A definição de tragédia segundo Aristóteles



“Segundo nossa discussão no início deste capítulo, vimos que tecer comentários sobre a tragédia pode nos levar por infindáveis caminhos. Alguns, porém, nos foi necessário privilegiar para que pudéssemos delinear um panorama geral dos possíveis surgimentos da tragédia. Realizado este breve panorama, partiremos, então, para um quarto momento de nossa exposição, ou melhor, pretendemos apresentar a concepção de tragédia trabalhada por Aristóteles, o primeiro grande pensador a meditar e discorrer sobre o referido tema.

Apesar das muitas reformulações e senões que a Poética de Aristóteles apresenta, não se pode falar sobre tragédia sem passar por essa obra. Mediante a apresentação de alguns de seus fragmentos, pretendemos mostrar sob quais aspectos Aristóteles estudou a tragédia e qual a concepção que defendia em relação a esse gênero.

Antes de iniciar tal exposição é importante atentarmos para o fato de que embora saibamos que a criação da grande arte trágica tenha nascido dos gregos, estes não chegaram a desenvolver nenhuma teoria sobre o trágico. Aristóteles quando faz uso da palavra trágico emprega-a no sentido de solene e desmedido, mas esse emprego condiz simplesmente com o uso que se fazia da palavra na época em que viveu o filósofo. Para Machado (2006, p. 24)

A Poética de Aristóteles inaugura a tradição de uma análise poética ou poetológica da tragédia como parte de um estudo sobre a técnica poética em geral, sem considerar o poema trágico como expressão de uma sabedoria ou visão do mundo que a modernidade chamará de trágica.

A análise aristotélica está centrada em questões que envolvem a estrutura formal e a organização interna do gênero tragédia. Toda essa análise da poesia trágica é realizada em comparação com outros tipos de poesias, como a comédia e a epopéia, com o objetivo de obter uma espécie de classificação. O que leva muitos comentadores a observar que, na Poética, Aristóteles analisa as espécies de poesia da mesma maneira como um naturalista descreve a estrutura das plantas ou dos animais (MACHADO, 2006, p. 27). Entretanto, ressaltamos que, além da estrutura formal da tragédia, Aristóteles se interessa também pela finalidade da mesma, sendo este um dos pontos mais polêmicos de sua obra.

A Poética encontra-se dividida em vinte e seis capítulos: os cinco primeiros destinam-se à questão da mímesis poética, os capítulos de 6 a 22 tratam da tragédia, o capítulo 23 da epopéia, e os três últimos fazem uma comparação entre a epopéia e a tragédia. Esta é a divisão que costuma ser empregada pelos organizadores da obra.

Comecemos, então, pelos primeiros capítulos que falam a respeito da imitação. Nestes Aristóteles nos afirma que a tragédia, bem como outros tipos de poesia, são simplesmente imitações. A epopéia, a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte da aulética e da citarística, todas são em geral imitações (ARISTÓTELES, 1979, p. 241). Essas imitações distinguem-se umas das outras em função dos meios, dos objetos ou dos modos pelos quais imitam. Convém-nos notar que a tragédia é analisada ao lado de outras poesias e em comparação a estas. Esses aspectos que diferenciam as imitações umas das outras (meios, objetos e modos) são explicados nos capítulos dois e três. Sobre a classificação das poesias imitativas, de acordo com o objeto da imitação, temos em Aristóteles (1979, p. 142) Mas, como os imitadores imitam homens que praticam alguma ação, e estes, necessariamente, são indivíduos de elevada ou de baixa índole [...] necessariamente também sucederá que os poetas imitam homens melhores, piores, ou iguais a nós, como fazem os pintores [...]

Apreendemos, então, que Aristóteles nos mostra que a diferença entre a comédia e a tragédia, com relação ao objeto de imitação, está no fato de que: a comédia imita os homens piores e a tragédia imita homens melhores do que eles ordinariamente o são.

No capítulo seis, teremos a definição de tragédia e das suas partes ou elementos essenciais, isto é, Aristóteles (1979, p. 245) pontua

É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídos pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade , tem por efeito a purificação dessas emoções.

A partir dessa passagem são apresentados o terror e a piedade como formas catárticas da tragédia. No que diz respeito aos elementos essenciais, esclarecemos que são seis as partes da tragédia que constituem a sua qualidade: o mito, que é a trama ou o enredo, considerado por Aristóteles como o elemento mais importante, já que a tragédia é a imitação de ações da vida e não a imitação de homens; o caráter, que diz respeito àquilo que dizemos sobre a personagem, sobre suas qualidades como a bondade, a semelhança e outros; a elocução, que é a expressão verbal através da qual revelamos o nosso pensamento; o pensamento, que é tudo aquilo que dizem as personagens para indicar uma preferência, um desejo, uma decisão; o espetáculo, considerado por Aristóteles o mais emocionante e o menos artístico, uma vez que
podemos tomar conhecimento da finalidade de uma tragédia sem que seja mediante a representação cênica; e, por fim, a melopéia, que é a música, considerada o principal ornamento da linguagem. (MACHADO, 2006). Assim, a elocução e a música são os meios de imitação; o enredo, o caráter e o pensamento, seu objeto; e o espetáculo, a maneira de a tragédia imitar . (MACHADO, 2006, p. 26)

Explicadas as partes essenciais passemos, então, à finalidade da tragédia. No capítulo XIII, Aristóteles discorre acerca de quais situações os argumentistas devem procurar e quais devem evitar, e também por que via hão de alcançar o efeito próprio da tragédia [...] (ARISTÓTELES, 1979, p. 251). É neste capítulo que vamos encontrar a questão da finalidade da tragédia e, conseqüentemente, serão observadas também as questões da compaixão e do medo.

A compaixão caracteriza-se pelo sentimento de piedade que o espectador tem com relação à infelicidade da personagem; o medo, por sua vez, caracteriza-se pelo sentimento que o espectador apresenta de que o mesmo que aconteceu com a personagem venha a ocorrer com ele. O medo faz tremer por si só, a compaixão, pelo outro (MACHADO, 2006, p. 29). Atentemos para o fato de que não é o simples sofrimento do outro que causa a compaixão no espectador, mas o sofrimento imerecido do outro. Sofrimento este, que é originado pela hamartía, ou seja, uma falta cometida pela personagem por ignorância; daí a compaixão que sentimos, pois todos nós estamos sujeitos a cometer uma hamartía. É isso que despertará a compaixão em nós espectadores. A questão que diz respeito à finalidade da tragédia na concepção aristotélica suscitará muitos debates entre escritores e pensadores dos séculos subseqüentes.

Em suma, foram os fragmentos acima extraídos da Poética e os comentários que realizamos acerca destes que julgamos importantes para um entendimento da concepção de tragédia trabalhada por Aristóteles. Dada, então, a definição de tragédia por Aristóteles, analisaremos duas partes dessa definição relacionando-as à tragédia Oréstia de Ésquilo, ao livro Abril Despedaçado e ao filme homônimo, obras a partir e entre as quais realizaremos, no capítulo três deste trabalho, nossas comparações. As duas partes escolhidas da definição da tragédia são: o mito, por -lo Aristóteles considerado o elemento mais importante da tragédia, e a finalidade, por se tratar de uma das partes que mais têm suscitado comentários e discussões. Para a realização de nossos comentários a respeito dessas duas partes nos iremos buscar as explicações de Malhadas (2003).

Iniciemos, pois, pela primeira parte da definição em que lemos a tragédia é a imitação de uma ação [ ] . (MALHADAS, 2003, p.19)

O objeto que a tragédia representa é uma ação. Logo de início, na definição, fica estabelecida a preeminência do enredo (MYTHOS) sobre os caracteres (ETHE), embora estes, como também o pensamento (DIÁNOIA), sejam objetos. Essa preeminência fica clara quando Aristóteles afirma que, nas tragédias, as personagens não agem para representar caracteres, mas, por suas ações, é que se desenham os caracteres.

Levando em conta a citação supra, percebemos a importância do mito e do enredo para a tragédia. Em razão dessa importância surge a necessidade de entendermos o que vem a ser o mito para Aristóteles, e a relação desse mito com a representação de uma ação. Antes, porém, de captarmos o significado dessa relação, é importante entendermos as acepções que Aristóteles à palavra mito. Malhadas, em seu livro, conclui que na Poética, são duas as acepções dadas a essa palavra. Existe o MYTHOS PARADEDOMÉNOS que seria o objeto-modelo e o MYTHOS (SÝNTHESIS TON PRAGMÁTON) que seria o objeto-produto da representação de uma ação.

Para entender essas duas categorias de mitos, recorreremos a um mito, qual seja, o da cadeia de vinganças desencadeada por Tântalo. Reza o mito, que por haver cometido uma grave hamartía contra o próprio filho, os deuses do Olimpo castigaram severamente a Atreu e lançaram uma maldição de sangue que deveria perpetuar-se através de várias gerações dos seus descendentes. Tal maldição veio a encerrar-se com Orestes, mas até ele, inúmeras mortes sucederam-se umas às outras em virtude das vinganças de sangue. Nestas vinganças, o sangue derramado de um indivíduo reclama por um próximo derramamento de sangue, gerando uma cadeia de crimes infindável.

A essa história chamaríamos de objeto-modelo, pois a partir dela várias histórias poderiam ser elaboradas, tendo sempre como fio condutor da narrativa, a questão das cadeias de vinganças ocasionadas por crimes de sangue. Ésquilo, a seu modo, aproveita-se do mito da maldição dos Atridas para escrever a sua trilogia Oréstia; Kadaré escreve seu romance Abril Despedaçado, levando às montanhas da Albânia a maldição dos Atridas que agora abarca famílias de simples montanheses, e não mais as famílias de príncipes e reis da Grécia Antiga; Walter Salles em seu filme, por sua vez, também utiliza o tema do ciclo maldito de vinganças, contextualizando-o no sertão do nordestino. Cada um desses artistas representa o objeto-modelo de modo diferente. Essa diferença diz respeito ao espaço físico e social onde as obras são representadas, à época em que cada história está inserida, ao ardil utilizado em cada história, dentre outras inúmeras diferenças. Enfim, em cada uma das obras nos deparamos com enredos diferentes, com um objeto-produto criado de acordo com o conhecimento de mundo, a ideologia do criador e o contexto de criação. Há, portanto, uma base que seria o
objeto-modelo e, a partir da qual diversos objetos-produto seriam criados para a representação de uma ação.


Alcançamos, então, a parte final da definição. Esta esclarece que a tragédia é a representação de uma ação que suscitando o terror e a piedade tem por efeito a purificação, a catarse desse gênero de emoções. Conforme explicitamos no início desta seção, a análise aristotélica centra-se em questões que dizem respeito à estrutura formal e à organização interna da tragédia. Mas, consoante pudemos ver logo acima, Aristóteles se interessa também pela finalidade. Machado (2006, p. 26) explica

Isto é, a definição formal de tragédia, que distingue a mímesis trágica, como uma espécie, das outras espécies do mesmo gênero se completa com a explicitação do efeito que a mímesis própria da tragédia produz. O que esclarece por que o último elemento da definição aristotélica é a catarse, considerada como o efeito teleológico da mímesis própria da tragédia. E se esse elemento é necessário à definição, isto é, se a tragédia é definida de modo formal, mas também por sua produção característica de emoções trágicas, é porque a Poética estuda a forma que a tragédia deve ter para ser capaz de produzir a catarse.

No capítulo XIII Aristóteles discorre acerca de quais situações os argumentistas devem procurar e quais devem evitar, e também por que via hão de alcançar o efeito próprio da tragédia [...] (ARISTÓTELES, 1979, p. 251). É neste capítulo que nos dedicaremos à questão da finalidade da tragédia e, conseqüentemente, será discutiremos, também, a questão da compaixão e do medo. Aristóteles (ibid., p. 252) salienta que

Como a composição das tragédias mais belas não é simples, mas complexa, e além disso deve imitar casos que suscitem o terror e a piedade (porque tal é o próprio fim desta imitação), evidentemente se segue que não devem ser representados nem homens muito bons, que passem da boa para a má fortuna caso que não suscita terror nem piedade, mas repugnância nem homens muito maus, que passem da para a boa fortuna, pois não há coisa menos trágica, faltando-lhe todos os requisitos para tal efeito; não é conforme aos sentimentos humanos, nem desperta terror ou piedade. O mito também não deve representar um malvado que se precipite da felicidade para a infelicidade. Se é certo que semelhante situação satisfaz os sentimentos de humanidade, também é certo que não provoca terror nem piedade; porque a piedade tem lugar a respeito do que é infeliz sem o merecer, e o terror, a respeito do nosso semelhante desditoso, pelo que, neste caso, o que acontece não será terrível nem digno de compaixão.

Resumindo, o sofrimento imerecido do herói é a condição da compaixão, e sua semelhança com o espectador é a condição do temor. Além disso, a tragédia não deve representar nem homens muito bons que se precipitem da boa para a má fortuna, nem homens muito maus que se precipitem da má para a boa fortuna.

Nas três obras que estamos analisando, somos tomados pelos sentimentos de temor e de piedade com relação aos seus personagens. É importante notar que Orestes, Gjorg e Tonho cometem suas faltas não por ignorância, mas com plena consciência daquilo que seus atos irão acarretar-lhes no futuro. Ainda que vacilem algumas vezes antes de cometerem seus assassinatos, eles seguem em frente, cumprem seus destinos antevendo a queda que os espera Orestes, a perseguição das terríveis e incansáveis Erínias; Gjorg e Tonho, uma tocaia que poderá matá-los a qualquer momento passados os 28 dias de trégua. Atentemos ainda parao fato de que Orestes tem consciência da certa parcela de culpa que tem na morte da mãe, pois ele sabe que deve expiar por um crime que cometeu: ele vingou a morte do pai - o grande rei Agamêmnon, herói de inúmeras batalhas na guerra de Tróia - que teve como prêmio, em sua própria casa, a morte pelas mãos da esposa. Orestes vingou a morte de um ser amado. Em contrapartida, Gjorg e Tonho não vêem motivo para o assassinato que cometeram, ainda que tenham vingado, assim como Orestes, a morte de um ser amado (no caso, tanto Gjorg quanto Tonho vingaram o sangue do irmão mais velho) cometendo dessa forma um crime de sangue. Os dois, no entanto, estão inseridos em uma lógica insana e perversa e não compreendem qual é a culpa que devem expiar. Isso não significa que Gjorg e Tonho não sofram tudo conscientemente e que manifestem horror perante a realidade que os cerca. A situação dessesdois heróis causa em nós maior medo e compaixão exatamente pela cegueira e insanidade do fato.

Sentimos compaixão dos três personagens em razão da situação que enfrentam, sofremos pela dor e angústia que os atormenta; sentimos temor pela grandeza do destino que se abate sobre os três heróis.

O medo e a compaixão devem ser entendidos, portanto, em Aristóteles, segundo a perspectiva de Machado (2006, p.30)

Como produtos da atividade mimética, como emoções suscitadas pelo mythos, pela história, pelo enredo, portanto, objetos purificados pela representação. Posto na presença de uma história na qual reconhece as formas que definem a essência do que é digno de medo e compaixão, elucidando o sentido dessas emoções, o espectador sente medo e compaixão, mas de forma essencial, pura, apurada. E essa emoção purificada que ele sente nesse momento que é uma emoção estética é acompanhada de prazer. É a intelecção, o entendimento, a compreensão das formas do medo e da compaixão, tal como elas aparecem na catarse trágica que produz prazer.

Finalizamos neste momento a análise das três obras Oréstia, Abril Despedaçado (livro), Abril Despedaçado (filme) à luz de duas partes da definição de tragédia proposta por Aristóteles em sua Poética. Mediante esse movimento de comparação que realizamos entre as três obras com a ajuda de alguns pontos da Poética, esperamos ter possibilitado aos nossos leitores uma melhor compreensão dos aspectos estudados por Aristóteles em sua definição de tragédia e como esses aspectos podem ajudar a visualizar os elementos trágicos presentes nos Abris Despedaçados."

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Fonte:
BEATRIZ FURTADO ALENCAR LIMA: “ABRIL DESPEDAÇADO TRANSMUTADO PARA O CINEMA: DA ALBÂNIA AO BRASIL A TRAGÉDIA EM CENA”. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Lingüística Aplicada do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Lingüística Aplicada. Área de concentração: Estudos da Linguagem. Orientadora: Profª. Dr.ª Soraya Ferreira Alves). Fortaleza – CE, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Um comentário:

  1. EXCELENTE TEXTO E MUITO INTERESSANTE A DISCUSSÃO E A COMPARAÇÃO ENTRE AS TRÊS OBRAS. LEMBRO DE UM ESTUDO FEITO NA UNIVERSIDADE PELA PROFESSORA FLORA SUSSEKIND ACERCA DE TEMAS RECORRENTES NA LITERATURA.

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