A religiosidade dos escravos no Brasil



“Falar de religião afro-brasileira implica conhecer a cultura dos povos africanos e as tentativas de sobrevivência dessa mesma cultura no solo brasileiro. Portanto, a África não é o personagem principal do nosso tema, mas o local de origem das populações que vão interagir com os elementos do Novo Mundo. Para este fim, se faz necessário compreender o pensamento do homem africano cujas relações com o sagrado visam assegurar uma vida perene e o papel deformador da escravidão impondo rupturas a toda infra-estrutura social (organização familiar e sistemas políticos e econômicos) que não tinha como sobreviver fora da África. Assim, o único ponto de resistência foi a superestrutura cultural, ou seja, a maneira de sentir, de pensar e de se relacionar com o sagrado. E, até mesmo este, precisou se adaptar à nova realidade social: inter-relações com o senhor e com os grupos culturais diferentes. Carlos Eugênio Soares, lembra que foi somente na experiência do cativeiro e da diáspora, que os negros puderam se descobrir enquanto africanos e partilhar uma herança comum. “A identidade étnica criada pelo tráfico, silenciadora da identidade nativa, seria substituída, por sua vez, pelo novo código construído no cativeiro, em conflito com as identidades ‘crioullas’ e brancas” .

Quanto à origem das populações escravas, existiram dois grandes conjuntos de grupos
que se fizeram representar no tráfico negreiro: bantos e sudaneses. Os bantos englobavam as populações oriundas do antigo reino do Congo, que hoje compreende as regiões localizadas no atual Congo, Angola, Gabão, Moçambique e Zaire. Explorado pelos portugueses desde meados da década de 1480, o Congo foi transformado na principal região fornecedora de escravos ao longo de mais de trezentos anos. A importação de seres humanos começou em 1517, para a Europa; e, em 1537, para o Brasil, tendo aumentado no século XVII e decrescido apenas no final do século XVIII. Os escravos de origem banto foram espalhados por quase todo o litoral brasileiro e pelo interior, principalmente, Minas Gerais e Goiás.

Desse grupo, calcula-se que tenha vindo o maior número de escravos. Portanto, não é
de se estranhar a presença determinante da cultura banto na cultura ocidental, seja no aspecto religioso (macumba, vodu), musical (Samba, Mambo, Rumba) ou mesmo estético (Cubismo, Arte Naif, Carnaval). Observa-se os empréstimos da religiosidade banto na Umbanda com a presença de elementos da performance ritual (música, dança e transe), de elementos pictográficos (pontos riscados, simbolismo das cores), dos elementos ritualísticos (pemba, plantas, pedras). A contribuição da tradição banto destaca-se também por meio de elementos filosóficos como o culto aos mortos, o culto à natureza e o dogma da reencarnação.

Os sudaneses englobam grupos originários da África Ocidental e que viviam em
territórios hoje conhecidos por Nigéria, Benin (ex-Daomé) e Togo. São, entre outros, os iorubás ou nagôs (subdividido em queto, ijexá, egebá etc), os jeje (ewe ou fon) e os fanti-axantis. Entre os sudaneses também vieram algumas nações islamizadas como os haussás, tapas, peuls, fulas e mandingas. Estas populações se concentraram mais na região açucareira da Bahia e de Pernambuco, e a entrada no Brasil ocorreu sobretudo em meados do século XVII, durando até a metade do século XIX.

Os negros, vendidos como escravos, eram capturados diretamente pelos europeus ou
comprados em regiões de intenso comércio escravista, como a do Golfo do Benin, conhecida como Costa dos Escravos. Em muitos casos, os negros vendidos nessas regiões eram aprisionados por tribos inimigas ou pertenciam a facções rivais dentro da própria tribo. Pierre Verger relata o caso de uma rainha daomeana que fora vendida como escrava e veio parar na cidade de São Luiz, no Maranhão, em fins do século XVIII. E nessa cidade, no terreiro Casa das Minas, ainda existente, teria se difundido o culto aos deuses (voduns) da família real.

O regime de produção escravista fez com que membros de reinos, clãs e linhagens;
aliados e inimigos; caçadores, guerreiros e agricultores; sacerdotes e cultuadores de antepassados; fossem brutalmente retirados de um contexto social, político e religioso próprio para se tornarem mão-de-obra numa terra distante, numa sociedade diferente, na qual não lhes conferiam o status de pessoas. Eram vistos como meras “peças”, compradas e revendidas como coisa. Sob este regime, os escravos ficavam à margem do convívio social. De um lado, estava o modelo dominador da família patriarcal da casa-grande, no qual o senhor de engenho governava absoluto, tendo sob suas ordens mulher e filhos, clero e autoridades civis. De outro, estavam os valores e tradições culturais trazidos da África que, a todo custo, precisavam ser conservados.

A catequese dos negros não promoveu, salvo em raras exceções, qualquer modificação nas condições desumanas de trabalho e nem aliviou os castigos físicos aos quais poderiam ser submetidos. Esta atitude contraditória da Igreja fez com que a catequese e a manutenção da escravidão andassem de mãos dadas. Um acordo entre a Coroa portuguesa e a Igreja dizia que o escravo deveria ser batizado no prazo máximo de cinco anos depois de chegado ao Brasil. Assim, competia à Igreja aplicar os sacramentos básicos que os transformassem de pagãos e pecadores em cristãos. O batismo e a adoção de um nome cristão – geralmente de inspiração bíblica ou de santos como José, Maria, Sebastião e Benedito – não lhes garantiu, entretanto, nenhum tratamento fraterno ou mesmo humano. Aos escravos, era ensinada a resignação e a obediência ao senhor de engenho como forma de alcançar o céu e redimir os pecados das
próprias almas. A comparação entre as privações da vida do escravo e os sofrimentos de Cristo era freqüentemente utilizada para consolá-los.

A vida sexual dos negros também era vigiada para que se pudesse combater o pecado da promiscuidade e preservar a moral católica. Os casais se formavam a partir da preferência do senhor de engenho, tendo em vista a procriação de filhos saudáveis para o trabalho na lavoura, e o casamento era abençoado pelo padre local. Com relação ao sexo entre brancos e negros, a moral era mais condescendente diante da evidência dos freqüentes nascimentos de filhos bastardos do senhor de engenho com as escravas ou os filhos destes, que se iniciavam sexualmente com as negras. Para esses mulatos, que continuaram escravos, o destino reservado foi a dupla discriminação: a dos brancos que os consideravam negros e a destes que
os consideravam brancos.

A Igreja, vinculada a interesses diversos, ora tentava disciplinar a vida religiosa dos escravos, ora fazia vistas grossas às danças, cânticos e rezas realizadas em domingos e feriados santificados, nos terreiros das fazendas, em frente às senzalas. Nessas ocasiões os padres preferiam acreditar na justificativa de que os “batuques” eram homenagens aos santos católicos feitas na língua natal. O colonizador português, quando admitia os batuques, era porque, além de considerá-los como uma diversão inofensiva (folclore), julgava necessário haver certa dose de diversão em benefício do próprio rendimento do trabalho
. Acreditava-se, também, que as festas dos negros era uma forma de manter viva a rivalidade entre grupos de escravos provenientes de nações inimigas. Assim, a organização de rebeliões ficaria mais difícil se não fossem criados laços de solidariedade entre as etnias africanas que as aproximassem contra o inimigo comum: os senhores de escravos.

Se as danças e músicas foram toleradas, o aspecto mágico da religiosidade africana foi
duramente combatido. O babalaô (sacerdote), ao manipular objetos, fazer sacrifícios de animais e invocar secretas orações, acredita poder entrar em contato com os deuses (orixás), conhecer o futuro, curar doenças, melhorar a sorte e transformar o destino das pessoas. Por esses princípios, a magia africana era vista como prática diabólica pelas autoridades eclesiásticas, como havia ocorrido com as religiões indígenas, principalmente porque, sendo o catolicismo colonial também uma religião fortemente magicizada, era preciso distinguir a católica nos santos, almas benditas e milagres, das crenças consideradas “primitivas” nas quais entidades incorporavam, espíritos recebiam alimento sacrificial de sangue e adivinhos operavam curas. Da mesma forma, era preciso distinguir a ingestão da hóstia, representando o corpo de Cristo, da antropofagia ritual dos índios.

O tribunal do Santo Ofício da inquisição, durante visita ao Brasil, perseguiu e condenou muitos negros por considerar os batuques, com cantos e danças frenéticas, como invocações ao demônio à semelhança dos sabás europeus
. O transe dos negros era visto como demonstração de possessão demoníaca e as adivinhações, sacrifícios e outras práticas mágicas eram classificadas como bruxaria, “magia de negro”. Como se vê, a religião africana era considerada coisa do mal, do diabo e ofensiva ao Deus católico.

A partir de fins do século XVII, o catolicismo brasileiro, até então uma religião doméstica centrada na capela da fazenda, passou a ser uma religião das cidades que se formavam ao redor dos engenhos de açúcar, no litoral, ou das minas de ouro, no interior
. As igrejas tornaram-se os principais centros aglutinadores das atividades religiosas e pontos de convergência da comunidade, que era formada pelos segmentos básicos da sociedade colonial: a aristocracia, o clero e os escravos.

Se a religião promovia, portanto, certa aproximação entre negros e brancos e facilitava
o contato entre classes sociais opostas, era preciso que a Igreja controlasse essa aproximação, mantendo os grupos subordinados tanto no interior das instituições católicas como na sociedade fora dela. Marisa de Carvalho Soares explica que no Rio de Janeiro setecentista a irmandade de São José reunia as famílias mais ilustres da cidade; pretos e crioulos seriam devotos de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário; e os pardos, de Nossa Senhora da Conceição. Para a historiadora, seria impossível pensar a hierarquia social no Rio de Janeiro do século XVIII sem levar em conta a hierarquia dos homens e dos santos.

O ofício da missa e a realização das festas religiosas ou cívicas que envolviam procissões, autos e folguedos quebravam a rotina de trabalho, marcando os domingos e feriados santificados. Eram momentos privilegiados de reunião da sociedade, de convergência da população urbana e das vizinhanças. Tornados católicos, os negros escravos e a população mestiça tinham o direito de freqüentar a missa e as igrejas dos senhores. Contudo, só faziam isso em espaços reservados a eles, como nos pórticos de onde assistiam a missa de pé. A nave principal ficava reservada às famílias senhoriais, as quais ocupavam os bancos de acordo com a riqueza e o prestígio que desfrutavam na sociedade. Quanto mais rica e poderosa, mais próximas ficavam do altar. Nas procissões que percorriam as ruas da cidade, a aristocracia branca, o clero, os negros e os mulatos desfilavam sempre de modo a não se misturarem. Marisa de Carvalho Soares lembra que na hierarquia das agremiações religiosas leigas, africanos e crioulos, pretos e pardos situam-se sempre nas últimas alas do cortejo. A pesquisadora sublinha que também entre eles havia distinção: dentre os mais respeitados estavam os mulatos e pretos forros, no outro extremo ficavam os africanos recém-chegados,
chamados de “pretos novos”.

Ao participar dessas cerimônias, o negro incorporou a elas o próprio modo de ser,
marcado pela alegria, música, dança e utilização de instrumentos de percussão. O viajante Auguste de Saint-Hilaire, que esteve no Brasil entre 1816 e 1822, relata que durante a procissão das Cinzas, em Minas Gerais, por influência dos negros, a cerimônia tornara-se irreverente, com “ridículas palhaçadas que se misturavam com o que a religião católica tem de mais respeitável”. Os alemães Johann von Spix e Carl von Martius, que estiveram no Brasil nessa mesma época em visita a Salvador, narram que o vozerio e os “divertimentos extravagantes” do grande número de negros, reunidos durante os festejos do Senhor do Bonfim, “dão a essa festa popular uma feição estranha e excêntrica, da qual pode fazer idéia quem observou as diversas raças na sua promiscuidade”. Marisa de Carvalho Soares, ao analisar a realização das folias na Bahia, comenta que os excessos cometidos pelos negros levaram à proibição de a irmandade do Rosário de Salvador sair às ruas. A autora explica que a cortejo tinha passagem solene. O retorno, entretanto, era o momento de subversão da ordem.

As investidas da elite branca contra as transformações que a religiosidade africana impôs ao catolicismo fizeram com que a Igreja, em muitos casos, proibisse a realização das cerimônias dos negros junto com as festas católicas. A separação entre brancos e negros imposta pela Igreja poderia ser observada, também, na criação das irmandades dos “homens pretos”
. Os negros, impedidos de participar das irmandades dos brancos, foram reunidos em irmandades religiosas próprias, separadas segundo a cor da pele e a condição de escravo ou de liberto. Uma das mais conhecidas irmandades foi a de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, estabelecidas em vários pontos do Brasil. Estas irmandades, criadas pelos jesuítas em 1586, eram o espaço possível para a doutrinação coletiva e visavam atrair os negros através da devoção aos santos de cor preta às obrigações sacramentais prescritas pelo Concílio de Trento. Em geral, as irmandades reuniam escravos de uma mesma nação africana e muitas vezes eram exclusivas de homens ou de mulheres. Na Bahia, os daomeanos (jejes) foram agrupados na confraria do Senhor da Redenção, os negros angolas na Ordem Terceira do Rosário, os mulatos na Ordem do Senhor da Cruz. Preocupada em traduzir o catolicismo para a compreensão dos negros, a Igreja permitia que as irmandades organizassem os próprios folguedos como forma de participarem das comemorações cristãs.

Cabe lembrar que não existia no século XVIII a mentalidade abolicionista do século XIX. O que o escravo alvejava era a alforria. Quando isso não era possível, buscava outras formas de escapar ao controle do senhor, em alguma esfera de sua vida cotidiana. Marisa de Carvalho Soares argumenta que, no universo escravista, a liberdade poderia ser a escolha de parceiros conjugais, a permissão de freqüentar os batuques ou a possibilidade de filiar-se uma irmandade. As irmandades religiosas seriam uma das poucas vias de acesso à experiência da liberdade e ao reconhecimento social
. Os escravos tinham também, nessas agremiações, uma importante associação de auxílio mútuo. Se, por um lado, as contribuições dos afiliados constituíam uma forma de pecúlio para comprar a alforria; pagar advogados para demandas “justas” de um escravo contra seu proprietário; assegurar um enterro cristão aos membros associados (o que geralmente era feito misturando-se as ladainhas católicas com os ritos funerários da nação africana do morto); e a construção de igrejas próprias para os negros, por outro lado, as irmandades de pretos teriam contribuído para a organização dos primeiros candomblés baianos. Nos terreiros jeje-nagô as imagens de santos católicos aparecem em partes externas do templo, contudo o assentamento da energia estava mesmo nas pedras sagradas que se encontram veladas sob os panos e plantas dos altares, escondidas da curiosidade e do preconceito.

Se a dos negros nos próprios deuses esteve inicialmente disfarçada nas danças e cantos que faziam em louvor aos santos católicos, num segundo momento essa fé se dirigiu tanto a uns como a outros. Ou seja, o negro, assim como o índio, continuou acreditando nos seus deuses mesmo considerando-se cristão. Portanto, a enorme separação social entre brancos, negros e índios não significou que as tradições culturais se mantivessem impermeáveis uma às outras. O que se verificou no universo religioso do Brasil foi que as religiões, que aqui se encontraram, romperam seus limites e se amalgamaram, dando origem
às novas formas de religiosidade: uma religiosidade mestiça.

Ainda que os povos bantos tenham chegado ao Brasil antes dos iorubás, a acentuada influência destes últimos demonstra que a liderança iorubá foi aceita e reforçada pelas demais etnias africanas. Ligiéro acredita que foi a conservação do idioma iorubá o fator mais importante para o predomínio desta cultura sobre a cultura banto. “É na língua que se encontra codificada grande parte das informações que constituem a identidade de um povo, e
os demais idiomas africanos presentes no Brasil já se teriam fragmentado com o tempo”.

Para o autor, o domínio dos iorubás no contexto afro-brasileiro deveu-se também a certa dose de diplomacia na organização multicultural dos terreiros. Além de agruparem num único templo divindades antes cultuadas separadamente em diversas regiões da África, os iorubás incorporaram ao próprio panteão as divindades Nanã, Obaluaiê e Oxumarê – a tríade de orixás cultuados pelos daomeanos. E, também, reservaram um discreto espaço para entidades de ascendência congolesa e ameríndia: caboclos, pretos velhos e exus, no mais das
vezes agrupados sob o nome genérico de “eguns” (espíritos dos mortos)."

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Fonte:
José Henrique Motta de Oliveira: "ENTRE A MACUMBA E O ESPIRITISMO: uma análise comparativa das estratégias de legitimação da Umbanda durante o Estado Novo". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História Comparada, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Profª. Drª. Maria Conceição Pinto de Góes Co-Orientador: Profº. Dr. Washington Dener S. Cunha). Rio de Janeiro, 2007.

Nota
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