Um Jeca na Belle Époque




De tal modo o estranhamento se impunha e era difuso, que envolvia a própria identidade da cidade. Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem européia, nem nativa; nem era industrial, apesar do volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era tropical, nem subtropical; não era ainda moderna, mas não tinha mais passado. Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê-la como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados. (SEVCENKO. Orfeu extático na metrópole, 1992, p. 31)

O campo e a cidade são cenários aos quais a literatura comumente recorre para ambientar suas narrativas. Porém, mais do que uma “cenografia”, essas duas categorias comportam distintas cargas simbólicas, representações que expressam juízos de valor sobre esses ambientes. Trata-se, na verdade, de um par constantemente articulado para
criar no leitor uma sensação de “territorialidade”, de que um ambiente concreto, no qual um enredo se desenrola.

Raymond Willians, em seu livro Campo e Cidade (1989), sustenta que tanto a paisagem urbana quanto a rural podem receber diferentes cargas valorativas nos textos literários. As representações sobre cidade e campo se encontram em disputa, por vezes a idéia que prevalece é do campo como local de virtude, inocência e paz em contraposição à cidade marcada por vícios, corrupções, balbúrdia e violência. Mas essas representações podem se inverter, ao valorizar a cidade como espaço de vivência cultural, inovação e dinamicidade, em detrimento das zonas rurais que seriam consideradas como atrasadas, tacanhas e estáticas.

Essas imagens também são recorrentes na literatura brasileira, sendo que neste caso foi muito comum a associação entre campo & atraso e cidade & progresso. Essa
dicotomia pode ser encontrada na literatura de diversas formas, como campo X cidade, sertão X litoral, selva X costa, etc. Em todos esses casos a intenção é diferenciar espaços, demarcar fronteiras, produzir cartografias capazes de ordenar o pensamento e as ações. O literato brasileiro foi, muitas vezes, um cartógrafo, preocupado em conhecer e revelar um Brasil perdido e ignorado.

No presente capítulo, analisaremos os contrapontos entre campo e cidade identificados na literatura de Monteiro Lobato. A intenção é mostrarmos como este escritor transitou entre essas duas categorias para valorizar a experiência urbana, mas também recusar um descarte integral das tradições rurais. Há uma aparente ambigüidade
nos escritos lobatianos no que concerne às representações do universo campesino, pois, por vezes, a roça é tida como uma ambiência marcada pelo atraso na vida social e econômica. No entanto, em outros momentos, o universo rural é valorizado como o viés autêntico da cultura brasileira. O objetivo desse capítulo é compreendermos essas mudanças de posições de Lobato, inserindo-as em seu projeto de modernização para o país, um projeto cujo um dos objetivos seria promover a integração entre o campo e a cidade.

Belle Époque
caipira
Pensar a relação campo-cidade na literatura de começos do século XX, nos remete à necessidade de avaliarmos a experiência da Belle Époque no Brasil. Esse fenômeno foi o desdobramento da mentalidade iluminista e otimista no que se refere ao futuro do planeta, que, a julgar pelo presente de então, seria marcado por um crescente progresso, possibilitado pelo desenvolvimento contínuo da ciência. No caso europeu esse sentimento era corroborado, no plano econômico, pelo avanço industrial e tecnológico e, no plano político, pela confiança nas soluções diplomáticas para os conflitos internacionais. Desse modo, para as classes e grupos economicamente favorecidos, havia a promessa de uma convivência social elegante e amena, praticamente destituídas de conflitos. Nos principais países da Europa, a Belle Époque pode ser datada de meados do século XIX, estendendo-se até a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Foi dentro desse contexto que ocorreram significativas intervenções no ambiente urbano, como as reformas arquitetônicas pelas quais passaram as principais cidades da Europa. Algumas tendências artísticas desse período – nas suas mais diversas expressões como literatura, pintura, arquitetura, música – estiveram em consonância com uma visão complacente. Isto é, buscava-se embelezar o cotidiano, as fachadas das casas, o design
dos objetos utilitários, as vestimentas, em suma, o conceito de Belle Époque remetia a uma visão de mundo onde o gozo era constante, isento de quaisquer preocupações.

Foi uma época de grande ostentação e extravagância. Na Inglaterra, a sociedade e a corte, que, é claro, sempre se contrapuseram, agora começavam a coincidir, e o próprio rei estabelecia o exemplo. Como
Virgina Cowles afirma “o fato de o rei gostar dos homens da cidade, de milionários, piadas de judeu e herdeiras americanas e mulheres bonitas (não importando a sua origem) significava que as portas estavam abertas a qualquer pessoa que conseguisse excitar os caprichos do monarca [...] a sociedade eduardiana modelava-se para satisfazer as exigências pessoais do rei. Tudo era maior que o natural. Havia uma avalanche de bailes e jantares e festas em casas de campo. Gastava-se mais dinheiro, consumia-se mais comida, mais cavalos corriam, mais infidelidades eram cometidas, mais pássaros eram mortos, mais iates eram encomendados, ficava-se acordado até mais tarde do que jamais se fez”.

O trecho acima ilustra uma mentalidade então em voga, na qual há uma aparente
despreocupação quanto aos afazeres e ao trabalho diário. O constante usufruto do aristocrata e do burguês foi concomitante ao intenso processo de enquadramento e expulsão das classes pobres e operárias, que foram retiradas dos centros e transferidas para regiões periféricas, como bairros fabris, subúrbios em geral e, no caso do Brasil, também as favelas. Nessa remodelação urbana muitos foram desalojados de suas antigas moradias, ao mesmo tempo em que eram impostos vários regulamentos disciplinadores dos comportamentos nos locais públicos e mesmo privados. Para os mais pobres, essa Époque não teve nada de Belle, pois o processo de exclusão ao qual foram submetidos foi dramático.

No que concerne às relações campo e cidade, configurou-se uma nova relação de
força entre essas duas zonas. A experiência urbana passou a ser valorizada como espaço para trocas culturais, sociais e econômicas. A cidade passou a ser representada – e isso pode ser constatado na literatura, na pintura e na arquitetura da época – como centro da civilização, marca maior da modernidade. O campo foi considerado, na melhor das hipóteses, como local de repasto, distante das inovações e das complicações do ambiente urbano. Uma visão do universo rural como tacanho, provinciano e deselegante estava basicamente consolidada.

Se tomarmos o caso inglês como exemplo, veremos que uma representação
prosaica, ambígua, e, em alguns casos, negativa do trabalhador rural estava disseminada na literatura desse período. A figura do hodge, um camponês ingênuo e ignorante, é um dos indícios de que os escritores desse período tenderam a supervalorizar e idealizar o urbano. Em termos do processo histórico o que se verificou foi uma constante migração dos camponeses para a cidade, sendo que as origens desse fenômeno estavam assentadas na distribuição de terra e em práticas de especulação imobiliária. Definitivamente, nesse momento a balança não estava em favor do campo e dos seus habitantes. No Brasil, assim como na própria Europa, a Belle Époque teve suas peculiaridades, a experiência urbana e a industrialização, ainda restritas, não condiziam plenamente com a expectativa de um futuro citadino promissor. O país era majoritariamente rural, a economia se estruturava em produtos agrícolas direcionados para a exportação. As fábricas e grandes cidades eram as exceções, concentrando-se, na maior parte das vezes, nas zonas litorâneas. Com as migrações, que se assinalavam com alguma nitidez, as forças dos valores e tradições do campo gradualmente iam conquistando espaços na cidade. Para padrões europeus da época, esses ambientes urbanos seriam considerados provincianos, sujos e mal ordenados.

Para se adequar a esse modelo estrangeiro, mais ideal do que real, algumas
cidades brasileiras passaram a remodelar seus centros urbanos. A Belle Époque no Brasil foi tardia, seu início se deu em finais do século XIX e se estendeu, em alguns casos, até meados do século XX. Tratou-se de uma importação que elegeu o exemplo parisiense como sua grande inspiração. Esses processos de embelezamento e higienização fizeram parte de uma gama maior de intervenções modernizadoras que ocorreram no país. No caso de cidades como Rio de Janeiro (a capital federal) e São Paulo (principal força política e econômica) eram cada vez mais necessárias melhorias na infra-estrutura, como ampliação de ruas, construção de praças, contenção de focos de doenças epidêmicas, ampliação da iluminação pública e privada, além de melhor distribuição de água e escoamento sanitário.

Essa racionalização do espaço atendeu a duas motivações, uma mais funcional,
ligada à ampliação da urbanização no país que, em décadas posteriores, seria incrementada pelo crescimento dos parques industriais. Outra mais simbólica, relacionada aos anseios dos dirigentes e das classes médias de reconstruírem as cidades de modo que a paisagem urbana e seus moradores, aos olhos internos e externos, parecessem civilizados, isto é, europeizados. Também deve ser considerada a influência da Proclamação da República, que incentivou o rompimento com símbolos coloniais e imperiais, tais como casarões coloniais e antigos traçados de ruas e praças.

No século XIX já ocorria reformas na cidade do Rio, coordenados pelo Serviço de
Viação e Obras Públicas (1865), porém as intervenções urbanas serão acentuadas no século seguinte. Dentre os principais marcos dessas reformas encontram-se as transformações ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, planejada e conduzidas pelo engenheiro Pereira Passos, entre os anos de 1903 e 1906. Um contemporâneo dessas reformas relata que:

Penetramos o século das luzes e ainda estamos em plena morrinha colonial. [...] E assim continuamos a ser até o advento de Rodrigues
Alves, até a obra magnífica de Pereira Passos e Oswaldo Cruz, quando se transforma a cidade pocilga em Éden maravilhoso, [...] para onde logo afluem estrangeiros que, até então, medrosamente nos visitavam, apavorados, todos, com a febre amarela: americanos, ingleses, italianos, alemães, que aqui chegavam trazendo-nos, além de um esforço pessoal apreciável, capitais, estímulo, e o que é melhor ainda, a visão civilizadora de pátrias adiantadas e progressistas. [...] Passos vence a rotina. [...] Entra pelas casas que se fazem, [...] sem luz, sem ar; manda rasgar janelas nos aposentos de dormir, enche a morada de luz, de ar, de vida e de saúde! Do fundo dos armazéns manda arrancar toneladas de lixo, derrubar construções arcaicas; nas lojas manda substituir os assoalhos podres, ninhos de lacraias, de centopéias e de ratos; [...] acaba com a gritaria colonial dos pregoes, termina com a imundície dos quiosques e diminui a infâmia dos cortiços. [...] Obra formidável! Obra de titã!

Nesse depoimento percebemos o fascínio que a reconstrução da cidade exerceu
em algumas camadas sociais. A atuação de Pereira Passos conseguiu alterar a ambiência do Rio de Janeiro, tendo como resultado sua elevação à condição de monumento e referência nacional de planejamento urbano. As largas avenidas, a nova arborização e a iluminação elétrica eram os sintomas de uma Belle Époque tropical ou, como veremos mais adiante, caipira. Assim como no caso europeu, ocorreu uma negação das tradições e valores populares que culminaram em um processo de segregação da população pobre que vivia no centro e arredores mais imediatos da cidade. Esses eventos estão profundamente vinculados à própria dimensão industrial inaugurada pela modernidade, na qual as relações sociais perderam toda e qualquer fluidez, bem como a paisagem urbana foi que imersa em um contínuo processo de aceleração de transformações.

Como aponta Nicolau Sevcenko havia uma coerência entre essa mentalidade européia e a nova ordem econômica instaurada. Com a ampliação das cidades, que cada
vez recebia mais contingentes do campo, novas formas de controle e ordenação do espaço tiveram que ser colocadas em prática. Na cidade do Rio, por exemplo, em 1900 havia quase setecentos mil habitantes, já em 1920 havia mais de um milhão e cem mil residentes. Outra cidade que se consolidou como núcleo urbano brasileiro foi São Paulo, pólo de riqueza econômica do país. Como mostra Fransérgio Follis, desde o último quartel do século XIX que várias intervenções vinham ocorrendo no cenário urbano paulistano, em busca de uma racionalização, higienização e embelezamento do espaço.

Belo Horizonte viria a ser outro paradigma de cidade moderna, nascida com o século XX, surgiu como uma promessa de planejamento urbano e plena racionalização do espaço. Ao contrário das cidades do Rio e São Paulo, essa nova urbe não teria sobre si o
peso de um passado colonial. Belo Horizonte seria a emergência do novo, a fisiognomia urbana plenamente controlada pelos administradores e técnicos municipais. Ao menos era essa a promessa que, gradualmente, foi sendo negada pela especulação imobiliária, crescimento descontrolado e os “inevitáveis” processos de segregação das camadas pobres das áreas consideradas nobres, voltadas para o usufruto das classes privilegiadas.

No entanto, ainda seriam Rio de Janeiro e São Paulo as duas cidades alçadas à categoria de símbolos do Brasil moderno, padrões civilizatórios que deveriam ser seguidos em todo país. Eram expressões máximas dessa Belle Époque tropical: a vida noturna, as atividades culturais, as transações financeiras e o tráfego de automóveis e pessoas. A fisiognomia dessa paisagem centrava-se em uma arquitetura com forte influência européia, especialmente a francesa, marcada por amplos espaços entre as construções e as ruas e pelos frontais das edificações com profusões de ornamentação,
além de um trajeto urbano com longas e planas avenidas, facilitando acesso das gentes e das mercadorias.

Os contrapontos dessa cidade moderna seriam os campos e as áreas provincianas que estavam distantes de atingir as realizações metropolitanas. A busca pelo urbano era contrariada pela realidade rural e suburbana
. Muitos pensadores, visivelmente angustiados, afirmavam que o Brasil era um grande sertão, os pólos citadinos tratar-se-iam de meras exceções. O historiador Rodrigo Ribeiro Paziani faz menção a uma Belle Époque caipira, identificada nas cidades do interior que se inspiravam nos modelos urbanos do Rio e São Paulo. Municípios eminentemente rurais, que pretendiam seguir planejamentos de grandes urbes. O descompasso era evidente, regiões com baixas densidades demográficas e economicamente centradas na agricultura e pecuária, mas que almejavam um traçado urbanístico próprio de grandes áreas comerciais ou industriais.

No interior de São Paulo, a riqueza era produzida nos campos a partir da venda do café, mas o anseio da população era pela vivência do fenômeno urbano e do
distanciamento do mundo rural. As receitas do poder público eram aplicadas em melhoramentos nas sedes dos municípios, tendo como inspiração a capital paulista, então símbolo do progresso e futuro. Os próprios moradores dos municípios rurais negavam-se a reconhecer sua condição. As elites dirigentes (administradores públicos, engenheiros, fazendeiros) supunham que ao construírem ruas largas, para o tráfego dos veículos, e casas arejadas estariam superando o atraso e o provincianismo.

Para nosso olhar contemporâneo há algo de cômico nessa experiência: uns “quase
jecas de pés no chão” que, sujos de barro e com pitinhos de palha na boca, subiam nos automóveis e, fazendo fon-fon, percorriam os reduzidos núcleos urbanos supondo representarem a civilização. Com efeito, uma Belle Époque caipira. Mas, na verdade, o que essa imagem nos revela, é uma ambigüidade das elites rurais. Pois suas fontes de poder econômico e político, além do prestígio social, eram originadas em suas propriedades agrícolas. Mas ainda assim insistiam em desqualificar o campo, buscando uma identificação com a cidade.

O anseio pelo moderno e pelo novo ancorou-se na representação de que a cidade
equivalia ao progresso ilimitado. Essa nova sensibilidade significou considerar o campo como o atraso, a força retrógrada do país. Os escritos de muitos intelectuais da época vão nesse sentido. Pois:

...mais do que nunca, agora se abusaria da oposição cidade industriosa
– campo indolente, como se pode verificar facilmente nas obras de Euclides da Cunha, Graça Aranha e na figura símbolo do Jeca Tatu de Monteiro Lobato. É nesse momento que se registra na consciência intelectual a idéia da comunidade brasileira em duas sociedades antagônicas e dessintonizadas, devendo uma inevitavelmente prevalecer sobre a outra, ou encontrarem um ponto de ajustamento.

Entretanto, é importante acrescentar: Monteiro Lobato nem sempre foi um
entusiasta do modo como algumas transformações ocorriam na cidade de São Paulo. Embora ele valorizasse a vida urbana, sua postura específica em relação a algumas questões mais pontuais variou significativamente. Prédios, carros e gentes sempre o maravilharam, mas o apego excessivo às coisas de fora o deixou reticente quanto ao francesismo reinante. Para Lobato, existiam elementos do universo rural que não deveriam ser perdidos, pois a modernidade não se baseava no esquecimento do campo, mas sim na articulação do rural à uma nova relação com a vida urbana. O que veremos são algumas de suas proposições para a conciliação desses Brasis distintos. Sua visão da arquitetura e do urbanismo paulistano é sugestiva para analisarmos sua proposta de um equacionamento entre campo e cidade."

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Fonte:
DAVIDSON DE OLIVEIRA RODRIGUES: "Jeca Tatu e a urbe maravilhosa. Campo, cidade e modernização nacional na obra de Monteiro Lobato - 1900/1930". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História. Linha de pesquisa: História Social da Cultura. Orientadora: Profª Maria Eliza Linhares Borges). Belo Horizonte, 2007.

Nota
:
A imagem (Revista "Ilustração Brazileira, edição de 1911) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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