A idéia de fraternidade: história e etimologia

“Segundo Paul Harvey, fratria (G. Phratria, “irmandade”) nos tempos primitivos de Atenas era um clã composto de uma família nobre e seus dependentes que realizava em comum o culto familiar. Mais tarde as phratríai passaram a ser organizações religiosas que perfaziam certos cultos e mantinham atualizado o rol dos cidadãos. Seu grande festival eram as Apatúrias, celebradas no mês Pianepsion (outubro) com sacrifícios. As crianças nascidas no ano precedente eram então apresentadas à phratria e a admissão à mesma conferia direitos cívicos às crianças.

Phratria também nos remete a Clístenes, instaurador da democracia ateniense, filho do alcmeônida Megaclés que casou com Agariste filha de um outro Clístenes, tirano de Sicíon. Após a queda do tirano Hípias (510 a.C.) houve um movimento oligárquico em Atenas encabeçado por Iságoras e apoiado por Esparta. Clístenes pôs-se à frente da oposição a esse movimento como o paladino da democracia e derrotou os aristocratas, reorganizando completamente o Estado sobre fundamentos democráticos. Clístenes desfez o que restava da antiga organização baseada em grupos familiares e adotou em substituição um novo sistema com fundamento num critério puramente topográfico: dividiu o território da Ática em demos (démoi) ou distritos, cinco dos quais correspondiam à cidade de Atenas. Todos os cidadãos eram inscritos no registro de um dos demos e muitos metecos e libertos foram admitidos à cidadania. Cada demo tinha sua estrutura financeira própria e seu demarco, eleito por assembléia (agorá), que tratava dos assuntos locais.

Além disso, Clístenes dividiu a população da Ática em 10 tribos (phýlai), distribuídas pelos demos de tal maneira que nenhuma tribo tivesse um território contínuo ou representasse um interesse local; ao contrário, em cada tribo incluíam-se áreas situadas nos distritos da cidade, do litoral e do interior. Os nomes das tribos eram alusivos a heróis áticos e apresentavam assim uma relação fictícia de consangüinidade. As fratrias sobreviveram na Constituição de Clístenes como uma espécie de comunidade religiosa para a realização de certos cultos, mas foram reorganizadas de tal forma que nenhum cidadão podia ser excluído das mesmas. Segundo Pierre Lévêque:

As antigas tribos gentílicas, as fratrias e os génê não desaparecem e continuam a desempenhar o seu papel na vida familiar e religiosa, mas na vida política somente contam as 10 tribos – para as quais Clístenes invoca, de resto habilmente, o patrocínio de Apolo de Delfos –, as trítias e os demos.
(...)
Há um jogo muito característico do espírito grego dentro dessa maneira de fundar a democracia sobre a pirâmide de grupos cívicos e sobre uma aritmética decimal. Apesar do racionalismo evidente que anima o sistema, não se está longe das “virtudes” dos números, caras aos pitagóricos. Mas também se pode ser sensível à amplidão, ao rigor, ao alcance de uma reforma, em certa medida comparável à da Assembléia Constituinte dos tempos modernos. Clístenes não é, naturalmente, um revolucionário: mantém os quadros herdados dos tempos antigos do Estado aristocrático e religioso e rodeados por imenso prestígio. Pelas suas inovações, todavia, pelos fatores que acrescenta, estabelece verdadeiramente um Estado novo, laico e liberto dos insuportáveis privilégios trazidos pelo nascimento. É este Eupátrida que é verdadeiramente o criador da democracia ateniense.

Portanto, não é por algo fortuito que se encontra a noção de fraternidade nos escritos dos filósofos gregos, mais particularmente em Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.).

De fato, consideramos a amizade o maior bem para a cidade, pois ela é a melhor salvaguarda contra as revoluções, e a unidade da cidade, louvada por Sócrates mais que tudo, parece – e ele afirma que é – uma conseqüência da amizade, tal como é descrita por Aristófanes nos discursos sobre o amor, nos quais ele diz como os amantes, em conseqüência de sua extremada afeição, desejam crescer juntos e tornar-se uma só pessoa em vez de duas. Em tal união, ambas as pessoas, ou pelo menos uma, se destruiriam, e na cidade a amizade se diluiria inevitavelmente em conseqüência desse tipo de associação, e as expressões “meu pai” e “meu filho” desapareceriam completamente. Na realidade, da mesma forma que quando se põe uma pequena quantidade de substância doce em muita água a doçura se torna imperceptível na mistura, aconteceria também que o relacionamento inerente àquelas expressões se reduziria a nada, porquanto na cidade descrita por Platão seria praticamente desnecessário que as pessoas se preocupassem umas com as outras, como o pai com seus filhos, ou um filho com seu pai, ou irmão com irmão. Com efeito, há dois motivos para as pessoas se preocuparem com as coisas e gostarem delas: o sentimento de propriedade e o de afeição (...).

A fraternidade constitui-se em componente essencial da vida política. Ambos viam a democracia com um olhar extremamente crítico e acreditavam que a noção de liberdade acabaria por obscurecer o conceito de fraternidade, se ela se tornasse o mais importante dos princípios. Os dois pensadores gregos também consideravam que a fraternidade era uma necessidade tão vital que podia ser criada uma espécie de hierarquia de fraternidades, onde a fraternidade de parentesco deveria ceder à de associação, e a fraternidade de associação deveria ceder à fraternidade da cidadania.

Segundo Wolfgang Schieder, na Idade Média o efeito da idéia cristã de fraternidade não permaneceu limitado à espiritualidade. O modelo das confrarias espirituais resultou em formas semelhantes na esfera da cidade medieval. Os conteúdos semânticos e religiosos do conceito de fraternitas misturavam-se aqui com uma origem profana. Desde a primeira Idade Média, os comerciantes de uma ou mais cidades associavam-se em comunidades. A idéia de confraternização medieval, no seu aspecto histórico-conceitual, resulta em dois traços característicos: 1. são constatados vínculos fraternos de toda espécie, tanto espirituais como terrenos, que tendem a ser fixados institucionalmente. A consciência do sentimento fraterno foi articulada socialmente e encontrou sua expressão disseminada em diferentes formações sociais. A associação fraterna, na medida em que ultrapassa o vínculo de irmãos consangüíneos, sempre envolve, no mundo medieval, a união organizada para o exercício do sentimento fraterno, seja para fins religiosos, seja para fins terrenos; 2. as confrarias articuladas socialmente resultaram de um evidente e dominante componente cristão.

Em seu enunciado mais simples, extraído do senso comum, podemos definir fraternidade como a atitude pela qual cada um se compromete a não prejudicar o próximo. Caso adotássemos essa definição como definitiva ela não seria mais que uma utopia negativa, uma proteção contra a violência, não se constituiria em esperança de felicidade. Se ficássemos limitados à etimologia poderíamos definir fraternidade como a ordem social na qual um amaria o outro como se fosse seu próprio irmão. Mas sabemos que não podemos confiar plenamente na etimologia: amar aos outros como a irmãos não se constitui uma garantia de amor, embora a idéia segundo a qual os irmãos são seres privilegiados na relação entre si seja muito antiga.

Por outro lado, se nos ativermos aos mitos, por exemplo, essa idéia se inverte radicalmente: em quase todos os mitos fundadores os irmãos se odeiam, no máximo se suportam. Não há pior inimigo que o seu irmão, a menos que seu pai, ao temer uma aliança dos irmãos contra ele, se antecipe e os mate, tal como fez Cronos, que os devora. Muitas civilizações começam com o relato de um assassinato de um pai por seus filhos, ou vice-versa, ou de irmãos entre si, tal como Rômulo e Remo. Como explicar essa violência natural entre irmãos? A explicação comum aponta para o mimetismo, os irmãos tornam-se rivais e perigosos uns para os outros e disputam a mesma família e os mesmos bens entre si e com o pai. Os códigos sociais também protegem cuidadosamente os irmãos uns dos outros. A instituição do direito de primogenitura e uma divisão estrita das competências equilibram rigorosamente as trocas de bens e as regras de herança. Em algumas sociedades primitivas, para proteger os filhos de seu pai, eles são confiados ao clã de mulheres e, particularmente, aos irmãos da mãe.

A Bíblia também assinala que a violência nasce do desejo mimético. Todas as grandes encruzilhadas da humanidade relatadas pela Bíblia são resultado de conflitos entre irmãos. Abel e Caim, Jacó e Esaú, Isaac e Ismael ou José e seus irmãos, simbolizam alternativas da história humana – entre o sedentário e o nômade, o fiel e o pagão, o prudente e o rebelde, o subversivo e o submisso. Cada vitória de um irmão sobre o outro coloca a condição humana em uma direção que conduz ao advento do Messias. Apenas no final do exílio – após a saída do Egito, no deserto do Sinai, próximo à terra prometida – aparece a primeira dupla de irmãos não rivais: Moisés e Aarão, pois cada um precisa do sucesso do outro para cumprir a sua missão. Aarão não protege seu irmão menor porque Deus o elegeu para ser seu profeta; Moisés, que não pode se expressar, precisa de Aarão para falar ao povo. Por meio de sua relação de dependência criam juntos as condições do advento dos tempos messiânicos, e dão à fraternidade um novo e pleno sentido, que subsiste até hoje: o de alegrar-se com o êxito alheio.

A relação entre os dois irmãos muda a história do povo judeu, anula a precedente. Por outro lado, todos os seus contemporâneos morrem antes de chegar à terra prometida. Aarão, ao contrário, sobrevive e, com ele, afirma o papel da fraternidade no cumprimento da mensagem messiânica. A fraternidade passa a ser um objetivo de civilização e não um estado natural, pois para cumprir o mandamento de “amar a seu próximo como a si mesmo” é necessário superar três obstáculos: começar a amar a si mesmo, em seguida amar os outros e por fim, amar os outros como a si mesmo.

Em suma, a fraternidade aparece em numerosas passagens na Bíblia e em outros textos fundadores do monoteísmo como o conjunto das condições que permitem aos homens, e, portanto, também aos irmãos, esquecer as rivalidades para ajudarem-se uns aos outros, tolerar as diferenças, as diferentes aspirações e alegrar-se pelo sucesso do outro. Durante muito tempo esta noção ficará circunscrita ao discurso judaico-cristão, embora já tivesse aparecido em Platão quando, na República, propõe que ninguém fosse capaz de identificar seu pai ou sua mãe, pois acreditando-se irmãos rejeitariam o uso da violência de uns contra outros. Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) já afirmava que viver era ser útil aos outros. Em muitas línguas como o inglês irmandade (brotherwood) e fraternidade (fraternity) são sinônimos e as associações de artesãos as utilizam indiscriminadamente. As irmandades se desenvolvem até se constituírem ameaças para a Igreja, que aspirava conservar o monopólio da fraternidade. O concílio de Avignon, de 13 de junho de 1326, proíbe as irmandades laicas. Contudo, em 1722, a fraternidade estará no centro das Constituições de Anderson, que criam a maçonaria.

A fraternidade sobrevive como um conceito vago, subjetivo e impreciso. Nenhuma utopia o adota, nenhum programa político se dedica à realização da fraternidade. Nem Thomas More (1478-1535), nem Tommaso de Campanella (1568-1639) nem qualquer outro autor de utopias se apropria do conceito, ao menos explicitamente. A fraternidade parece ser uma ilusão reservada às Igrejas e às irmandades, fora do alcance da ação política e, de qualquer maneira, não mensurável, puramente subjetiva, ao contrário da liberdade e da igualdade. I. Kant (1724-1804), um dos poucos a falar diretamente dela, no final do século XVIII na Paz perpétua, com o nome de “hospitalidade universal”, refere-se ao prazer experimentado quando se recebe um estrangeiro, quando se exerce o dever de anfitrião e ao fazer isso nada se espera em troca.

Durante o Iluminismo a fraternidade já não está presente no debate intelectual europeu, como nada mais além de uma reflexão moral própria das irmandades e das sociedades secretas. É apenas uma questão para os cristãos e os franco-maçons. Fala-se de Cristo como o inventor da “doce fraternidade”. Bossuet (1627-1704) proclama que Deus estabeleceu a fraternidade dos homens ao fazê-los nascer de uma só pessoa. Mirabeau (1749-1791) afirma que a liberdade livrará o mundo das absurdas opressões que são impostas aos homens e fará renascer uma fraternidade universal. A Enciclopédia a menciona com o sentido meramente familiar, mas a Revolução Francesa terá a intuição de que apenas se começa a perceber seu imenso alcance quando se percebe que igualdade e liberdade são incompatíveis sem fraternidade.

A fixação institucional e o vínculo cristão foram os limites que o conjunto do pensamento de fraternidade medieval não rompeu. O caminho para o conceito moderno de fraternidade levou, por um lado, à autonomização do pensamento da fraternidade e, por outro, ao esvaziamento do sentido cristão de “fraternidade” e de “confraria”, onde a primeira era pré-condição para a segunda.

Porém, a noção de fraternidade tal como foi compreendida pelos filósofos gregos e pela tradição medieval não sobreviveu ao Iluminismo. A premissa segundo a qual o homem é um animal político que precisa de uma identidade cívica para se aperfeiçoar, ou o modelo das confrarias espirituais, foram rejeitados pela tradição liberal.

Durante a Revolução Francesa a divisa “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” representou a rejeição ao antigo regime e, por alguns dos seus protagonistas, a rejeição da cultura cristã então dominante. Com a Revolução de 1789, a fraternidade tornou-se, na França, em símbolo verbal da ruptura revolucionária dos limites. Os jacobinos faziam da fraternidade um conceito de realização da igualdade entendida politicamente. No vínculo triádico com liberdade e igualdade cabia, por assim dizer, à fraternidade o papel de guia: por meio da sua força unificadora deveria ser efetivada a liberdade política e a igualdade dos cidadãos.

Em 1789, a fraternidade já está presente em todas as mentes. A reunião dos Estados Gerais aspira a uma “união fraternal” das três ordens; Mirabeau vê na tomada da Bastilha “o início da fraternidade entre os homens”; em 1790, La Fayette (1757-1834) propõe, em seu discurso no Campo de Marte “unir a todos os franceses com os laços indissolúveis da fraternidade”; as festas da Federação tratam de fraternizar, ou seja, de unir todas as classes sociais e de considerar a todos os povos como irmãos, de estabelecer uma espécie de solidariedade defensiva contra os perigos exteriores (a pátria é um agrupamento de irmãos) e de conjurar as ameaças de conflito entre os mais pobres e os outros setores da sociedade francesa. Um artigo adicional da Constituição de 1791 fala da fraternidade – uma verdadeira utopia – como o resultado esperado da festas nacionais e da educação. Robespierre evoca a idéia de acabar com as nações e de se construir uma sociedade fraternal planetária, a qual chama de “a imensa cidade de Filadélfia”.

A partir de abril de 1791, o conceito de fraternidade muda de natureza e se desloca da universalidade à exclusão, convertendo-se em um signo de pertencimento e reconhecimento próprio das sociedades revolucionárias como a franco-maçonaria e as irmandades. Usa-se o cumprimento de “amigo e irmão” e se assina “saudações e fraternidade”.

A idéia de incorporar à palavra um lema de mobilização política pode ser atribuída a um interessante ator pouco conhecido da revolução parisiense, Antoine-François Momoro (1756-1794). Este impressor extremista, figura importante do Clube dos Cordeliers, companheiro de viagem de Jacques Hébert (1757-1794) – redator radical do Père Duchesne – faz uma doação de todos os seus bens à Revolução, viaja por toda a França para difundir a palavra e propõe, entre outras formas, o estabelecimento de um preço máximo para o trigo e a nacionalização de todas as terras. Em 1790, durante uma reunião do Clube dos Franciscanos, sugere fazer de “liberdade, igualdade, fraternidade” uma divisa revolucionária. Robespierre se apropria da idéia e propõe bordar as duas expressões “o povo francês” e “liberdade, igualdade e fraternidade” nos uniformes e nas bandeiras da Guarda Nacional. Mas ninguém o apóia. Nessa época, os lemas eram “a Nação, a lei e o rei” e, logo em seguida, “a Nação, a liberdade e a igualdade”. No entanto, em algumas ruas de Paris já começam a se ouvir os gritos de “liberdade, igualdade e fraternidade ou morte”.

A federação multiplicou a eficácia de uma guarda de início estreitamente municipal: ela se torna nacional. O jogo das federações resultou na constituição de uma nação em armas, confundindo os campos e as cidades. A insígnia tricolor torna-se o emblema nacional, depois de ter sido o da Guarda Parisiense, em seguida o das Guardas Nacionais do reino. A federação tem por objetivo a fraternização: une todos os cidadãos pelos “laços indissolúveis da fraternidade”. Habitantes das cidades e dos campos confraternizam primeiramente nas federações locais, prometendo-se assistência mútua. Em 29 de novembro de 1789, os Guardas Nacionais do Dauphiné e do Vivarais se confederaram em Valence, os bretões e os angevinos em Potivy, em 1790: confederação em Lyon em 30 de maio, em Estrasburgo e em Lille em junho... O movimento ilustrava o sentido unitário dos patriotas e manifestava a adesão da nação à ordem nova; constituía, neste sentido, face à aristocracia e ao Antigo Regime, um procedimento revolucionário de grande eficiência.

Em setembro de 1792, Roland da La Platière (1734-1793) acolhe os novos membros eleitos para a Convenção recordando-lhes que sua primeira missão é proclamar a República “como a mesma coisa que a fraternidade”. Em 1793, a fraternidade já não é mais que um meio de excluir os nobres, os traidores e os falsos irmãos. “A fraternidade ou a morte” converte-se em um lema de duplo sentido: há que se morrer para defender o grupo e, também, obrigar os irmãos a não se afastar da ortodoxia sob pena de morte. Nos muros de Paris pode-se ler “Unidade, indivisibilidade da República; liberdade, igualdade ou a morte”. E, por fim, “liberdade, igualdade, fraternidade”. O Terror se instala em nome de uma fraternidade muito distante daquela idéia de fraternidade que existia em 1790.

Durante o Diretório, a fraternidade não é mais que uma imagem insípida da Revolução, uma síntese de seus fracassos e de suas vitórias. No século XIX, a desconfiança sobre a razão e o retorno das idéias cristãs reabilitam a idéia de fraternidade como uma forma de evitar a luta de classes, ao mesmo tempo em que se tenta combater o individualismo. Lamennais (1782-1854) a reivindica como justificativa da justiça social.

Jules Michelet (1789-1874) a transforma no princípio central de sua leitura da Revolução Francesa. A seus olhos, a fraternidade é a culminância da liberdade e da igualdade. Segundo ele, é terrestre, laica e não tem qualquer relação com o pecado original. A fraternidade é o direito que está acima do direito. A Revolução, filha do cristianismo, ensinou a fraternidade ao mundo e a todas as raças e religiões que o sol ilumina.

Em seguida, Louis Blanc (1811-1882), dirigente socialista e historiador da Revolução, vê na fraternidade o objetivo do ideal socialista, além da liberdade e da igualdade que, para ele, não são mais que palavras de ordem que promovem o individualismo.

O primeiro tomo da Histoire de la Révolution française, de Louis Blanc, aparece em 1847 (ao mesmo tempo que o livro de Michelet e que os Girondins, de Lamartine); a seqüência será escrita em Londres, no exílio a que o homem da Comissão do Luxemburgo é obrigado após junho de 1848. Mas desde 1847, a interpretação é dada no prefácio, e o resto da obra não será infiel a ela. Três princípios dividem entre si a história humana e constituem como que sua regra de sucessão: a autoridade, encarnada pelo catolicismo; o individualismo, que o protestantismo, a burguesia e a “filosofia” traduzem, cada um por sua vez e a seu modo;a fraternidade, enfim, que será a conquista do Socialismo que virá.

O triplo lema reaparece em 1849, talvez por iniciativa de Lamartine (1790-1869), como o princípio da nova República, quando o Comitê de Redação da Constituição, criado em17 de maio, escreve em um preâmbulo de oito artigos: “A República francesa é democrática e indivisível. Tem por princípios a liberdade, a igualdade e a fraternidade. E tem por base a família, o trabalho, a propriedade e a ordem pública”.

Essa divisa desaparece durante o Segundo império. Quando a República é restaurada, se discute longamente sobre seu restabelecimento: a direita teme que a igualdade desemboque no socialismo e a esquerda desconfia da conotação cristã da fraternidade. A Comuna de Paris não foi esquecida. Na primavera de 1880, depois de oito anos de discussão, a Câmara dos Deputados restabelece como divisa da República esta magnífica síntese de todas as utopias humanas.

O conceito de fraternidade foi, portanto, necessário para a defesa dos conceitos de liberdade e igualdade. As festas nacionais instituídas por Robespierre (1758-1794) visavam expressamente, por outro lado, envolver os cidadãos em uma mesma fé civil e estreitar “os dois nós da fraternidade”. Na festa comemorativa de um ano da Bastilha, em 14/7/1790, os membros da assembléia prometiam, no campo de Marte, permanecer unidos a todos os franceses por vínculos indissolúveis de fraternidade. Desmoulins (1760-1794) informava ter visto, nesta ocasião, todos os soldados-cidadãos se precipitarem nos braços um do outro, prometendo-se liberdade, igualdade, fraternidade. No mesmo ano, nasciam em Paris, por iniciativa dos jacobinos, as assim chamadas sociedades fraternas, pelas quais mesmo as mulheres deveriam ser incluídas na nova comunidade de revolucionários de uma nação.

Segundo Mona Ozouf, ninguém melhor que Jules Michelet exprimiu isso. A aversão à divisão social lhe inspirou fazer da fraternidade o princípio central da Revolução Francesa: a Revolução foi para ele “a época unânime, a época santa em que a nação inteira, sem conhecer ainda, ou conhecendo muito pouco as oposições de classe, marchou à sombra de uma bandeira fraterna”. Sua originalidade residiu em apresentar tal fraternidade como uma invenção da Revolução. Antes de 1789, no entanto, o mundo conhecera duas fraternidades: a fraternidade antiga, reservada aos cidadãos, e que excluía os escravos; a fraternidade cristã, que os incluía e que a Revolução Francesa juntamente continuou e contradisse. Continuou no sentido de que não excluiu qualquer ser humano. E, no entanto, triplamente contradisse: o cristianismo enraíza a fraternidade humana no pecado original e o sentido da Revolução consistiu justamente em romper com o princípio hereditário; o cristianismo adia a fraternidade para outra vida, e o sentido da Revolução consistiu em ensinar a igualdade fraternal “como lei deste mundo”. O cristianismo, por fim, a faz dependente do arbítrio da graça, e o sentido da Revolução foi terminar com qualquer favor. Esses nos parecem fortes argumentos para se defender a idéia de que a tradição cristã não se fez representar nos princípios de 1789.

Paradoxalmente, aquele que não concebia a fraternidade como uma herança cristã divisou-a em prática na época do sincretismo revolucionário. Os que a concebiam como a própria herança do cristianismo lhe atribuíram o momento em que a Revolução rompeu com o cristianismo. Essa divisão contrastada de períodos decorre, no fundo, de duas representações da fraternidade. Para Michelet, a fraternidade foi o que cumpriu e ultrapassou a liberdade e a igualdade. Para Louis Blanc (1811-1882) ela foi a contestação das duas outras abstrações. O primeiro admitiu a ordem da divisa republicana como boa ordem: sem liberdade e igualdade preexistentes não haveria fraternidade. Michelet, que neste ponto foi apoiado por Proudhon (1809-1865), apreciou as Declarações por terem colocado o indivíduo no princípio da justiça, mesmo se a verdadeira justiça consistisse no cumprimento da solidariedade. Para Louis Blanc, a fraternidade era a verdadeira questão de princípio, pois não provém do homem, mas de Deus. A verdadeira ordem seria, portanto, fraternidade, liberdade, igualdade. Outros, como Pierre Leroux (1797-1871), preferiam colocar a fraternidade no meio da divisa, como o termo afetivo que liga a liberdade à igualdade.

Por meio do tratamento que os historiadores da Revolução reservaram à fraternidade, se compreende melhor as relações que mantiveram no século XIX a interpretação republicana e a interpretação socialista da Revolução Francesa: relações que foram ou de oposição ou de parentesco. De oposição: por um lado, aqueles que tiveram uma visão estritamente democrática da Revolução Francesa – Etienne Vacherot (1809-1897), por exemplo – detestaram o acréscimo à divisa republicana daquela fraternidade confusa que nada acrescentava à definição de democracia e fazia, em contraste, que sobre ela pesasse a ameaça de um socialismo conventual; por outro lado, aqueles que se batiam por uma interpretação socialista da Revolução adoravam a fraternidade que, aos olhos deles, contestava e contradizia o formalismo individualista. E o parentesco: porque era possível divisar na fraternidade, no interior do direito individualista, outro direito, a garantia de que o direito revolucionário se estendia a todos, e a promessa de um aperfeiçoamento indefinido da Revolução. Os que optaram pela oposição entre as duas interpretações estavam certos de que a Revolução continha duas revoluções antagônicas, dois “atos”, como disse Louis Blanc, e de que o “segundo não era mais do que um protesto violento, terrível, mas sublime”. Os que optaram pelo parentesco fizeram da fraternidade o fio que assegurou, através das peripécias revolucionárias, a unidade da Revolução.”


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Fonte:
Fernando de Almeida Sá: "Senso moral e política: uma história da idéia de fraternidade/humanidade nos liberalismos dos séculos XVIII e XIX". (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: História Política. Orientadora: Profª. Drª. Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves). Rio de Janeiro, 2008.

Nota
:
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As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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