Imprensa e abolição da escravidão



[...]
"A afirmação de que a imprensa transformou-se numa arena de debates sobre a abolição da escravidão pode causar uma falsa impressão de que havia um consenso em favor do fim do cativeiro. Essa visão está longe de expressar a realidade. Os jornais abolicionistas eram minoria diante daqueles defensores da escravidão ou “indiferentes” à questão. O que queremos destacar é que “tais meios de comunicação expressavam os embates da sociedade, agindo como reprodutores e criadores desses movimentos” (Morel; Barros, 2003: 89); embates estes que anteriormente ficavam circunscritos dentro das instâncias de poder do Império. A grande contribuição da imprensa era evidenciar as diferentes visões e os interesses em disputa, envolvendo uma maior parcela da população. Essa era a expectativa dos abolicionistas ao buscarem publicar seus artigos na imprensa e fundar seus próprios jornais.

José do Patrocínio destacou-se à frente de alguns periódicos, como a Gazeta de Notícias, a Gazeta da Tarde e a Cidade do Rio, disparando seus ataques contra o escravismo. No mesmo sentido, atuou o jornal O Abolicionista, criado em 1880, pela Sociedade Brasileira contra a Escravidão, instituição presidida por Joaquim Nabuco. O periódico defendia a abolição em nome da civilização e divulgava as cartas e moções de apoio de sociedades internacionais abolicionistas. No decorrer da década de 1880, o número de jornais abolicionistas se multiplicou; eles variavam quanto às propostas referentes à resolução da questão servil e, muitas vezes, tinham curta duração e pouca penetração na sociedade. Todavia isso não minimiza a sua relevância, “a sua atuação; entretanto, refletia a falta de sustentação do escravismo” às vésperas da abolição (Machado, 1993: 19). Os jornais republicanos, que tinham como principal foco a crítica ao sistema monárquico, adotaram normalmente uma posição ambígua em relação à abolição da escravidão.

Os abolicionistas sensibilizavam o público narrando os sofrimentos dos escravos, apelavam aos senhores em nome dos princípios humanitários e responsabilizavam o governo imperial pela manutenção do cativeiro. Tudo com o intuito de demover os opositores e conquistar o apoio dos indiferentes à causa. Para apreender a presença desse debate na imprensa não podemos nos limitar a olhar apenas o editorial ou os artigos de opinião publicados nessas folhas. A análise deve considerar o jornal como um todo, repleto de “pedaços de significação”, dando atenção para as diversas seções: os folhetins, as crônicas de costumes, as notícias policiais, as cartas dos leitores e os anúncios (Schwarcz, 2008: 15). Como alertou Marcos Morel, nesses espaços “a escravidão e o escravo aparecem com força, disseminando-se entre a sociedade visões, comportamentos e atitudes que influíam
nas relações sociais vigentes” (Morel; Barros, 2003: 89). Através dessa perspectiva de compreensão dos periódicos, é possível perceber seus paradoxos e contradições, assim como constatar o quanto era desafiador fazer uma imprensa abolicionista numa sociedade ainda escravista.

O recurso financeiro era um primeiro obstáculo. Os jornais dependiam dos anunciantes para sua manutenção, sendo boa parte de seus classificados ocupada por anúncios de compra, venda e aluguel de escravos, além daqueles que ofereciam prêmios pela captura de escravos fugidos. Esse tipo de anúncio era encontrado na Gazeta de Notícias, apesar de o jornal ser antiescravista e ter franqueado suas primeiras páginas para artigos de José do Patrocínio e transcrições de discursos de Joaquim Nabuco. Nos jornais de sua propriedade, José do Patrocínio não aceitava quaisquer anúncios de venda e fuga de escravos. Procurava publicar tudo o que pudesse contribuir para o avanço das ideias contrárias ao escravismo: “resumos de conferências, datas e locais de eventos destinados à obtenção de fundos para campanha abolicionista, alforrias e violências cometidas contra os escravos” (Machado, 1993: 18-19). A análise desses periódicos demonstra com clareza o trabalho do jornalista, o processo de seleção dos fatos e reconstrução dos acontecimentos, com a finalidade de transformá-los em notícias que despertassem a atenção dos leitores.

O jornalista não escreve os fatos tais como eles aconteceram. Apesar de ser um tempo
vivido, não é possível reproduzir fielmente a realidade. Isso não quer dizer que a imprensa invente fatos. O melhor seria afirmar que a notícia é o produto final de um processo minucioso de construção. A realidade não se apresenta na forma de acontecimentos dados, definidos, com significados postos a priori. A tarefa de seleção, que pressupõe a necessidade de realizar escolhas, é parte constituinte dessa operação. Cabe ao jornalista eleger no confuso emaranhado de eventos ocorridos aqueles que devem virar notícia, assim como preterir outras versões. Desse modo, os jornais são responsáveis por uma reconstrução, transformam um conjunto de acontecimentos que se apresentam desordenados e ininteligíveis em fato, atribuindo-lhe sentido através da produção de uma narrativa organizada.

Esse procedimento, que foge à neutralidade, pontua o importante papel desempenhado
pela imprensa na construção da memória. Os jornais têm o poder de determinar o que deve ser lembrado e esquecido pelos seus leitores. Através do texto impresso, configura-se o registro que ficará para a posteridade. Por meio da ordenação da notícia no corpo do jornal, busca-se estabelecer uma distinção entre o conjunto de informações veiculadas e determinar o que é mais relevante. A possibilidade de dirigir a seleção e a construção da memória investe os sujeitos envolvidos nessa operação de um importante poder.

Conscientes desse poder, os abolicionistas da década de 1880 souberam usufruir muito bem dessa condição através das páginas dos periódicos. Marco Morel faz referência ao caso da escrava Eduarda, que levou os jornais a mobilizarem a população da Corte
(Morel; Barros, 2003: 86-88). Essa jovem escrava, após sofrer com os maus tratos de sua senhora, foi procurar socorro na redação da Gazeta da Tarde, sob direção de José do Patrocínio. Uma vez acudida, a escrava comunicou que havia na casa de sua senhora uma outra ainda em pior situação. Com o auxílio da justiça, os abolicionistas conseguiram libertar a cativa. Após o devido tratamento médico, as escravas seguiram pelas ruas da cidade, amparadas pelos líderes abolicionistas num grande cortejo. Durante o trajeto, visitaram as redações dos principais jornais da Corte. A intenção era dar a conhecer,a todos as atrocidades cometidas contra os escravos. O objetivo foi atingido, pois o drama vivido pelas escravas Eduarda e Joana virou notícia e ocupou as páginas dos periódicos da cidade, mesmo daquelas publicações que não assumiam uma posição claramente antiescravista.

No intento de dar fôlego à campanha contra a escravidão, os jornais abolicionistas publicavam qualquer notícia favorável, isto é, selecionavam os acontecimentos e os relatavam, segundo sua perspectiva, de forma que pudessem estimular novos avanços e mobilizar a opinião pública para a causa. Na Gazeta da Tarde, José do Patrocínio utilizava diferentes
estratégias;uma delas era publicar rotineiramente os casos de escravos alforriados sem ônus. Normalmente, eram situações em que o senhor libertava um ou dois escravos, os únicos que ainda possuía. Essas iniciativas deviam representar para o leitor o aumento da adesão dos brasileiros ao movimento abolicionista. No entanto, é possível identificar no Jornal do Commercio, de caráter conservador e escravista, esses mesmos relatos, observando-se, contudo, a diferença na forma de construir o texto e atribuir-lhe significado.

Na Gazeta da Tarde, construía-se uma representação original desse acontecimento, que era repleta de significados. Essas notícias vinham sempre sob o título “Crônica do Bem”. Os nomes dos senhores eram sempre mencionados, como se fossem beneméritos, enquanto os dos escravos normalmente eram omitidos. Sem dúvida, o foco da notícia era a ação de um cidadão
que se recusava a manter uma instituição que dia a dia perdia prestígio e tornava-se um constrangimento. No dia 07 de janeiro de 1884, o jornal publicava sob aquele título:

“O senhor conselheiro Silveira da Motta comemorou o aniversário da filha restituindo a liberdade aos seus escravos. O senhor João Lourenço de Seixas restitui a liberdade a sua escrava em seu aniversário de casamento”
(Gazeta da Tarde, 07 de janeiro de 1884)

Deixemos de lado nessa oportunidade a discussão sobre a ocasião escolhida para consumar o ato. Ao afirmar que a liberdade era restituída, o jornal marcava um posicionamento diante do dilema entre o direito de propriedade e o direito de liberdade. Para José do Patrocínio, o escravo era um ser humano que tinha sido privado de sua liberdade, que seria um direito natural; desse modo, utilizava o acontecimento para corroborar sua concepção de que a escravidão era um roubo. Por isso ainda, na maioria de seus artigos, ele se refere ao cativo como escravizado, pois ninguém nasceria já escravo. Enquanto isso, o Jornal do Comércio referia-se a
esse tipo de evento como concessão da liberdade, privilegiando a ideia do direito de propriedade. O exemplo citado evidencia que a imprensa se apresentava destituída de imparcialidade e procurava moldar os acontecimentos. A notícia nada mais é do que um “relato de alguém sobre o que aconteceu”, e não o que aconteceu no “passado imediato” (Machado, 1991: 24).

No discurso dos defensores do fim do cativeiro, a instituição era condenada, entre
outros motivos, por não ser concernente à civilização. Nada melhor para reforçar esse argumento do que denunciar as violências cometidas contra os escravos. Em 1887, o jornal O Paiz noticiava, com certa repugnância, o caso de uma escrava que, prestes a morrer, recebeu a carta de alforria de seu senhor. Mais tarde, após um tempo de tratamento, ela restabeleceu a sua saúde. O ex-senhor ao ver a ex-escrava novamente apta ao trabalho, solicitou que ela retornasse aos seus trabalhos e essa passou a vender objetos nas ruas para o ex-senhor. Durante o mesmo ano, o jornal ainda denunciou em suas páginas os abusos cometidos pelas autoridades públicas contra os libertos.

À medida que aumentava a deslegitimação da escravidão, houve um tensionamento nas relações entre senhores e escravos. As fugas e os quilombos, que sempre foram estratégias de resistência utilizadas pelos cativos, tornaram-se mais constantes, o que gerou grande impacto na
produção agrícola. Os escravos recebiam o apoio de libertos, comerciantes locais, homens livres e também de elementos das camadas médias insatisfeitos com a condução dada ao problema pela via parlamentar. A Lei dos Sexagenários, aprovada em 1885, por seu caráter reacionário, estimulou a busca por outros meios de concretizar as transformações sociais, que os setores escravocratas se negavam a aceitar. Alguns abolicionistas passaram a se envolver diretamente com os escravos. Em São Paulo, foram chamados de caifazes esses novos atores que iniciaram ações na área rural, organizaram fugas das fazendas, disseminaram ideias abolicionistas nas senzalas e incitaram os escravos à rebelião. Dessa forma, eram construídas conexões entre a campanha desenvolvida nos centros urbanos e no campo, aproveitando os conflitos já existentes entre escravos, senhores e feitores. Essa aproximação entre diferentes setores sociais e a ameaça de uma insurreição em massa levava pânico aos habitantes das cidades, que passaram a concentrar cada vez mais escravos fugidos e recém-libertos.

A radicalização ocorria dos dois lados. Diante da ação direta dos grupos abolicionistas,
as instâncias de poder optaram por aumentar a repressão, buscando impor o controle e restabelecer a ordem. Todavia, faltavam às autoridades públicas condições suficientes de manter a segurança dos senhores; estes tinham que utilizar os seus próprios recursos para vigiar e repreender sucessivas fugas. Longe de conter a agitação, a severidade e a violência com as quais a indisciplina dos cativos era tratada, faziam estimular e incitar ainda mais o espírito insurreto dos cativos.

É claro que esses acontecimentos não passaram despercebidos pela imprensa. Andréa Pessanha fez uma análise da cobertura dada a essas notícias por alguns jornais antiescravistas da Corte. Na Gazeta Nacional, de propriedade de Aristides Lobo, as fugas eram divulgadas como ações pacatas motivadas pelo desejo de liberdade. O jornalista destacava que

os negros não abandonam o trabalho, e só o fazem em condições muito especiais. Queremos crer, e é o que nos asseguram pessoas fidedignas, somente a respeito de senhores tidos e havidos como bárbaros e inteiramente intratáveis” (Pessanha, 2006: 108).

Logo os escravos só deixavam as fazendas quando eram submetidos ao “mau cativeiro”,
quando se tornavam alvo da brutalidade e da violência de seus senhores. Sugere que, se houvesse benevolência dos senhores, os escravos não fugiriam. Argumento semelhante também apareceu nas páginas do jornal O Paiz, no qual afirmava que “os maus tratos, a frequência de castigo e o abandono nos momentos de enfermidade” eram as razões apontadas para a fuga dos escravos. Para Quintino Bocaiúva, o redator do periódico, as fugas eram uma atitude natural do ser humano de buscar a liberdade (Pessanha, 2006: 110-111). Ao divulgar as fugas em massa ocorridas em São Paulo, na região de Capivari e Itu, Aristides Lobo enfatizava que elas tinham ocorrido sem confrontos, agressões ou destruição das fazendas. Buscava demonstrar o espírito ordeiro dos escravos, que tinham como único objetivo obter a liberdade. Dessa forma, a construção da notícia tinha por objetivo descaracterizar aqueles eventos como atos de rebeldia, como uma revolta escrava. O discurso sobre a justeza dessas ações vinha acompanhado de recomendações aos senhores para que mudassem sua postura e concedessem as alforrias. A concessão da liberdade despertaria no escravo a gratidão ao seu senhor. Como ressaltou Humberto Machado, era “a manipulação do discurso com o objetivo de conscientizar os senhores sobre a inconsequência da preservação do cativeiro” (Machado, 1991: 4). Toda essa atuação da imprensa tinha o objetivo de construir uma opinião pública, isto é, “uma opinião com peso de influir nos negócios públicos, ultrapassando os limites do julgamento privado” (Morel; Barros, 2003: 22). Havia o entendimento de que ao mobilizar os leitores seria possível pressionar os poderes executivo e legislativo a abolir a escravidão.

Nesse debate sobre a abolição, também vinha à tona outras questões. Essa discussão envolvia diferentes setores sociais, havia diversos interesses e propostas em disputa. A liberdade do escravo era só a ponta do iceberg composto por um conjunto de demandas políticas, econômicas e sociais. A escravidão era um elemento estrutural e estruturador do Império; logo tocar nesse pilar era movimentar uma série de questões que estavam a ele imbricadas, como a organização da lavoura, a sociedade patriarcal, o sistema monárquico; em resumo, o status quo imperial. Ao avaliar a imprensa nesse período, Marcos Morel ressaltou a abrangência do debate, que estava associado a outros temas, como “a vinda de mão-de-obra ou de colonos estrangeiros, a identidade nacional em seus aspectos culturais, as reformas das instituições jurídicas e políticas, a violência do aparelho do Estado, o racismo, o cientificismo etc.” (Morel; Barros, 2003: 99) Logo, cada proposta de resolução do problema escravo trazia em si uma avaliação da realidade nacional, uma visão de mundo, uma concepção político-ideológica.

Ao destacar o importante papel da imprensa na luta pela abolição, não deixamos de reconhecer que se trata de uma entre outras tantas arenas de embate. Por maior que fosse o esforço de recriar através das notícias o cotidiano das relações entre senhores e escravos, não era possível abarcar toda a complexidade e dinâmica dessas relações. Ao registrar os acontecimentos, os jornalistas se proclamavam testemunhas da história. Ao escrever seus artigos de opinião, consideravam exercer o papel de atores sociais. No entanto, o movimento
abolicionista não esteve restrito às páginas de seus periódicos. As disputas se desenvolviam em diferentes espaços nos órgãos do poder executivo, no Parlamento, nos tribunais, nas ruas e praças dos centros urbanos e no dia-a-dia das fazendas, onde os escravos desafiavam a autoridade de seus senhores. A pretensão dos jornalistas, como José do Patrocínio, foi fazer da
imprensa um ponto de convergência de todo o debate que ocorria nestes diferentes espaços."

---
Fonte:
Daniel Simões do Valle: "Intelectuais, espíritas e abolição da escravidão: os projetos de reforma na imprensa espírita -1867/1888". (Dissertação apresentado ao Programa de Pós-Graduação em História, do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, da Universidade Federal Fluminense, para obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profª Drª Magali Gouveia Engel). Niterói, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade
.

Um comentário:

  1. O post ficou ótimo! Já está na hora de os historiadores pesquisarem mais profundamente os argumentos pró escravidão para entender melhor que tipo de sociedade se baseia num sistema de escravidão.

    ResponderExcluir

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!