam os defeitos que  possam ser atribuídos ao povo brasileiro porque, este é  essencialmente  bom. O arquétipo do Jeca  Tatu alimentaria  assim o mito da  bondade  e  ingenuidade  como essências nacionais. Essa construção derivaria do preceito rousseauniano que associava bondade e natureza. O homem  selvagem é  bom. O Jeca  caipira, por viver em contato a  natureza, também é  bom. O tipo construído por Lobato sustentava desse modo a crença na alma rural do homem brasileiro e na sua bondade.
O nome Jeca possui um forte apelo emocional dada a empatia que o povo brasileiro sente por essa designação, fato que também contribui para a permanência simbólica do Jeca Tatu no imaginário social. Alves Filho afirma que a empatia é originada no fato  de o nome “Jeca”  ser corruptela  de  “Zeca”,  tratamento coloquial, íntimo e  carinhoso de  José.  Pela identificação com José, Zé  ou Zeca o nome “Jeca”, induz a pensar a figura-tipo construída por Lobato como alguém íntimo, querido e bom.   
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Fonte:
DORA VIANNA VASCONCELLOS: "O HOMEM POBRE DO CAMPO NO PENSAMENTO E NO IMAGINÁRIO SOCIAL”. (Dissertação  submetida como  requisito para obtenção  do  grau  de    Mestre  em Ciências, no  Curso  de Pós-Graduação  de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. Sob a orientação do Prof. Dr. Raimundo Santos). UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009.
Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada.
 
 
 
Onde posso achar a dissertação completa? O site do programa não oferece.
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