Miscigenação: a maior contribuição do Brasil para a Humanidade.



“Nos idos de 1930, Jorge Amado era apenas um jovem escritor de 18 anos. Amado escrevia para a Revista ETC, sob o pseudônimo de Alberti Borgia, para a seção de “Casos e Cousas”. Com sua partida para o Rio de Janeiro, a então capital federal, Amado continuaria a escrever para a seção que passaria a chamar-se “Cousas do Rio de Janeiro”, ainda sob o velho pseudônimo. Nessa mesma edição de despedida, nos fala da sua terra, a “Velha Bahia de gloriosas tradições”, que passava à época por “uma grande remodelação”. O viajante que visitar a “cidade do vatapá e do acarajé” verá que ela deixou de a ser a “aldeia rotineira dos primeiros bons portuguezes” para tornar-se a “cidade progressista dos brasileiros intelligentes”.

A roupa nova da Bahia o prova. Calçamento bom, boa iluminação, novos predios de estylos novos, arranhas-ceos, emfim muita novidade. Hoje a cidade do Salvador pode dizer que não vive somente das tradições. A Bahia já tem presente. Ella não é a cidade que foi morta pelo peso das glorias do passado. Não. Se teve um passado brilhante, tem um presente admiravel e terá um futuro glorioso. O progresso na Boa Terra é um facto. A Bahia, ao contrario do que espalham os exploradores da credulidade alheia, está com o seculo. Dynamica e progressista. Arranhas-ceos, cinema falado, novo elevador e um movimento formidavel.

Jorge Amado toma despreocupadamente as antigas denominações como “Terra do Vatapá” e outras referências às comidas afro-baianas que foram utilizadas pelas elites centro-sulistas no século XIX e início do XX como forma de diminuir a Bahia por conta de sua influência negra, como motivo para orgulhar-se. Orgulha-se também do progresso e da modernidade que as reformas urbanas estavam trazendo para a sua cidade. Um Jorge Amado diferente, defensor dos “predios de estylos novos”, dos “arranha-ceos”.
Otimista, afirmava que a Bahia já possuía um presente e um futuro dinâmico e progressista e que não precisaria mais viver das glórias do passado, rebatendo a celeuma estabelecida nesse seu tempo de ser a Bahia a terra do “Já teve”, do “Já foi”.

Já estabelecido no Rio de Janeiro que ele descreveu deslumbrado, com os arranha-ceos, a noite, o movimento, os cinemas, os jornais, como formidável, Jorge Amado continuaria a nos mandar suas opiniões e impressões.

Noutra edição, ainda em 1930, Jorge Amado nos fala sobre o samba “talvez a mais bella creação do brasileiro, por ser a mais sincera”. Diz-nos que no samba pode-se observar bem essa tristeza do povo brasileiro que faz o orgulho de todo “idiota” que se intitula sociólogo no Brasil. “A tristeza do povo brasileiro, mistura da nostalgia do portuguez desterrado que sonha com a volta á Pátria e a revolta abafada no negro escravisado, nada tem de nobre, nem de esthetica”. Para Amado essa tristeza cura-se com “banho frio e com chicote”.

Segundo ele, as letras da grande maioria dos sambas eram, no entanto, mal feitas e “Quase sempre o que nos encanta no samba e no maxixe não passa do rythmo selvagem. Aquilo se não chega a admirável, é pelo menos para o branco, original”.

Sobre o povo brasileiro, Jorge Amado não é muito otimista, muito menos sobre
nossa influência negra africana.

Nas festas populares brasileiras quasi sempre festas religiosas, nas quaes ha mais selvageria que christianismo, pode-se bem observar o porque de todos os defeitos do homem nascido sob os céos do tropical Brasil.
O homem brasileiro, escravo da grandeza da natureza americana, preguiçoso e doente, prefere a realizar qualquer cousa, dizer que “dentro de 100 annos o Brasil será o primeiro paiz do mundo”.
É o escravo que, libertado a 13 de Maio, livre do senhor e do chicote, resolveu não mais trabalhar e viver como os padres e outros parasitas, à custa da imbecil caridade do próximo.
É a África. O rythmo selvagem do negro que dominava o leão no deserto, está inteiramente no negro ou no mestiço brasileiro.

A exceção seria apenas os homens brasileiros situados mais ao Norte onde o
caboclo já possuía sangue de índio,

Fora disso, no homem brasileiro, nada de bello, de vigoroso, de admirável.
Nem a mulata. A mulata que é a adoração de todos os conductores de bonde, de todos guarda-civis e de todos os portuguezes que habitam a heroica cidade de São Sebastião, do Rio de Janeiro, afectado e mal cheirosa, nada tem de interessante.
Nem o vigor da índia, nem a belleza da branca, nem a bondade da preta.
Apezar da largura das “cadeiras” é feia. Má, preguiçosa, tem horror ao trabalho, Dansa aos sabbados nos “bailes” das suas “Sociedades recreativas” e ás segundas-feiras falta ao trabalho deixando mal a patrôa...

Em artigo no ano seguinte faz-nos entrever seu ideal feminino “Um sorriso de santa que sabe perdoar. Cabellos de um castanho com pretensões a louro que bailavam bailados estranhos sob o assovio do vento. Umas mãos finas e aristocráticas. Boa como a bondade”.

Falando-nos sobre o momento artístico e intelectual baiano, Amado nos diz que
a Bahia já fora noutro tempo a Athenas brasileira e, como “Mãe da mulata ignorância brasileira perdeu logo o seu título”. Crítico do modernismo, diz que “As sagradas tribos indígenas dos retardados modernistas bahianos teem cultos estranhos. Cultuam o analfabetismo e o elogio mútuo” e que ficava doente ao ver as tolices dos “mulatos que não são capazes de qualquer coisa de bello”.

Esses escritos de juventude de Jorge Amado nos revelam um pensamento bastante diferente da forma como esse romancista ficará conhecido no Brasil e no exterior. Com certeza nos mostra a força de uma formação patriarcal e racista, ainda forte na década de 1930. Qual não foi o impacto em 1933, da obra Casa-Grande e Senzala, publicado pelo sociólogo Gilberto Freyre, que apesar de todos os limitações colocadas anteriormente, era verdadeiramente revolucionária, para a época, à ponto de Jorge Amado dizer dela, em 1961, quando de sua posse na Academia Brasileira de Letras, que ela havia causado um “impacto ainda não renovado em nosso ensaio”.

Nos idos de 1935, Jorge Amado já era um dos mais aplaudidos romancistas brasileiros e, com a aparição de Jubiabá, a “consagração” se concretiza,

Neste “Jubiabá”, romance sobre a raça negra do Brasil, o victorioso autos de “Cacau” e “Suor” encontrou a sua melhor forma e põe a prova mais uma vez as suas admiraveis qualidades de romancista que o tornaram um dos maiores e mais populares escriptores brasileiros. Aliás, Jorge Amado já ultrapassou as fronteiras da nossa pátria. Seus livros estão traduzidos para o russo, a tradução ingleza de “Suor” apparecerá por estes dias, a de “Cacau” está sendo feita, e a tradução espanhola dos dois livros está em preparo.

Jorge Amado estava a revelar ao Brasil um mundo desconhecido,

Aquellas páginas sobre os vagabundos nas ruas da Bahia são inéditas nas lettras brasileiras. Emocionam. Dão-nos a segurança de que Jorge Amado tem um accentuado pendor pela fixação desses soffrimentos anonymos e silenciosos que constituem a propria existencia dos abandonados da sorte. No meio dos meninos soltos, viciados e astuciosos, alguns se destacam brilhantemente, porem nenhum como Balduino, que toma relevos de bravura, decisão, estoicismo, todas as qualidades que tornam a raça privilegiada entre as demais. Depois vem a sua peregrinação sexual admiravel. Os seus anseios inexprimiveis. Balduino é um typo. Expressa os raros que ainda existem de um sanguejá bem misturado e já bem estragado pela cachaça. Fraco pela miscigenação, mas ainda assim rico dos melhores sentimentos.

Lemos Brito afirma que “Jubiabá nos mostra uma Bahia muito diferente dessa que quase toda gente conhece – A Bahia das tradições e das igrejas, a Bahia histórica do carro dos caboclos lanceando o dragão que vomita fogo pelas narinas, symbolo da escravidão colonial”. Uma identidade centrada nas elites, nos seus valores e espaços. A exaltação de uma Bahia histórica, tradicional e revolucionária.

Mas nem tudo eram flores e Jorge Amado também receberia críticas. Seu romance Jubiabá foi também taxado de maniqueísta, exagerado e artificial, além de que seu personagem, o negro Balduíno, foi acusado de mais se parecer com um negro norteamericano, uma cópia do “Imperador Jones de Eugene O´Neill”. Havia também outro tipo de crítica que não se apegava necessariamente aos aspectos estéticos da obra ou ao talento do escritor, mas sim à sua temática. Eloy Pontes nos diz que

Os negros estão em moda. Já agora os escriptores e romancistas divertem-se em nos recordar a população de moleques, de paes-desanto, de velhos africanos, despojos da infamia traficante, de mães pretas e sua descendencia ociosa, mulata e cynica que se consome nos vícios, nas superstições e no crime. Os que nada conhecem, inventam, conjecturam e atamancam netos de escravos, que recordam os negros dos kinels norte-americanos, onde a pintura escorre e delata o actor branco, mal enfronhado no papel. As macumbas, as religiões grosseiras, as feitiçarias, os cangerês, o sensualismo incontido dos sambas constituem outros tantos elementos dos romances, que ora apparecem em série, seguindo preceitos da moda.

E essa “gente obscura”, “victima de intoxicações religiosas”, é capaz de “fanatismos terroristas” nos mostrando que nesse momento de conhecimento do Brasil por meio do romance, a questão racial no Brasil estava muito longe de ser harmoniosa.

Os livros Guia Bahia de Todos os Santos (1945) e Tenda dos Milagres (1969),
explorados mais detidamente neste trabalho, são aclamados pela imprensa como o mais autêntico retrato da Bahia, e onde o povo baiano e brasileiro deveria aprender. Já na oitava edição em 1961, o Guia era visto como indispensável para conhecer a Bahia.

Tudo que se deseja saber sôbre a Bahia está nesse livro. É um roteiro de informações, ao mesmo tempo que um hino de amor. Suas praias, seus subúrbios, onde se come a melhor moqueca de peixe, suas grandes festas, seus mais famosos candomblés, seus literatos, suas figuras mais famosas e tudo quanto forma o conjunto de atrações e belezas que deu fama e glória à capital baiana.

A recomendação da leitura de Tenda dos Milagres exigia-se como obrigatória, um dever cívico, sob pena de cometer crime de “lesa a Bahia”,

Por dever cívico que recomendo aos meus leitores e seus parentes que leiam o seu novo livro a Tenda dos Milagres.
Considero obrigação. Pois será muito desagradável que alguém de outras terras nos visitando e ao perguntar:
Você leu a Tenda dos Milagres?
Nossa resposta negativa é um crime de lesa a Bahia. Uma baianada condenável. Quem não leu trate de ler. A literatura também tem o seu serviço militar.

Dessa forma, recomendava-se ao Brasil e à Bahia aprender o Brasil e a Bahia
nas obras de Jorge Amado. Pois como ele mesmo disse em 1977, quando da gravação do filme de Nelson Pereira dos Santos, baseado no seu livro homônimo Tenda dos Milagres, “Nada do que está no livro, do que está no filme é inventado. São coisas que se passaram e que foram recriadas por mim e depois por Nelson”. E como verdade, poderia e deveria sim ser ensinado.

O sociólogo Gilberto Freyre emitiu sua opinião sobre o filme de Nelson Pereira, baseado no romance de Jorge Amado, que foi comentado pelo Jornal do Brasil,

Gilberto Freyre disse que compreende e até admira nos baianos essa “baianidade militante” em torno do valor de suas coisas: “Compreendo que a Bahia e os baianos promovam, de modo
brilhante como promovem, esses valores, servindo-se, para isso, de vários meios de informação, divulgação e persuasão”.

Mas Freyre pareceu irritado com o “baianismo exagerado”, que atribuía à Bahia
a prioridade histórica da intelectualidade brasileira, a idéia das elites baianas, já citada anteriormente, de acreditarem que a Bahia estava sempre no princípio, relegava a segundo plano o seu Pernambuco. Mas Jorge Amado, falando ainda de Tenda dos Milagres, concorda em matéria de mestiçagem com Gilberto Freyre. “Minha novela fala do nôvo homem surgido dessa mescla racial e cultural. Creio que o Brasil tem um exemplo a oferecer à sociedade humana com sua cultura mestiça, cuja base é uma força de cordialidade e amor”.

Fortalecido pelo sucesso da adaptação para o cinema do seu romance Tenda dos Milagres, aclamado pela crítica, Jorge Amado no exterior vira sinônimo de Brasil e sua obra rima com Bahia, conforme nos conta o jornal A Tarde, ao traduzir parte de artigo publicado no jornal francês Le Monde.
Ainda sob a grande emoção que brota torrencial em todo o trabalho, comentávamos que a “Tenda” tem a fôrça de um verdadeiro manifesto do Cinema Novo – 1977. Um manifesto político, cultural, histórico, estético, racial, democrático e com os verdadeiros sentidos da brasilidade poucas vezes tão generosa e grandiosamente expressos em música, filme, peça, livro ou poema.

Finalmente Jorge Amado teve um filme digno de seu talento de escritor e – sobretudo – de seu amor pelas belezas, pobrezas e grandezas do povo da Bahia, do Brasil e de Aruanda.

A brasilidade amadiana fincada na Bahia e na grande herança africana será o cartão postal do Brasil no exterior nessa segunda metade do século XX. No lançamento em 1977 da 27ª edição do seu Guia Bahia de Todos os Santos, Jorge Amado diz ter feito alterações no texto para contemplar as modificações decorrentes do crescimento da cidade com o passar do tempo, lamentando porém “a ameaça de descaracterização e até mesmo destruição de alguns de seus valores mais caros”, dentre eles a arquitetura, para dar espaço aos “violentos, magros e feios arranha-céus modernos”, que no seu tempo de juventude tanto lhe parecem positivos e capazes de fazer integrar a Bahia rumo ao progresso e à modernidade.

Um Jorge Amado mais maduro que conseguiu superar a sua fase inicial de reafirmação das idéias racistas, dos preconceitos mais grosseiros sobre as relações raciais no Brasil, mas que, no entanto, não deixou de afirmar e reafirmar outros estereótipos sobre os negros e mestiços em sua obra. Analisando sua obra, David Brookshaw concluiu que a luta da literatura amadiana foi mais contra uma moral burguesa, do que a favor de uma mudança social e política.

Desse modo, seus temas mais constantes baseiam-se numa atitude contra as restrições e a repressão da cultura burguesa, atitude que exalta de maneira romântica a psique das massas afro-brasileira como uma alternativa de libertação. Todavia, este nativismo, ou populismo na opinião de Bosi, depende, como não poderia deixar de ser, da manutenção de estereótipos sociais e raciais profundamente inculcados na mentalidade da classe que está sendo paradoxalmente criticada. Os romances de Amado, por isso, podem ser importantes meios de preservação da cultura africana no Brasil, embora também preservem e reforcem os mitos brancos concernentes ao afro-brasileiro como indivíduo.

Entre os mitos preservados sobre os negros em sua obra estão o da força hercúlea e monstruosa, o do espírito infantil, o de ser mentalmente inocente, de ser puro instinto, de ser sexualmente mais ativo, e o da mulata sensual, a quem não é permitido ser esposa ou mãe, pois é “o símbolo da liberalidade sexual.

Tenda dos Milagres, que Jorge Amado considerava como sendo “a melhor coisa que já escrevi”, é um livro que traz para o primeiro plano as tensões raciais da Bahia-Brasil. Escrito em 1968 e publicado no ano seguinte, foi largamente aplaudido pela crítica, como se viu, e lido pelos brasileiros.

Considerado como o melhor romance regionalista moderno, traz consigo as influências neorealista e neonaturalista desse movimento literário, caracterizado pela cor local, pelos fatos de crônicas e as ações situadas e detalhadas. Considerado um romance de tese, traz à tona o embate ideológico e cultural do racismo contra o anti-racismo. Nele estão ainda contidas as tensões entre a cultura popular e a cultura da elite, a repressão policial às manifestações da cultura afro-brasileira, especialmente ao candomblé; uma crítica à colonização mental da intelectualidade brasileira que se prostra aos pés dos cientistas estrangeiros; a ameaça da cultura popular pela modernização; a crítica a falta de liberdade imposta pela Ditadura Militar, dentre outras questões presentes nesse rico período em que seu romance foi escrito.

Se no Guia Jorge Amado tratou do lugar, em Tenda tratou do povo. Esse é um
romance que com certeza visa contribuir para a discussão da identidade nacional e a pensou a partir da afirmação da cultura popular, maciçamente brasileira, da afirmação de uma brasilidade negra que assumiu sua influência afro-brasileira, sincrética, misturada. Se seu romance é fincado na Bahia é porque foi onde essa mistura melhor se processou, mas a miscigenação é uma marca do Brasil, e sua maior contribuição para a humanidade.

O romance está situado em dois planos temporais. No primeiro, conta a vida de
Pedro Arcanjo, bedel da Faculdade de Medicina da Bahia, nascido em 1868 e morto em 1943, tal qual como se preservou na memória popular. No segundo, ambientado em 1968, momento em que o romance foi escrito, o que se vê é o grande circo publicitário montado para festejar o centenário de nascimento de Pedro Arcanjo, depois que sua obra foi retirado do ostracismo pelo cientista americano James Levenson.

O primeiro momento histórico no qual Pedro Arcanjo nasceu e viveu é marcado
pelas teorias racistas do século XIX e início do XX, pela perseguição aos candomblés na Bahia pela polícia e pela imprensa; pela I Guerra Mundial; pela Quebra da Bolsa de New York; pela “Revolução” de 1930; pela Ditadura do Estado Novo e pela II Guerra Mundial. No segundo, momento o que marca é a Ditadura Militar em vigor, as revoltas estudantis pelo mundo; o Ato Institucional número 5 no Brasil; o fechamento do Congresso; a passeata dos 100 mil; todos esses eventos que participam de forma direta ou indiretamente da narrativa criada por Jorge Amado.

Movendo-se nesse cenário tenso, temos, de um lado, Pedro Arcanjo e seus seguidores, ou seja, o povo afro-baiano morador do Pelourinho. O riscador de milagresLídio Corró, o capoeirista Mestre Budião, a mãe de santo Majé Bassã, a bela Rosa de Oxalá, o “afilhado” de Arcanjo, Tadeu Canhoto. Do outro, temos os professores da faculdade de Medicina da Bahia, adeptos das teorias racistas, Nilo Argolo, Oswaldo Fontes e o delegado perseguidor dos candomblés, Pedrito Gordo. No segundo momento histórico do romance os personagens também se dividem entre os defensores das idéias de Arcanjo, e conhecedores de sua obra, como os professores Ramos e Azevedo e a folclorista
Edelweiss Vieira, e aqueles que queriam apenas lucrar com a sua imagem. Dentre estes, situavam-se os políticos e jornalistas.

O lugar onde essa trama se desenrola, a “universidade vasta e vária” do amplo “território livre e popular” do Pelourinho, tendo como seu centro a Tenda dos Milagres, situada na ladeira do Tabuão, nº. 60, “a reitoria dessa universidade popular”, onde Lídio Corró risca seus milagres e Arcanjo, quem sabe seu reitor, curvado sobre velhos tipos gastos da caprichosa impressora, na oficina arcaica e paupérrima, compõe e imprime seus livros sobre o viver baiano.

O segundo, “ali bem perto, no Terreiro de Jesus”, a Faculdade de Medicina, que, no começo do século XX, encontrava-se propícia a receber e chocar as teorias racistas, pois deixara paulatinamente de ser o poderoso centro de estudos médicos fundado por D. João VI, fonte original de saber científico no Brasil, a primeira casa dos doutores em matéria de vida, “para transformar-se em ninho de subliteratura, da mais completa e acabada, da mais retórica, balofa e acadêmica, a mais retrógrada”. Lugar propício para deflagração de bandeiras de preconceito e do ódio.

De lá é que vinham as piores interpretações sobre a influência do negro e do mestiço para o Brasil e, justamente, do maior desafeto de Arcanjo, o professor racista convicto Nilo Argolo. Ele exaltava

a superioridade da raça ariana. A inferioridade de todas as demais, sobretudo da negra, raça em estado primitivo, subumano. A mestiçagem, o perigo maior, o anátema lançado contra o Brasil, monstruoso atentado: a criação de uma sub-raça no calor dos trópicos, sub-raça degenerada, incapaz, indolente, destinada ao crime. Todo o nosso atraso devia-se à mestiçagem. O negro ainda poderia ser aproveitado no trabalho braçal, tinha a força bruta dos animais de carga. Preguiçoso e salafrário, o mestiço, porém, nem para isso servia. Degradava a paisagem brasileira, apodrecia o caráter do povo, empecilho à qualquer esforço sério no sentido do progresso, “do progredimento”.

Foi essa visão racista que tanto exasperou Arcanjo e o incitou a escrever seus
livros numa postura de o contrapor, narrando o viver do povo baiano e expor eu saber, sua arte, sua cultura. Ao contestar a tese da inferioridade negra e mestiça, Arcanjo não só positiva a mistura, mas afirmava que a raça advinda da mestiçagem é mais talentosa e resistente.

São de tal maneira terríveis as condições de vida do povo baiano, tamanha é a miséria, tão absoluta a falta de qualquer assistência médica ou sanitária, do mais mínimo interesse do Estado ou das autoridades, que viver em tais condições constitui por si só extraordinária demonstração de força e vitalidade. Assim sendo, a preservação de costumes e tradições, a organização de sociedades, escolas, desfiles, ranchos, ternos, afoxés, a criação de ritmos de dança e canto, tudo quanto significa enriquecimento cultural adquire a importância de verdadeiro milagre que só a mistura de raças explica e possibilita. Da miscigenação nasce uma raça de tanto talento e resistência, tão poderosa, que supera a miséria e o desespero na criação cotidiana da beleza e da vida.

Não obstante seus esforços, a visão racista justificou e legitimou a repressão aos costumes populares como a capoeira, o samba de roda, os afoxés e, especialmente, aos candomblés. O personagem Pedrito Gordo, delegado, justificava de seguinte forma suas ações: “São os mestres que afirmam a periculosidade da negralhada, é a ciência que proclama guerra às suas práticas anti-sociais, não sou eu”. E, ainda, completa falando de sua função: “Apenas trato de extirpar o mal pela raiz, evitando que ele se propague. No dia em que tivermos acabado com toda essa porcaria, o índice de criminalidade em Salvador vai diminuir enormemente e por fim poderemos dizer que nossa terra é civilizada”.

A civilidade baiana era também preocupação constante dos jornais de início do
século XX, trazidos por Amado no romance. Segundo ele “As gazetas protestavam contra o modo por que se tem africanizado, entre nós, a festa do carnaval, essa grande festa de civilização”, e continua:

Se alguém julgar a Bahia pelo seu Carnaval, não pode deixar de colocá-la a par da África, e note-se, para nossa vergonha, que aqui se acha hospedada uma comissão de sábios austríacos, que naturalmente, de pena engatilhada, vai registrando esses fatos, para divulgar nos jornais da culta Europa”. Onde estava a polícia? Que fazia “para demonstrar que esta terra tem civilização?”

Era nossa face africana a nos envergonhar perante a Europa. A barbárie diante da civilização, e então exorta o triste jornalista: “onde irá parar nossa latinidade? Pois somos latinos, bem sabeis, se não sabeis, aprendereis à custa de relho e de porrada”.

Arcanjo, por seu turno, defendeu ardentemente a solução brasileira para o problema da raça: a fusão, a mistura, o caldeamento, a miscigenação. Segundo ele, “a mistura começou com o naufrágio de Caramuru, nunca mais parou, prossegue correntia e acelerada, é a base da nacionalidade”. Afirmava ainda que “é mestiça a face do povo brasileiro e é mestiça a sua cultura”. E seria esse o nosso maior exemplo para o mundo. “Se o Brasil concorreu com alguma coisa válida para o enriquecimento da cultura universal, foi com a miscigenação – ela marca nossa presença no acervo do humanismo, é nossa contribuição maior para a humanidade”.

Diante de nossa solução conciliadora, por meio da mistura das raças, e da forma “correntia e acelerada”, como ela estava se processando, Arcanjo sonhava com o futuro,

Formar-se-á uma cultura mestiça de tal maneira poderosa e inerente a cada brasileiro que será a própria consciência nacional, e mesmo os filhos de pais e mães imigrantes, brasileiros de primeira geração, crescerão culturalmente mestiços.

As palavras de Arcanjo, suas idéias, seus sonhos não são apenas seus. Essa era a solução e visão que o próprio escritor Jorge Amado possuía do problema racial no país e, é essa visão que ele expressa em entrevista em 1981,

Não há outra solução para o problema de raça no mundo senão a mistura. Não há outra e, se alguém tiver, que me apresente...quero ver! Não é um racismo diferente, seja racismo preto, seja racismo árabe, judeu, que vai acabar com o problema. Você não acaba com o racismo botando racismo contra racismo. Isso é uma coisa idiota, que está em moda, mas é uma moda superficial...é como uma dessas erupções que se tem na pele, brotoejas, coceiras, que acabam passando.

Essa também era sua forma de se opor à perspectiva racial estadunidense. Enquanto lá havia segregação, aqui havia mistura, enquanto lá havia luta (armada), aqui havia conciliação. Logo, nossa situação era superior à norte-americana. Amado descreve uma tentativa de transformar a figura de Arcanjo, numa peça teatral, num adepto do Poder Negro norte-americano, da seguinte forma:

As divergências referiam-se ao conteúdo do espetáculo e à figura de Pedro Arcanjo. Estácio Maia, declarando-se irredutível partidário brasileiro do Poder Negro norte-americano, transformava Pedro Arcanjo em membro da organização Black Panther ao declamar no palco discursos e palavras de ordem de Carmichael advogando a separação de raças, o ódio irremediável. Uma espécie de professor Nilo Argolo às avessas. Negros de um lado, brancos de outro, proibida qualquer mistura e convivência, em luta mortal. Jamais consegui saber onde o violento líder da negritude nacional situava os mulatos.

Vê-se que Amado compara as idéias dos negros estadunidenses, partidários do Black Panther, às idéias do professor racista Nilo Argolo. Nem a afirmação de uma cultura negra, nem a afirmação de uma cultura branca, tampouco a possibilidade de respeito mútuo entre elas. Para ele só havia uma saída possível, a mestiçagem. Só a mistura seria capaz de acabar com as hierarquias sociais.

Nisso, Amado e Freyre se aproximavam. Ambos viam na mestiçagem a solução ideal para o problema racial brasileiro e mundial. Mas, não era apenas nesse aspecto que havia semelhanças em seus pensamentos. O exacerbado vigor sexual do mulato, a superexcitação das mulatas, o arrivismo mulato, dentre outras nuances, podem ser percebidas.

No romance de Jorge Amado, o mulato Pedro Arcanjo é caracterizado como um grande sedutor, portador de uma incontinência sexual colossal, arrendatário de mulheres, macho de tantas fêmeas, portador de estrovenga poderosa, pastor de dócil e fiel rebanho: pastor de donzelas, sedutor de casadas, patriarca de putas, Pedro Arcanjo, com umas e outras, povoou o mundo.364 De todas cuidava, cada uma a sua vez, e a todas satisfazia, como se outro emprego não tivesse além daquele de cama e vadiagem, folguedos de meter e mandar vara, doce ofício.

Arreliada com tal situação “humilhante para o femeaço inteiro”, resolveu uma iabá dar-lhe uma lição. Contudo, Arcanjo, auxiliado por Exú, conseguiu fazê-la sucumbir. O embate “durou três dias e três noites (...) sem intervalo: dez mil trepadas e uma só metida” e a iabá, finalmente, alcançou o gozo. Capaz de satisfazer até mesmo uma diaba mulher, o mulato Arcanjo encarnou com maestria o mito do vigor sexual exacerbado do homem negro e mestiço, mantendo o estereótipo há séculos forjado.

A mulata amadiana também não escapa dessa aura de exacerbação sexual. Dentre os muitos exemplos que poderíamos citar (entre eles Rosa de Oxalá, a própria iabá que se transformou na negra Dorotéia), escolhemos Ana Mercedes, a jornalista que ciceroneou o cientista americano James D. Levenson em sua estada na Bahia. A mulata é da seguinte forma descrita:

Rebolosa é termo chulo e falso, adjetivo vil para aquela navegação de ancas e seios, em compasso de samba, em ritmo de porta-estandarte de rancho. Muito sexy, a minisaia a exibir-lhe as colunas morenas das coxas, o olhar noturno, o sorriso de lábios semi-abertos, um tanto grossos, os dentes ávidos e o umbigo à mostra, toda ela de oiro. Não, não ia a rebolar-se, pois era a própria dança, convite e oferta.

A sensualidade da mulata é tanta que, como se vê, é difícil encontrar os adjetivos corretos, aqueles capazes de captar toda a eletricidade sensual causada por sua presença. E foi utilizando de seus atributos sensuais, por meio da sedução, que conseguiu entrevista exclusiva com o Dr. Levenson (gravado no quarto de hotel). Era dessa mesma forma que conseguia que seus amantes escrevessem versos em seu nome, pois é descrita no romance como não tendo talento algum. Falando sobre seus métodos como repórter e poetisa, outros jornalistas comentaram:

Vamos convir, meu caro Brito, que com tais métodos... Quem não daria entrevista especial a Ana Mercedes, a sós, num quarto de hotel? Até eu. Se isso não é concorrência desleal, não sei o que seja. Vocês sabem como ela é conhecida nas redações? Xibiu de ouro.

Enciumado, seu noivo, Fausto Pena, a descreve como uma “vaca insaciável” com “infinita capacidade de mentir”. Sexualmente lasciva e de moral frouxa, continua Ana Mercedes a reproduzir o perfil da mulata degenerada à semelhança da Rita Baiana do Cortiço.

Outras mulheres presentes no romance, pela negação deste tipo, reforça o estereótipo. É o caso das mães de santo descritas sempre como sábias, rainhas, negras majestosas, as pretas velhas, as iaôs assexuadas. Também a mãe de Arcanjo é descrita como uma mulher forte e valente, que criou o filho sozinha após a morte do pai, na guerra do Paraguai, “sem ajuda de homem pois não quis a mais nenhum”. Ao sentir-se desanimado, Arcanjo pensava orgulhoso na mãe: “de manhã à noite no trabalho estafante, trancada num círculo de saudade, inflexível na decisão de manter o luto e de ganhar o sustento do filho com a força de tão frágeis braços”.

Para Amado, era difícil conciliar nas mulheres mestiças baianas a sexualidade, inteligência e o “caráter”. A folclorista Edelweiss Vieira, uma das únicas personagens femininas amadianas intelectualizadas, é prova disso. Descrita no romance como “Mulata branca de rosto redondo e manso falar, sorriso modesto, simpatia de pessoa”, uma das poucas conhecedoras e admiradoras da obra de Arcanjo na Bahia, ante a um bando de jornalistas, empresários e políticos que só queriam aparecer, ela é duplamente assexuada nesse romance, por ser “branca” e intelectualizada. Enquanto que Luiza, a loira noiva de Tadeu, é descrita como possuidora da “clara e diáfana beleza de donzela”.369 É a mesma “mulher lírio” descrita por Brookshaw como a ideal e inatingível musa dos românticos (especialmente para os poetas mestiços).

A sexualidade magnetizante, no mundo amadiano, é característica de seres instintivos, negros ou mestiços. Ana Mercedes, Dorotéia, Gabriela, Dona Flor, Tieta e Tereza Batista são exemplos disso.

Outro caso típico é o de Rosa de Oxalá, uma mulata de tirar o fôlego, o amor platônico de Pedro Arcanjo. Amante de um dos últimos senhores do Recôncavo, com ele teve uma filha. No entanto, para ter o direito de ser sua filha registrada pelo pai, foilhe negado o direito de criá-la. “A condição para legitimar Miminha é que ela será criada pelas tias, afastada de sua companhia”. Você poderá vê-la, mas “minhas irmãs a educarão”. É a própria Rosa quem sentencia: “para ele eu só prestava na cama”, não servia para ser mãe. Aqui novamente, a “Linha de Comportamento” discutida por Brookshaw entra em ação. Sua filha (Miminha), mulata clara, “digna de altar de igreja”, não poderia ser criada e educada por ex-mulher dama, negra de roda de samba e candomblé.

A briga entre as tradições culturais européia e africana, ou seja, entre a moralidade e a imoralidade, não permitiria que Miminha fosse criada de acordo com a tradição cultural afro-baiana, caso Rosa almejasse, que sua filha ficasse acima da linha de comportamento, condição indispensável para que arranjasse um bom casamento.

Ao ver sua filha se casar, Rosa decide deixar o Pelourinho, o candomblé, o samba e a Tenda dos Milagres, e explica seu comportamento da seguinte forma: “Agora, Pedro, sou mãe de mulher casada, da esposa do doutor Altamiro, sou parenta dos Lavignes. Quero ter direito à minha filha, Pedro, a freqüentar a sua casa, a me dar com sua gente. Quero poder criar meus netos”. Ela também, para ser aceita pelos seus novos parentes ricos e brancos, teria que abandonar sua tradição cultural.

Tadeu Canhoto, afilhado de Arcanjo, tem destino semelhante. É o primeiro filho
do território vasto e popular do Pelourinho a formar-se doutor engenheiro. É o mulato valorizado pelo saber intelectual de quem nos falou Freyre. Sua ascensão, no entanto, não foi fácil. Precisou romper com o preconceito da família, branca e bem colocada economicamente da bela Luiza, por quem se apaixonou. Mas, também, ao ser aceito por sua “nova família”, abandonou o Pelourinho, os amigos, e até o próprio Arcanjo. Segundo Arcanjo, “Tadeu começou a galgar a escada ainda na faculdade, à frente dos colegas. Decidira subir todos os degraus, disposto a obter um lugar em cima”.

O mulato “civilizado” pela cultura branca consegue o alto (e irônico) posto de acessor do famoso engenheiro Paulo Frontin, no Rio de Janeiro, responsável pelas remodelações urbanísticas, propostas pelo prefeito Pereira Passos, para a então capital federal e pela derrubada de moradias populares para construir largas avenidas para o trânsito e o lazer civilizado da classe média local. Sua escalada, contudo, é aprovada por Arcanjo.

Para que lutamos nós, compadre Lídio, meu bom, meu camarado? Por que estamos aqui, dois velhos sem vintém no bolso? Por que fui preso, por que acabaram com a tipografia? Por quê? Porque nós dissemos que todos devem ter direito a estudar, a ir avante. Você se lembra, compadre, do professor Oswaldo Fontes, do artigo na gazeta? A negralhada, a mulataria está invadindo as faculdades, preenchendo as vagas, é preciso um freio, pôr cobro, proibir essa desgraça. Recorda a carta que escrevemos e mandamos à redação? Virou artigo de fundo e as páginas do jornal foram coladas nos muros do terreiro. Tadeu partiu daqui, aqui começou sua escalada, subiu e já não é daqui, meu bom, é do Corredor da Vitória, da família Gomes, é o dr. Tadeu Canhoto.

Novamente a tradição cultural branca européia vence. Todavia, chamamos atenção para os termos utilizados tanto por Freyre quanto por Amado para caracterizar essa mudança, essa transição. Freyre utiliza ascensão e Amado subida, ambos nos sugerem a passagem de uma condição inferior para outra superior, e não apenas economicamente. O próprio Freyre nos lembra que era possível no Brasil, passar de uma classe à outra, mas também de uma raça à outra. Ao serem aceitos acima da linha do comportamento, esses mulatos eram considerados brancos, ou pelo menos embranquecidos, “esquecia-se”, ou mascarava-se suas heranças africanas, tanto fenotipicamente, quanto culturalmente. Mas Brookshaw nos lembra que,

É porém, depois de comprometer-se a cruzar a linha do comportamento que o negro encontra problemas, porque entra em um mundo competitivo em que a maioria dos participantes são brancos. Não importa quanto esforço ele faça para adaptar-se aos padrões de comportamento social e de tendência cultural dele exigidos; não importa o quanto ele esteja condicionado a tal tendência e o quanto sinta como sendo sua própria tendência, as atitudes para com ele não dependerão de qualquer legislação que possa existir para protegê-lo, mas do indivíduo que porventura encontrar e que possa humilhá-lo, ignorando sua mentalidade branca e vendo apenas a cor negra de sua pele. É então que ele descobre que por trás da linha do comportamento existe a linha de cor que, provavelmente, é ainda mais sinistra do que aquela legalmente definida, uma vez que se trata de uma linha que toma a forma de estereótipo na visão que o homem branco tem de seu compatriota negro.

Mestre Pedro Arcanjo preferiu passar pela rica e vasta vivência popular sem “subir”, mas se ele não ascende, pelo menos muda. Seus estudos “científicos” acabam submetendo o saber popular afro-baiano. Questionado pelo professor Fraga Neto sobre como conseguia conciliar ciência e candomblé, Arcanjo responde que

Durante anos e anos acreditei nos meus orixás como frei Timóteo acredita nos seus santos, no Cristo e na Virgem. Nesse tempo tudo que eu sabia aprendera na rua. Depois busquei outras fontes de saber, ganhei novos bens, perdi a crença. O senhor é materialista, professor, não li os autores que o senhor cita, mas sou tão materialista quanto o senhor.

Mas, agora, ele sabia que tudo não passava de brinquedo de criança, resultado do medo primitivo, da ignorância e da miséria. Nesse ponto, o homem Jorge Amado responde pela boca de Arcanjo um questionamento que pairava sobre ele próprio e disse: “Meu materialismo não me limita”. “Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta da capoeira, o samba de roda, os afoxés, os atabaques, os berimbaus são bens do povo. Todas essas coisas e muitas outras que o senhor, com seu pensamento estreito que acabar, professor, igualzinho ao delegado Pedrito”.

Para Arcanjo, um dia todos saberiam da “verdade” que a ciência revelava. No entanto,
ele esperava que até lá, tudo estivesse “misturado por completo”. Mas havia ainda outra verdade científica para ser revelada. A de que não haveriam nem brancos nem negros, mas sim ricos e pobres, tão somente. “A divisão de branco e negro, meu bom, se acaba na mistura”. A divisão agora era outra – ricos versus pobres –, e era contra ela que se deveria lutar.

Vemos aqui a questão social superando a racial, como aliás, é comum ao pensamento de um socialista, como Jorge Amado, que assim se declarou até o fim de sua vida. A mestiçagem é defendida como ideal e solução, mas vimos que ela privilegia aos brancos, tanto pelo branqueamento físico almejado, quanto pelo cultural. Exemplo disso é o maravilhamento de Arcanjo com a neta de Rosa de Oxalá, não mais mulata, agora descrita como morena, “tão igual e tão diferente, quantos sangues se misturaram para fazê-la assim perfeita? Os longos cabelos sedosos, a pele fina, os olhos azuis e o denso mistério do corpo esguio e abundante”.

A miscigenação e a ascensão social, como vimos, afastavam os afro-baianos, os afro-brasileiros de seus espaços e valores culturais. O que nos leva a concluir que a identidade negra nunca interessou à Bahia, nem ao Brasil. O que interessava, no máximo, era a identidade mestiça, embranquecida e acima da linha do comportamento, resolvendo dessa forma, que apenas os mestiços embranquecidos fariam parte do povo brasileiro nos escritos de Amado e Freyre."

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Fonte:
ELISÂNGELA SALES ENCARNAÇÃO: "A BAHIA IMAGINANDO-SE NAÇÃO: DISCURSOS QUE FORJARAM UMA IDENTIDADE CULTURAL BAIANA ENTRE AS DÉCADAS DE 1940 E 1970" (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre. Orientadora: Márcia Maria da Silva Barreiros Leite, 2010).

Nota
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As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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