O posicionamento político das Assembléias de Deus

"O temor de uma revolução mundial significava o esfacelamento de uma ideologia burguesa. Carla Luciana Silva entende que o Brasil na década de 1930 combatia o comunismo alicerçado em uma burguesia hegemônica que necessitava de uma mentalidade conservadora, e de imaginários legitimadores.Daí a necessidade da imprensa como um veículo importante nesse empreendimento. Os jornais ao posicionarem-se contra o comunismo definiam um espaço político. Esse veículo de comunicação possibilitava formar e divulgar ideais que transformavam o imaginário social. Embora houvesse uma preocupação nos jornais assembleianos em afastar-se dos temas políticos, o posiciona-mento que adota diante dos comunistas já estabelece claramente de que lado os assembleianos estavam. Os periódicos assembleianos mantinham um caráter conserva-dor. Em todas as épocas demonstraram simpatias com o governo constituído civilmente no Brasil. Qualquer pretensão de oposição às autoridades era visto como uma desobediência, um ato subversivo a própria vontade divina. Os jornais assembleianos insistiam em defender que o poder civil era estabelecido e constituído não por vontade dos homens, mas por vontade divina. Um exemplo deste discurso esta no artigo: Deveres Christãos Para com as Autoricdades Constituidas. Neste artigo é possível diagnosticar qual deveria ser o comportamento do cristão como cidadão diante dos seus representantes eleitos democraticamente.

Toda a alma esteja sujeita as potestades... – Vemos neste verso as obrigações de cada pessoa sem distincção, para com o Estado e suas auctoridades. Podemos ver que toda potestade vem de Deus e são ordenadas por Elle (...) Por isso quem resiste a auctoridade resiste a ordenação de Deus(...) O verdadeiro christão deve ser patriota piedoso, não cedendo às paixões políticas [...]

Nesse sentido, analisando a forma como sistemas religiosos significam o poder político Berger esclarece que a autoridade política é frequentemente legitimada pelo sagrado, ―o poder humano, o governo e o castigo se tornam, fenômenos sacramentais, isto é, canais pelos quais forças divinas são aplicadas à vida dos homens para influenciá-los. Desta forma, ao lado de outros grupos cristãos com posturas anticomunistas, as Assembléias de Deus em certa medida corrobou com o perfil do Estado autoritário que se erigia no Brasil. Como salienta Alcir Lenharo, o agudo anticomunismo que atendia aos interesses religiosos cristãos no período do Estado Novo, serviu de ―eficiente instrumento para denunciar, isolar, desmoralizar o adversário, e fornecer ao Estado uma legitimidade especial, para suas práticas repressivas.

Nos periódicos desse período encontramos vários textos alusivos a posturas políticas bem definidas por parte dos assembleianos. Quando os periódicos teciam louvores ao presidente Vargas, apregoavam que os crentes deveriam se sujeitar às autoridades, e que acima de tudo deveriam ser patriotas, pois argumentavam que o que o espírito é no corpo, são os cristãos na pátria. Estas são seguramente manifestações que demonstram grandes simpatias pelo Estado Novo. Em 1935, o redator do Mensageiro da Paz, Antônio Torres Galvão afirmava que o patriotismo é ―justificável e louvável, sua visão era que:

[...]cada pessoa tem o dever de amar o seu país, concorrer para o seu desenvolvimento, acatar as suas leis e cumprir os seus deveres para com o Estado, visto que não pode ser um bom cristão, sem que se seja um bom cidadão, um elemento útil à família e a pátria.

Para Freston, a experiência dos primeiros missionários suecos, com o sistema de governo de seu país, onde a igreja e o Estado andavam de mãos dadas responde ao comportamento de repulsa à política por parte dos suecos. Era considerada uma virtude no passado assembleiano o seu ―apoliticismo.Todavia seja evidente que todo e qualquer posicionamento não é despretencioso ou desprovido de algum engajamento político. Segundo Freston o interesse dos assembleianos pelo envolvimento da política secular com a igreja é recente, isto se sucedeu principalmente após a reestruturação da Convenção Geral em 1979, em moldes mais burocráticos, permitindo que o projeto de candidaturas coordenadas à Constituinte tivesse um grande sucesso. Todavia percebemos que nunca houve de fato uma desvinculação entre política e religião, mesmo que discursivamente ou partidariamente não tenha ocorrido.

É importante lembrar que o Brasil na década de 1930 foi transpassada por um dos mais fortes períodos de autoritarismos da história da nação. Eliana de Freitas Dutra sugere que mecanismos de controle foram acionados na sociedade, dispositivos mentais e materiais postos em prática na retórica do perigo comunista, de forma que contribuíram para o projeto totalitário do Estado na década de 1930. Entendendo que nesse período estava implícita na sociedade uma disposição totalitária, uma espécie de ―monoteísmo dos valores e dos desejos.

Como lembra Lenharo a política do período pós-Primeira Guerra era profundamente marcada por transformações nos Estados. É nesse momento que emergiam formas de governar pautadas na formulação de um Estado todo poderoso e onipresente. A difusão da idéia de todo nacional, buscava unificar os interesses de grupos e classes de forma que qualquer fragmentação passava a representar o grande inimigo do país. Foi nesse espaço que os imaginários anticomunistas foram criados e fortalecidos, amparados, sobretudo pela idéia de que o Estado era a ―poderosa voz que fala em nome de todos os brasileiros. Logo após serem estabelecidos alguns critérios que fazem com que determinado grupo reconheça determinada identidade, existe o processo não só de reconhecimento, mas de legitimação identitária. Todo processo de legitimação envolve uma questão de poder, que compõe o imaginário social. Para que cumpra sua finalidade esse poder precisa se impor de forma reconhecida e aceita pelos agentes sociais. Nessa perspectiva a teologia foi o instrumento legitimador por excelência da identidade assembleiana, ela contribuiu para a orientação e construção dos sistemas de alteridade. A teologia forneceu um vasto edifício de símbolos que foram utilizados discursivamente para representar os amigos e os inimigos. De maneira geral nas religiões cristãs o cosmos é dividido entre os que pertencem à salvação e aos que pertencem à perdição. Entre os pentecostais prevalece essa percepção maniqueísta da realidade, segundo a qual o mundo estaria vivendo uma luta irreconciliável entre forças divergentes, neste caso fé versus ateísmo, cristianismo versus comunismo, bem versus mal, etc. Nessa perspectiva os assembleianos se esforçaram para se afastar de tudo o que representava o mundanismo. Ligados ao ―mundo estavam todos os seus inimigos, materiais e imateriais. Entre estes inimigos estavam as ameaças da modernidade, do liberalismo teológico, das forças comunistas, dos governos humanos, dos poderes do Diabo e suas influências. Entre as influências mais maléficas do demônio na sociedade estava a sua ligação direta com os pecados dos prazeres da carne, dos vícios, dos jogos, da idolatria, entre outros. O Som alegre advertia:

Mas onde acharemos homens e mulheres com corações tocados por Deus? Sim, nós não os acharemos nos prazeres deste mundo. Os homens querem ser tocados por todas as coisas aqui neste mundo, mas não por Deus. Elles querem chorar, rir e brincar e se deixar levar por toda qualidade de loucura. Querem ver e ouvir uma coisa empolgante e dramática, mas não querem ser dirigidos por Aquelle que tem olhos como chammas de fogo. Tanto mais que deixarmos as coisas terrestres, tanto mais alcançaremos as celestes. Aquelle que somente procura as coisas desta vida se torna inimigo de Christo.

A compreensão dos pentecostais dava conta de que todas as coisas estavam arranjadas cosmicamente por Deus e a realidade deveria ser considerada em relação a esta ordenação. Nesse aspecto os estudos de Berger permitem mostrar que os pentecostais pretenderam relacionar a realidade humana definida com a realidade última, universal e sagrada, ou seja, ―as construções da atividade humana, intrinsecamente precárias e contraditórias, recebem, assim a aparência de definitiva segurança e permanência, os nomoi humanamente construídos ganham um status cósmico. Em correspondência com esse entendimento Andréa de Souza Mina esclarece que mundo no imaginário assembleiano refere-se a um espaço teológico, é o local impregnado de impureza, maldade, desavença, imoralidade, é o lugar do pecado. Tudo que não estiver de acordo com os preceitos bíblicos, fazia parte das coisas mundanas, ou seja, referia-se ao lugar de não aceitação das leis divinas. Os assembleianos procuraram construir uma identidade recorrendo a uma série de representações, as quais foram elaboradas em relação a si e aos outros. Nesse sentido Baczko concebe que:

[...]designar a identidade coletiva corresponde, do mesmo passo, a delimitar o seu território e as suas relações com o meio ambiente e, designadamente com os outros; e corresponde ainda a formar as imagens dos amigos e dos inimigos, rivais e aliados etc.

Ao delimitar seus inimigos, estabelecer os pontos de divergência, a historiadora Carla Luciana Silva defende que nos movimentos anticomunistas, a categorização e definição de um outro, visava configurar o comunismo como um inimigo social, ou seja, articulava-se formas de coesão dos mais diferentes setores sociais empenhados em combater o inimigo de toda a sociedade ocidental.

Os assembleianos não se afastaram dessa premissa. Combater o comunismo configurava-se dentro dessa lógica como um critério para preservar a cristandade. O comunismo contribuía com o que chamavam de ―mundanismo. Ele era o agente de proliferação de vários pecados que pertencem ao mundo. O comunismo era entendido como um perigo, um agente causador da crise social. As imagens que serão criadas para descrever as práticas mundanas dos comunistas estão inseridas dentro de uma perspectiva de autodefesa, é a defesa do cristianismo. Desta forma é que Baczko elucida que em momentos onde se intensifica a ―produção de imaginários sociais concorrentes e antagonistas em que se procura dar legitimidade a representações, essas iniciativas são caracterizados por um mecanismo de autodefesa. Nesse mesmo sentido todos os ―dispositivos imaginários são empregados de forma a mobilizar as energias dos seus membros para uma ação. As representações de acordo com Chartier permitem articular três registros de realidade, a que corresponde às representações coletivas:

[...] incorporam nos indivíduos as divisões do mundo social e organizam os esquemas de percepção a partir dos quais eles classificam, julgam e agem; e por outro, as formas de exibição e de estilização da identidade que pretendem ver reconhecida; enfim, a delegação a representantes (indivíduos particulares, instituições, instâncias abstratas) da coerência e estabilidade desta identidade assim afirmada [...] as propriedades objetivas fruto dessas representações são comuns a seus membros em uma pertença percebida, mostrada, reconhecida (ou negada).

De que forma os assembleianos produzirão imagens e representações do comunismo? A ação de defesa dos assembleianos foi disposta de forma discursiva nas preleções, nos editoriais, nas escolas dominicais, os inimigos e heresias são ao mesmo tempo produzidos e desqualificados em todas as manifestações discursivas.”


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Fonte:
Lindolfo Anderson Martelli: "Escatologia e Anticomunismo nas Assembléias de Deus do Brasil na primeira metade do século XX". (Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre em História do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Orientador Prof. Dr. Artur César Isaia). Florianópolis, 2010.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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