As representações sociais sobre a favela



"Discutir as imagens que os moradores de uma favela constroem acerca do seu lugar de residência pressupõe compreender as representações sociais existentes sobre favelas no Brasil. Como se verá em detalhes no terceiro capítulo, é no bojo de um movimento de incorporação de algumas imagens e negação de tantas outras existentes sobre esse lugar que os moradores significam e re-significam cotidianamente a favela. Essa compreensão se ampara nos trabalhos de Jovchelovitch (1995), Minayo (1995) e Porto (2007), segundo os quais as representações sociais se manifestam por meio das palavras, sentimentos e condutas que acabam por se institucionalizar. Elas devem ser analisadas considerando as estruturas, os comportamentos sociais e as interações cotidianas, ou seja, quando a vida social assume “dimensão pública”.

Ao revisar a história sobre as imagens que a favela suscita Lícia Valadares (2005) analisando, especificamente, as representações sociais sobre a mesma, estabelece uma periodização sobre o tema. Um primeiro momento, por ela identificado como origem do mito fundador das representações sociais sobre a favela, é relacionado ao Povoado de Canudos tal como descrito por Euclides da Cunha em 1902. Nesse livro, tem-se a descrição do Povoado de Canudos, onde, em oposição ao mar, surge o sertão. Para Valadares essa obra causou um impacto na elite intelectual brasileira, na medida em que contrapôs à civilização litorânea, o mundo inóspito do sertanejo. Embora a obra seja posterior ao Morro da Favella, as imagens marcantes do livro foram capazes de permitir aos intelectuais compreender e interpretar a favela emergente. Ou seja, desejosos de entender o fenômeno da pobreza urbana objetivada nos espaços físicos favela e cortiço, profissionais ligados à imprensa, literatura, medicina, direito, engenharia e filantropia, praticamente criaram uma nova divisão entre a cidade e a favela.

O segundo período caracteriza-se pelas imagens associando tais lugares à “doença”, patologia social a ser combatida. A discussão sobre salubridade e higiene, coadunou-se com o discurso da engenharia. Ou seja, tanto médicos quanto engenheiros, que viam no meio ambiente a fonte direta dos males físicos e morais dos seres humanos, passam a apresentar soluções para o tratamento dos males urbanos. Na realidade eles propunham uma intervenção racional e técnica na favela com vistas ao bom funcionamento da cidade.

Já o terceiro período surge com a revolução de 30 que re-significou as classes populares e a favela. Ao contrário da república velha, dominada pelas oligarquias rurais com forte influência européia, a era Vargas caracterizou-se por forte nacionalismo e desconfiança em relação a tudo que viesse de fora. Embora fosse uma ditadura, Vargas preocupou-se com a criação de uma rede de proteção ao trabalhador, de cunho populista. Ou seja, a favela se configura agora como o espaço da necessidade e, logo, do cuidado.

O florescimento das Ciências Sociais no Brasil redunda num novo período para se compreender o lugar denominado favela, principalmente enfocando a favela como “lugar” de coesão em vários níveis institucionais: família, associações e vizinhança. Assim era a visão que os favelados tinham de si e de sua vida associativa e justificavam sociologicamente sua inclusão. Esse é o momento em que se delineia uma nova forma de representação e conhecimento sobre a favela. Suas principais características são a valorização da favela como comunidade e a pesquisa incluindo trabalho de campo e uso dos demais métodos das ciências sociais.

Enquanto nos anos 1970 e 1980 o foco eram os movimentos sociais, em 1990 um novo e perigoso tema chega à agenda das pesquisas sobre a favela: a violência. O fenômeno da violência, o tráfico de drogas e armas reconfigurou as representações sobre a favela. A universidade tem debatido intensamente as possíveis explicações para tal fenômeno. Seja o ethos da masculinidade, a violência como forma de sociabilidade, o papel da pobreza e da desigualdade, a invisibilidade do “pobre”, a segregação sócio espacial, a retomada da dualidade morro e asfalto, ou a exclusão social e a cidadania parcial, o fato é que, atualmente, falar em favelas pressupõe tratar da questão violência, principalmente no que tange ao tráfico de drogas, e lidar com o retorno dos estereótipos que tratam seus moradores como marginais e bandidos, não somente jogando por terra um esforço intelectual realizado, principalmente, pelas ciências sociais, mas também constrangendo parte da população residente em favelas àquilo que Bourdieu (1997) chamou de “esforço de transplantação” para elaborar imagens que os desvinculem de tal estigma.

Em relação ao que foi acima descrito, uma das grandes contribuições para tal discussão é feita por Zaluar (1985; 1999; 2004; 2006). Ela identifica a coexistência de duas imagens em relação à favela: lá é o lugar da riqueza artística e o lugar da falta que desencadeia tanto sentimentos humanitários, quanto preconceito e medo. É importante destacar que, não obstante tais imagens, a favela continuou a crescer e a se expandir. E, com sua “marca” da dualidade perpassando as imagens que se iam construindo sobre ela: favela como sinônimo do arcaico, do bárbaro, do pobre, do rudimentar, em contraposição à cidade legal, racional, civilizada, rica, tecnológica. Essa dualidade pode ser resumida na contraposição usual entre “favela e asfalto”.

Dessa precariedade urbana, resultado da pobreza de seus habitantes e do descaso do poder público, surgiram as imagens que fizeram da favela o lugar da carência, da falta, do vazio a ser preenchido pelos sentimentos humanitários, do perigo a ser erradicado pelas estratégias políticas que fizeram do favelado um bode expiatório dos problemas da cidade, “o outro” distinto do morador civilizado da primeira metrópole que o Brasil teve
(ZALUAR, 1999, p. 08).

Rinaldi (1999) faz uma discussão sobre a dualidade das representações acerca do morador das favelas. A partir da etnografia, a autora procurou discutir a importância da oratória no tribunal do júri da cidade do Rio de Janeiro e, mais especificamente, como advogados e promotores vêem os favelados e como incorporam representações sociais no ambiente de trabalho. Nesse sentido o tribunal do júri foi pensado como um universo relacional, no qual estão presentes as nossas representações sociais. Assim, partindo das imagens usuais sobre favelados – relativas à higiene, à pobreza, à marginalidade e à delinqüência − Rinaldi buscou verificar até que ponto os membros do tribunal articulam sua oratória baseados nessas representações. Merece destaque a atribuição de um caráter democrático ao tribunal do júri, uma vez que dele participam membros do campo jurídico e leigos, o júri. Todavia, ela afirma que há uma atuação personalizada e hierarquizante, tendo o juiz o poder de escolher “os cidadãos comuns” que farão parte do referido júri.

No tribunal a autora reconhece existir uma encenação, na qual cada parte (defesa ou acusação) luta para se consagrar e obter diferenciação, distinção, não obstante esta não ser possível. Dessa forma, privilegia-se a oralidade, a habilidade do falar, muitas vezes até desconsiderando as provas técnicas, em nome de uma verdade construída pela argumentação que apela aos valores sociais, a princípio, norteadores da decisão do júri. Nesse sistema, a autora considera a distinção entre pessoa e indivíduo, elaborada por Da Matta (1986), na qual a primeira alude a uma dimensão tradicional e moral das relações sociais e o segundo contempla as leis universais e a racionalidade, para destacar, considerando a posse ou não de capitais, a construção de quatro tipos de pessoas ou grupos. No primeiro o acusado é reconhecido como uma pessoa, considerando seu capital econômico ou cultural, e a vítima é um indivíduo que não tem reconhecido seus direitos, por exemplo, um morador de favela. No segundo, o réu não possui capital econômico e cultural e a vítima sim. Já no terceiro, ambos são reconhecidos como possuidores de capital e no quarto, ambos não os possuem.

Sua observação mostrou que os julgamentos que envolvem os três primeiros tipos são mais trabalhados, longos, e há esforço de distinção e diferenciação. Já no último caso, geralmente feito por defensores públicos, são rápidos e às vezes os juristas não têm conhecimento mais profundo do caso. A exceção ocorre nesse caso quando os envolvidos, embora estejam no mesmo espaço social, chamam a atenção da imprensa, opinião pública, enfim, casos que envolvem direitos humanos. Ou seja, os profissionais do direito variam sua atuação conquanto varie a posição social do réu e da vítima. Especificamente quando se trata discutir caso que envolva morador de favela, a autora chama a atenção para a emergência de todas as representações usuais sobre esse espaço: lá é lugar de desordem, sujeira e marginalidade ou é o lugar do pobre coitado. Ou seja, tendo como pano de fundo tais representações, a argumentação variará conforme seja feita por alguém que defenda ou acuse. Assim, o morador da favela pode ser “pobre, mas honesto”, vítima do sistema, da sociedade ou traficante, marginal, facínora. Na negociação das diferentes imagens sobre o morador de favela, busca-se a condenação ou anulação da pena.

Ser morador da favela é trazer a “marca do perigo”, é ter uma identidade social pautada pela idéia da pobreza, miséria, crianças na rua, família desagregada, criminalidade, delinqüência. Tais imagens são realimentadas pelos veículos de informação, que trazem notícias sobre o “morro” sempre do ponto de vista negativo, enfatizando o tráfico de drogas e a violência
(RINALDI, 1999, p. 307).

Retornando às análises de Zaluar, é possível dizer que, desde o livro A Máquina e a Revolta (1985) ela refuta essas representações, ao mostrar que a favela é um lugar onde há heterogeneidade de grupos e redes de relações, assim como processos identitários que se opõem a essa visão homogeneizadora sobre a mesma. Para Zaluar as divisões geográficas e simbólicas internas à favela, tais como aquelas referentes às áreas e entre trabalhadores e bandidos, resumem um processo social de construção de identidades eivado de ambigüidades, conflitos e tensões. Essa forma de pensar a cidade, na qual os espaços são divididos, fechados e contrastados, como se cada um tivesse uma identidade reificada, permeou a pesquisa urbana. Fazendo a crítica ao uso dos conceitos de segregação e exclusão espacial, ela afirma que as relações sociais comportam tamanha diversidade social, cultural, política e econômica, que a “classificação bipolar” oferece poucos instrumentos para pensar os problemas. Considerar a favela a partir desse enfoque não abarca a complexidade das metrópoles, das relações sociais e da favela. Para pensá-las temos que considerar “os estranhos não convidados, os que carregam as marcas do ambíguo e do misturado, os que partilham ao mesmo tempo da proximidade das relações morais e da distância do que não se conhece, firmando um terceiro elemento entre amigos e inimigos” (Zaluar, 1999, p. 20).

É importante, porém, destacar que em artigos mais recentes a autora traça um retrato sombrio da favela em decorrência do aumento da criminalidade e do tráfico de drogas. Ela observa que aspectos tais como relações de vizinhança, redes e associações de lazer e cultura, responsáveis pela integração da população e que desempenhavam um papel de valorização das localidades, sofreram um duro golpe com o aumento da criminalidade dentro das favelas, cujo ethos valoriza a virilidade, a bravura e a “disposição”.

É justamente esse novo ethos que vai provocar um desastroso empobrecimento de sua vida social, no qual desaparecem outras figuras
masculinas até então valorizadas, respeitadas e influentes no local. O bom jogador de futebol, o bom sambista, o bom pai de família, o trabalhador habilidoso e o malandro esperto que dividia com todos esses personagens o poder no bairro estão deixando de ser referência para o adolescente pobre que se torna um “revoltado”, aquele que não ouve ninguém, que não obedece nenhuma regra socialmente aceita. O poder do bandido armado na grana é incontestável. Todos eles o temem. O adolescente que procura seus espelhos vê cada vez mais apenas essa figura que ostenta todos os atributos do poder que não admite oposição – a arma na cintura −, bem como objetos mais cobiçados do consumismo atual – o carro do ano, as roupas de grife, o brilho do pó (ZALUAR, 2006, p. 64).

Para compreender a força com que retorna as representações que atribuem às favelas o estigma da violência e da criminalidade é importante retomar as análises de Teresa Caldeira (2000). Ao discutir a “fala do crime” ela vai buscar a origem das representações sociais sobre a favela que a atrelam ao perigo. Segundo ela, o fato das favelas surgirem a partir da invasão de terrenos pode explicar tal relação. Mesmo considerando que as moradias construídas na favela sejam similares àquelas encontradas nas periferias, o fato das terras serem obtidas ilegalmente nas favelas marca o atrelamento do favelado à usurpação, ilegalidade, informalidade. “(...) excluídos do universo do que é adequado, eles são simbolicamente constituídos como espaços do crime, espaços de características impróprias, poluidoras e perigosas” (2000, p. 80). Para Caldeira o surgimento dessa “fala do crime” ocorre juntamente com a emergência dos limites da modernização brasileira. Ou seja, percalços econômicos vividos a partir dos anos 1980 levaram as pessoas a ter que lidar com mudanças abruptas e, muitas vezes, negativas nos seus padrões de vida, gerando pessimismo, desilusão e incerteza.

Em relação a esses problemas a autora percebe nessa época o afloramento de análises ambíguas, seja na atração por autoridades fortes, não obstante a democratização do país, ou nos discursos pessimistas sobre a incompletude da modernização, aliados a uma euforia com o progresso – mediante a urbanização das periferias e maior participação popular. Tais ambigüidades, para ela, alimentam a “fala do crime” e estabelecem um discurso no qual símbolos de distinção são utilizados para justificar preconceitos, estigma e distância.

A distância social é marcada de várias maneiras. Ela pode ser criada materialmente através do uso de grades, que ajudam a marcar uma casa própria como algo claramente distinto de cortiços e favelas. O uso de cercamentos ainda oferece o sentimento de proteção, crucial em tempos de medo do crime. Mas concepções depreciativas dos pobres também cumprem a função de criar distanciamento social: elas formam uma espécie de cerca simbólica que tanto marca fronteiras quanto encerra uma categoria e, portanto, previne as perigosas misturas de categorias
(2000, p. 70).

Na realidade, Caldeira enxergou uma dificuldade das classes média e alta não somente com a deterioração de suas condições sociais, mas também, com a incorporação das classes trabalhadoras no mundo do consumo e da cidadania política. A crise econômica fragiliza essas fronteiras, alimentando sentimentos de desordem e incertezas, reforçando o estabelecimento de marcas de distinção e preconceito. Ou seja, a autora afirma que há um refinamento dos expedientes passíveis de reforçar as diferenças. Num contexto de aumento de violência não somente o medo aumenta, mas também os instrumentos que depreciam e diferenciam indivíduos e grupos. Nesse sentido, a “fala do crime” tem como objetivo estabelecer que o criminoso é de um lugar do qual ele, vítima, não faz parte e, por isso, deve ficar entre os seus, melhor dizendo, distante. É a partir desse tipo de operação mental que tudo o que é impróprio é visto como originário da favela.

No curso dessa linha argumentativa, pode-se delinear um contorno dramático dessa situação ao tomar como foco de análise os moradores das favelas que, não tendo repertório alternativo para contrapor tais imagens incorporam discursos discriminatórios e, conforme se discutirá no próximo capítulo, de forma instrumental, ambígua e eivada de tensões pensa o seu lugar – a favela – a partir das representações usuais sobre a mesma. Entretanto, antes de tal análise e, justamente para enriquecê-la é importante discutir os resultados da pesquisa coordenada e organizada por Machado (2008).

O tema da pesquisa gira em torno da descrição dos efeitos da violência tanto criminal quanto policial na sociabilidade dos moradores das favelas do Rio de Janeiro. Ela parte de uma reflexão coletiva que busca mostrar como os moradores das favelas lidam cotidianamente com a contigüidade – inescapável e extremamente danosa − com os bandos armados ligados ao tráfico de drogas e com o assédio, violento, da polícia e das milícias, no que tange às interações com as populações que não residem nas favelas e na própria confiança mútua. Para o autor essas circunstâncias redundam em confinamento territorial. Eles são produzidos por eventos que estão fora de controle e que ocorrem em graus e intensidades variados, mas em intensidade muito maior do que aqueles que atingem o restante da cidade. Para se ter uma idéia da situação, ele observa que nas favelas até o direito fundamental de ir e vir está comprometido em virtude da truculência dos bandos e da polícia. Em relação às representações sociais sobre a favela, fica cada vez mais perceptível o ressurgimento das imagens que associam favela a lugar das “classes perigosas”. Se antes o receio era de que a revolta “dos morros” chegasse à cidade e abalasse as estruturas burguesas, atualmente o medo se reifica nas imagens de que a favela é local de violência descontrolada. Tal visão, por sua vez, legitima a repressão e a utilização da polícia como instrumento de confinamento. Ou seja, não se espera que o aparato de segurança regule as relações sociais e sim que impeça as possibilidades de interação e, até mesmo, encontros sociais. Para o autor, atualmente o desprazer do encontro, detectado por Simmel nas cidades modernas, alcançou uma potência muito mais elevada.

Em relação aos moradores das favelas, tem-se que vivendo sob cerco – de bandidos e de policiais − há um empobrecimento e uma desestabilização da sociabilidade, seja em seus lugares de moradia, assim como em seus locais de trabalho. Tal fato redunda na fragilidade da ação coletiva, perda de influência na arena pública, impossibilidade de vocalização e, principalmente, corroborando os dados dessa pesquisa, “num esforço prévio de limpeza simbólica” buscando retomar a possibilidade de poder falar e reivindicar e ter a confiança do outro.

As hipóteses norteadoras da pesquisa se dividem em dois eixos: um primeiro afirma que o confinamento geográfico e simbólico dificulta a sociabilidade e o funcionamento institucional de forma unívoca. Nesse sentido o autor trabalha com a noção de sociabilidade violenta, que seria uma inversão do princípio, elaborado por Elias, de que há uma íntima conexão entre o processo que culmina no monopólio do uso legítimo da força por parte do Estado e o desenvolvimento do autocontrole dos “impulsos do self” por parte dos indivíduos. O segundo eixo postula que a truculência policial ocorre por meio de uma delegação das classes abastadas que querem tais “classes perigosas” distantes de seu convívio. O resultado desse duplo é a segregação e o estigma. É importante destacar que na discussão dessas hipóteses algumas teses são discutidas e refutadas, quais sejam: os bandos de traficantes não substituem o Estado, não obstante suas presenças marcantes; é falaciosa também a afirmação de que a contigüidade – nesse caso se referindo à proximidade física, laços de parentesco e vizinhança, relações econômicas e políticas − redundem em conivência, banalização da violência, aceitação e legitimidade às ações violentas dos traficantes. Outra tese refutada pela pesquisa diz respeito ao fato de as noções sobre violência urbana terem vínculo
jurídico. Na realidade o autor afirma que tais noções estão estreitamente atreladas às representações sociais e não a definições jurídicas o que altera, sobremaneira, o imaginário sobre a favela. No decurso desse raciocínio tem-se que, embora o tráfico de droga se espalhe pela cidade, é na favela que ele, considerando os pontos de varejo do comércio de drogas, atinge maior predominância. Sendo assim os conflitos pelo controle do território são, cada vez mais, violentos e armados. Em decorrência disso há alteração na forma de atuação policial nestes lugares. É nesse ponto da análise que Machado elabora o conceito de “sociabilidade violenta” para dizer da constituição, por parte de alas mais estáveis e poderosas de traficantes localizados dentro das favelas, de uma forma de vida autônoma, distanciada dos demais moradores que impõe uma ordem social calcada na submissão dos mesmos. Ele destaca que essa forma de vida pode se agrupar em bandos ou facções, não possuindo eixos claros e estáveis de hierarquia e moralidade a ser seguida. “Na “sociabilidade violenta”, quem tem mais força usa os outros, assim como artefatos (armas, etc.), para impor sua vontade, sem considerar princípios éticos, deveres morais, afetos etc.” (2008, p. 21)

Ao considerar que as favelas são núcleos de “sociabilidade violenta”, o autor destaca que os moradores também estão expostos a uma dupla subjugação; na sociedade em geral são os setores inferiores na estrutura e na sociabilidade violenta, são submetidos à truculência dos bandos de traficantes. Ou seja, é sob cerco que os moradores das favelas vivem com todos os seus agravantes no que tange ao medo e à desconfiança, seja da polícia e suas operações, ou dos traficantes. Especificamente em relação aos traficantes tem-se que não existe a famosa “lei do tráfico”, pois sejam crias ou não da comunidade, o que vigora são os humores e disputas entre eles. A sociabilidade violenta tem gerado, entre os moradores das favelas, dificuldade na vocalização das reivindicações. “Silêncio, evitação e diferentes formas de omissão em relação ao tráfico e aos traficantes não podem ser tomados como evidência de passividade ou desinteresse. Constituem antes, dispositivos de defesa diante das ameaças à segurança pessoal” (MACHADO, 2008, p. 25). No entanto, tais expedientes são vistos pelos moradores da cidade como conivência e concordância com a atuação do tráfico e, pior ainda, como elementos que estimulam a delegação implícita do uso da violência e da truculência por parte da polícia.

A conseqüência das situações geradas pela sociabilidade violenta é a tentativa de antecipação das regras desses grupos, inclusive criando, nos últimos tempos, “um enriquecimento dos repertórios simbólicos”, tal como um manual de sobrevivência na selva que possibilita a identificação das fronteiras – reais ou simbólicas − entre favelas
e, dentro delas, a percepção dos grupos a dominar o local. Se internamente há o manual de sobrevivência, em relação ao restante da população da cidade, compete aos moradores de favelas desenvolverem todo um repertório simbólico que os limpe moralmente das conexões entre contigüidade e conivência.

No trabalho de aprofundamento da compreensão sobre o tema do tipo ideal sociabilidade violenta, Machado afirma que a violência urbana não se reduz ao crime comum ou a violência em geral. Em seu bojo há um elemento de força que é visto como aquele que interrompe a normalidade das relações e rotinas cotidianas. Tal caráter faz com que ela não se limite à simples descrição de fato, mas carregue uma dimensão normativa que informalmente se institucionaliza. Ou seja, a categoria violência urbana é uma representação social e como tal não é passível de uma descrição neutra. Ela está imbuída de uma dimensão que envolve relações sociais, padrões de conduta, identificação de agentes e reconhecimento de um padrão típico de sociabilidade. Atualmente, o ator da violência urbana é o traficante de drogas em função de sua atividade ser mais estável e duradoura do que outras e, pelo fato da ponta final do comércio de drogas estar completamente baseada na submissão pela força. Deve-se atentar para o fato de que a força não é meio para obtenção de interesses, mas princípio sob o qual se estrutura a ação.

A partir do momento em que a força se torna princípio não há, segundo o autor, nada que distinga as diferentes esferas da vida. Especificamente em relação à dimensão subjetiva têm-se as manifestações emocionais mais imediatistas, a objetivação e instrumentalização do outro e a redução quase que completa da produção de sentido. Essa descrição tanto se assemelha àquela descrita por Hobbes (1979) acerca do estado de natureza, na qual os homens enxergam o outro como mero objeto que Machado alude ao fato das organizações criminosas não terem qualquer lastro com as categorias gangue e máfia uma vez que inexistem laços de amizade, honra e lealdade. Ao contrário, essas se organizam numa cadeia de submissão que se forma e estrutura no desequilíbrio de força, não havendo espaço para a constituição de laços. É plausível destacar que embora Machado veja a sociabilidade violenta como um traço da sociedade brasileira, ela incide e afeta mais diretamente as populações que residem em favelas.

É assim que muito mais que se estruturar a compreensão sobre o fenômeno favela, se vive o cotidiano nesse lugar. A partir desse momento será possível corroborar, por meio da pesquisa realizada com os moradores da Vila Monte São José, que falar em favelas envolve a compreensão das estratégias de sobrevivência que não se esgotam no plano físico do seu traçado, nem no cotidiano do trabalho, da autoconstrução, do sacrifício de apertar orçamento para erguer uma parede, da alegria de conseguir ter um “canto para se abrigar”, mas é também falar da luta inglória de distanciamento do estigma que associa pobreza e favela a crime e vadiagem. Nessa luta vale tudo, inclusive conviver de forma ambígua com bandidos, para não morrer e incorporar todo o repertório que os discrimina para falar das outras favelas, num esforço sobre-humano de se dizer diferente, mais próximo daqueles atributos que a sociedade considera bom e saudável, mas com uma certeza que brota no fundo de que todo esforço é vão. Na realidade, mais dia menos dia, a conta de morar na favela chega. Não interessa se lá é lugar urbanizado, regularizado, pequeno, cheio de gente trabalhadora. No fundo, bem no fundo eles sabem: lá ainda é favela."

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Fonte:
Wanja Ribeiro dos Santos Filgueiras: Cidade Jardim, fundos”: A Vila Monte São José e as imagens sobre o lugar favela". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Área de concentração: Cultura e estilos de vida Orientadora: Juliana Jayme). Belo Horizonte, 2009.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Imagem:
www.diplomatie.gouv.fr

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