O virtual e o real

“Quando discutimos assuntos ou textos referentes ou pertencentes à Internet, o termo “espaço virtual” aparece com freqüência, pois, por um lado, ele é fruto de pressupostos do senso comum, ou seja, diz-se que este é o espaço ocupado pela Internet; por outro lado, existem posicionamentos mais acadêmicos que traduzem o termo “virtual” sob um outro olhar.

Para Lévy (1996, p. 15) “a palavra virtual é empregada com freqüência para significar a pura e simples ausência de existência, a ‘realidade’ supondo uma efetuação material, uma presença tangível”. Nesse âmbito, seria possível considerar o texto da Internet como um texto que habita o espaço virtual, desprovido de realidade, num mundo invisível e aguardando uma efetivação material que o torne tangível. No entanto, pressuposições do senso comum, associadas ao pensamento dos teóricos incluídos em nosso trabalho, podem ser um ponto inicial de nossa busca, mas não parecem ser o caminho mais profícuo ou suficiente para determinar a rota de nossas investigações.

Para que consigamos um aprofundamento maior, e conseqüentemente um resultado analítico mais próximo de nossos objetivos, devemos estender a nossa visão sobre o “espaço virtual” e suas implicações a outras dimensões. Lévy (op. cit. p. 16) também afirma que “o virtual é o que existe em potência, não em ato. (...) é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização.” Ao adotarmos essa linha de pensamento, o “espaço virtual” pode ser considerado de uma maneira mais ampla. Ele não é simplesmente a ausência de realidade, mas sim o que já tem potência de existir, faltando-lhe apenas o ato, a ação. Não se trata de uma concepção que habita um mundo irreal e que espera uma oportunidade para habitar o mundo real, mas sim de uma complexidade de potências de existência esperando a oportunidade para fluir, uma latência que aguarda um momento para agir, para atuar, para se movimentar. Para que essa passagem ocorra, é necessário que aconteça um movimento, uma ação dinâmica, a qual capturará algumas das potências de existência e lhes dará uma finalidade que não existia até a consolidação desse processo. É possível observar que, na concepção de Lévy, o virtual não se opõe ao real, e sim ao atual; um conjunto amorfo de potências de ser (espaço virtual) que passa a ter uma configuração dinâmica na atualização, cuja origem ocorre na deflagração de um ato de apreensão que seleciona parte desse conjunto, dando-lhe forma e propósito.

Entretanto, a concepção de “virtual” pode ir um pouco mais adiante dessa que acabou de ser proposta. Segundo Weissberg (1993, p. 119) “o virtual no lugar do real corresponde a uma dicotomia visivelmente exportada das categorias de representação (imagem no lugar do objeto, máquinas no lugar do homem etc)”. Ao pensar-se dessa forma, o espaço virtual poderia ser compreendido numa outra dimensão, a de ser um espaço onde ocorrem representações da realidade. Um objeto qualquer é real, mas uma reprodução imagética desse objeto é virtual: um filme de cinema é, portanto, essencialmente virtual; ele nada tem de real, somente representações. Assim também ocorre com os computadores e com a Internet, um espaço onde não há objetos reais, e sim a representação deles através de uma tela eletrônica.

Entretanto, ocorre, assim, o desdobramento de mais um aspecto que problematizará a questão. Segundo acabamos de ver, o virtual pode também ser uma representação do real. Desse modo, como resolveríamos a questão de, por exemplo, uma maquete criada por computador para conceber a existência real de um objeto? Weissberg (op. cit., p. 120) postula que “o virtual aparece aqui como uma dimensão do real, não voltado simplesmente a substituí-lo (o que faz também quando se evita o recurso a um protótipo para conceber um objeto, por exemplo)”. Dessa forma, o virtual passa a ter um papel além da representação do real, e figurando como uma extensão deste com a possibilidade de substituir o real em algumas circunstâncias; é o caso da concepção de um protótipo virtual que pode ser concebido antes de uma maquete, que também é a representação do objeto. Em alguns casos, a maquete sequer chegará a existir, pois a sua versão digital será suficientemente satisfatória antes da produção do objeto. Em outros casos ainda, o objeto será gerado apenas para existir na tela do cinema, da TV ou do computador, uma criação puramente “virtual” (na concepção de Weissberg), um “objeto virtual” cuja intenção não é a de abandonar as telas, mas sim a de lá permanecer. Esses objetos podem não encontrar condições de existência fora desse espaço, pois lá podem se comportar da maneira que o usuário do programa determina, uma criatura que não se comportará necessariamente de acordo com as leis físicas do espaço real (a menos que isso seja também determinado no virtual), mas que terá o seu comportamento limitado apenas pelas características do equipamento utilizado e da imaginação do seu criador.

Das três possibilidades de criação vistas até o momento, ainda resta uma que também pode nos auxiliar na análise de nosso corpus. Uma idéia que acaba fundindo o real e o virtual, pois segundo Weissberg (op. cit. p.120), “a trajetória mais brilhante não é a que leva do real à simulação, mas a que contém os dois, que os assemelha e transforma cada componente em desafio ao outro: não mais o virtual puro, mas o compacto real virtual que é uma forma ainda mais desconcertante”.

Dessa forma, é possível haver quatro maneiras de se pensar numa criação originada no espaço virtual. Primeiro, uma representação da realidade, uma criação cuja referência é um objeto real do mundo material, aproximando o objeto virtual da concepção saussuriana de signo. Segundo, uma forma que poderia ser chamada de “maquética”, em que um objeto virtual é criado antes do objeto real, como uma maquete que é parte de um projeto de criação de uma peça, por exemplo. Terceiro, uma possibilidade de dupla existência em que uma é a dimensão adicional da outra, o virtual existe porque existe o real e vice-versa; a existência de um completará as falhas ou incompletudes do outro, um alcançará as dimensões que somente são permitidas a ele mesmo, dadas suas condições físicas de existência. Isso poderá até mesmo causar um efeito tanto de cooperação ou complementação mútua, quanto o de concorrência ou antagonismo, transformando os dois objetos em aliados ou opositores. E por último, temos a problematização, pois até agora estávamos lidando com objetos separados, existindo em mundos separados, cooperando ou não. A conseqüência iminente é um objeto híbrido, ou um compacto de real e virtual sem a necessidade de ser nenhum dos dois, uma formação desconcertante que não precisa mais ser localizada na dicotomia usual. Fora dessa dicotomia, ele passa a ter existência própria, é dotado de características e atributos diferenciados, concebíveis, delimitáveis e possíveis de se descrever, em outras palavras, torna-se real.

As concepções teóricas vistas até então podem ajudar-nos a entender melhor o fenômeno do hipertexto. Uma levará em conta o espaço das possibilidades de existência, ou seja, a de que o texto da Internet não é necessariamente um texto virtual, mas possível. Ele já existe nos milhões de arquivos eletrônicos, aguardando somente uma realização, uma transformação de algo ininteligível à leitura do olho humano em algo inteligível e dotado de uma materialidade para esta mesma leitura. Este seria o fenômeno da realização, a apreensão de textos possíveis e a dotação de materialidade reconhecível à interpretação humana, a reprodução na tela do computador. A partir desse ponto, ocorreria a atualização, a leitura humana dotada de inferências subjetivas, a qual possibilitará o surgimento de novas idéias que retornarão tanto ao espaço virtual quanto ao espaço das potências de ser.

Por outro lado, vemos também a possibilidade de se considerar o virtual como um desdobramento do real, desde uma reprodução maquética de um objeto real a uma criação existente somente na tela do computador, um ser híbrido que não tem a necessidade de ser transformado em papel, no caso de um texto, para ser tangível.

As duas definições traçam caminhos diferentes, mas acabam convergindo num ponto: o texto visto na tela pode ser considerado real, pois está pronto para submeter-se à atualização humana; sua diferença, nesse aspecto, está no suporte. A questão para resolvermos é como essa realidade pode ser atingida e analisada.

Além de enxergar o conflito entre o virtual e o não-virtual, é interessante também estudarmos esse fenômeno sob o ponto de vista da hipertextualidade. Segundo Lévy (1996, p. 43), “um continum variado se estende assim entre a leitura individual de um texto preciso e a navegação em várias redes digitais no interior das quais um grande número de pessoas anota, aumenta e conecta textos uns aos outros por meio de ligações hipertextuais. Portanto, ao visitar a página inicial de nosso corpus, estaremos diante de uma mônada composta de vários links
para abrir outras unidades textuais que podem ser organizadas e reorganizadas de acordo com a manipulação do leitor. Contudo, a classificação de Lévy não distingue a hipertextualidade de unidades textuais abertas através dos links de uma página inicial sobre um único assunto – como é o caso do Web Jornal da CNN sobre 11 de Setembro – da hipertextualidade originada a partir da navegação no processo de abertura de todo e qualquer link que leve um internauta a outras páginas (outras home pages). Embora esse conceito seja útil, grosso modo, para se entender a movimentação da Internet e os sentidos que podem ser construídos a partir daí, tem-se a impressão de que qualquer ordem de abertura de todo e qualquer site funciona na geração de um “continuum de ligações hipertextuais”, um pressuposto que parece tender ao generalismo."


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Fonte:
Sidney de Campos: "O EVENTO DE 11 DE SETEMBRO NOS EUA E O DISCURSO DA INTERNET". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Profa. Dra. Deusa Maria de Souza-Pinheiro Passos). São Paulo, 2006.

Nota
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A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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