Miranda Ribeiro no “eclipse do darwinismo”



"Quando Miranda Ribeiro começou a trabalhar no Museu Nacional, em 1894, a teoria da evolução por seleção natural proposta por Darwin e Wallace já não era tão popular. Embora o fato da evolução não sofresse questionamentos por parte dos cientistas, os mecanismos que proporcionariam as mudanças nas espécies não eram consensuais. A seleção natural era relegada em favor de outras explicações como mudanças que poderiam ocorrer aos saltos, ou mesmo a hereditariedade de características adquiridas (Bowler, 1989: 246-247). Havia muitos problemas que não haviam sido resolvidos pelo darwinismo como, por exemplo, a origem das variações, ou como as características seriam transmitidas para os descendentes. A pangênese, hipótese de Darwin para explicar a herança biológica não satisfazia à comunidade científica (Mayr, 1998: 774). O desenvolvimento da teoria celular aumentava e produzia muitas interrogações sobre a natureza e localização dos fatores hereditários.

Portanto, é nesse período, em fins do século XIX e início do século XX, em que
especialmente o mecanismo da seleção natural parece desacreditado, que Miranda Ribeiro defende a veracidade e a utilidade dessa teoria, apesar de ter ocorrido um renascimento do lamarckismo e a redescoberta da genética. Tal fato não é inexplicável nem tampouco surpreendente. No Brasil, desde a recepção da teoria de Darwin, na década de 1870, esta vinha sendo discutida combinada com outras teorias evolutivas e, dessa forma, continuou fazendo parte do discurso científico mesmo com o declínio de popularidade no mundo (Domingues et al., 2003; Alonso, 2002; Gualtieri, 2001; Benchimol, 1999; Collichio, 1988). Esse declínio de popularidade foi chamado por Julian Huxley de “eclipse do darwinismo” e se referia ao período que se passou desde as duas décadas finais do século XIX até a época em que a genética foi combinada com o mecanismo de seleção natural, o que ficou conhecido como “nova síntese”, que ocorreu por volta das décadas de 1930 e 1940 (Bowler, 1989: 246). O próprio Julian Huxley, foi um dos “arquitetos da síntese”, assim como Dobzhansky, Mayr, Simpson, Rensch e Stebbins (Mayr, 1998: 663). Mas antes que isso acontecesse, muita coisa precisou ser feita. Ainda assim, entre o “eclipse” e a “síntese” muitas apropriações do darwinismo continuaram a surgir, como aconteceu aqui no Brasil. O eclipse, na verdade se referia a um período em que a seleção natural não estava sendo considerada como um mecanismo capaz de proporcionar mudanças ou evolução dos seres vivos, ao mesmo tempo em que teorias aparentemente concorrentes, ganhavam força, como o neolamarckismo e a genética que estava sendo trazida à tona.

As apropriações do darwinismo ocorriam pela facilidade com que os leitores dissociavam elementos das várias teorias a que tinham acesso dentro do arcabouço estrutural da teoria da evolução. Como dissemos, um dos cientistas responsáveis pela síntese, o ornitólogo alemão Ernst Mayr, identifica somente em relação ao programa de pesquisa darwinista, cinco teorias independentes que podem ser combinadas com outras teorias evolucionistas. Essas cinco teorias podem não constituir a totalidade do programa de pesquisa, porém são elementos fundamentais deste. Além disso, embora Mayr tenha identificado, ao longo de sua exaustiva pesquisa sobre o darwinismo, o que hoje poderíamos considerar o núcleo do programa de pesquisa, o próprio Darwin, nunca
trabalhou de forma isolada com essas teorias. Talvez tenha dado mais ênfase ao mecanismo de seleção, o que levou o darwinismo, desde a publicação de Origem, a ser combatido ferozmente, principalmente por aqueles que associavam a idéia de um Criador regendo o processo de evolução nos seres vivos.

Aqui no Brasil, como em outros países, as apropriações feitas pelos indivíduos letrados procuravam sempre associar o darwinismo com outras teorias, principalmente sociais, que permitissem pensar na possibilidade de desenvolvimento do país. Nesse sentido, o mecanismo de seleção natural não era interessante, porque ele agia sobre pequenas variações que surgiam ao acaso e este não era estimulante para aqueles que queriam que a sociedade se desenvolvesse da maneira linear ou progressiva como, por exemplo, os positivistas que seguiam a filosofia comteana
.

Por esse motivo, a seleção natural, muitas vezes foi dissociada da teoria de Darwin. O que permitia a dissociação do mecanismo de seleção natural de outros elementos da teoria darwinista, como já dissemos, é, segundo Mayr, o fato de que, na verdade, a teoria da evolução é constituída por cinco teorias independentes, porém, cuja união produz um sentido específico. Mayr também afirma que muitas evidências de que Darwin
considerava todos os componentes um todo único e indivisível (Mayr, 1998: 564). No entanto, essas cinco teorias podem ser separadas (o que, de fato, aconteceu em muitos casos) e cada uma, independentemente, associada a outras concepções evolucionistas, produz sentidos diferentes do darwinismo original.

As cinco teorias são: 1) o fato da evolução que se opõe a um mundo constante e
imutável. As espécies evoluem e mudam seus perfis ao longo de milhares de gerações. Darwin não foi o primeiro nem o único a admitir esse fato; 2) as várias formas vivas conhecidas atualmente são descendentes de organismos que viveram milhares de gerações passadas. Por exemplo, espécies de um mesmo gênero tiveram um ancestral comum; 3) A evolução das espécies ocorre gradualmente pelo acúmulo de pequenas variações que surgem a cada geração e são mantidas nas gerações seguintes. O gradualismo da evolução também era um dos elementos da teoria evolucionista de Lamarck (1744 1829); 4) as populações que vivem numa mesma região estão sujeitas às pressões ambientais daquele espaço e, assim, as variações que são transmitidas são específicas para aquele espaço com suas condições ambientais. Se uma população de uma espécie qualquer for separada por algum tipo de barreira, as condições ambientais a que ficarão submetidas também poderão ser diferentes. Então, as variações acumuladas nas duas populações daquela espécie formarão conjuntos diferentes, o que poderá levar à formação de duas espécies diferentes. Ou seja, poderá ocorrer a especiação populacional; 5) a seleção natural é o mecanismo que leva à mudança nas espécies ao longo das gerações porque em cada ambiente ocorrerá o acúmulo de variações diferentes e específicas para as condições em que vivem aqueles organismos.

Miranda Ribeiro é categórico ao dizer, em um artigo intitulado “A Zoologia no século do Museu Nacional do Rio de Janeiro”, que Darwin escreveu a obra “julgada a mais notável produção humana do século passado, por um plebiscito universal”, a Origem das Espécies (Miranda Ribeiro, 1919: 51). Em seus trabalhos, no entanto, podemos perceber que ele valorizava alguns componentes específicos da teoria darwinista, como veremos a seguir."

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Fonte:
MARIA ROSA LOPEZ CID MIRANDA RIBEIRO: "UM ZOÓLOGO EVOLUCIONISTA NOS PRIMEIROS ANOS DA REPÚBLICA - 1894/1938"). Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor. Área de Concentração: História das Ciências. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Francisco Waizbort Co- Orientadora: Profª. Drª. Magali Romero Sá). Rio de Janeiro, 2009.

Nota
:
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As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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