A Construção da República no Brasil



“As transformações pelas quais passou o mundo, após as duas revoluções liberais, ocorridas na segunda metade do século XVIII - uma de cunho industrial, na Inglaterra, e outra de cunho político, na França – implicaram, de acordo com Hobsbawm (1997), no triunfo de uma nova sociedade, que trouxe à tona uma nova palavra no vocabulário econômico e político mundial (especificamente a partir do ano de 1860) - capitalismo industrial.

Neste cenário, o processo de efetivação do sistema capitalista, pautado na urbanização contínua e progressiva, assim como nos ideais de progresso e de modernização, provocou grandes mudanças estruturais em muitos países ocidentais, durante os séculos XIX e XX.

Para Holanda (2007), as transformações decorrentes do capitalismo industrial, nos países que adotaram a República, considerando as singularidades de cada processo em cada lugar, buscaram reorganizar a sociedade e o Estado, reformando o regime anterior, de acordo com os preceitos de um novo ideal, composto, dentre outras coisas, pelos termos: liberdade, igualdade, fraternidade, federação etc., em prol do considerado bem comum.

O termo Res Publica - oriundo do latim - significa coisa pública, do povo (BOBBIO et alli, 1998, p. 1107), por sua vez, bem comum, no século XVIII, está ligado à exaltação do Estado e da democracia. Esse foi o modelo republicano que inspirou Rousseau (2002, p.33), em seu Contrato Social, uma vez que, para esse filófofo, seria impossível existir a verdadeira democracia. Segundo ele, o povo, incessantemente reunido, não poderia cuidar dos negócios públicos, nem estabelecer comissões para isso, sem mudar a direção administrativa, porque teriam vários interesses em jogo; isso, consequentemente, provocaria o caos e a desordem. Contudo, o Estado (que não seria uma pessoa idônea, como concebia os antigos) poderia assumir essa função, imbuído da virtude republicana de zelar pelo bem estar social e pelo bem comum.

Foi a partir dessa compreensão que a República Moderna começou, de fato, a delinear o seu modelo. A instalação e desenvolvimento da mesma, provenientes das revoluções liberais – com destaques para França e dos EUA, ambas ocorridas em meados do século XVIII - nos permitem considerar que a constância de várias correntes ideológicas, presentes em cada processo republicano, como as de cunho tradicionalista, progressista ou radical, possuíam antinomias e conflitos, conforme ressaltam autores contemporâneos como, por exemplo, Hobsbawm (1997; 1982) e Furet (2001). Essas correntes, por sua vez, ocasionaram impactos profundos para o cenário mundial e influenciaram os demais países, sobretudo, o Brasil.

No processo que desencadeou a eclosão dos movimentos republicanos no Brasil, destaca Viotti (1987), estavam presentes: as contradições entre diversos grupos econômicos distintos, como, por exemplo, os aristocratas, profissionais liberais, industrialistas, militares, imigrantes etc.; a distância das províncias em relação ao centro do poder; bem como as dificuldades em manter a estrutura monárquica, frente a uma nova conjuntura apresentada, proveniente das transformações econômicas e políticas mundiais advindas a partir das revoluções liberais, como citamos anteriormente.

Para Fernandes (1975; 1976), ao contrário do que ocorreu em países como França e EUA em que a República foi instaurada a partir de mudanças rápidas nas estruturas sociais, no Brasil esta se deu de maneira gradual e lenta, considerando o processo que a desencadeou, a partir da Independência. Essa pressupunha, lado a lado, elementos, tanto revolucionários, quanto conservadores (PRADO JUNIOR, 1972), em um cenário que já introduzia o liberalismo como força cultural viva, se destacando como uma nova ideologia, a fim de satisfazer as necessidades desse novo mundo. (VIOTTI, 1987).

As transformações ocorridas, a partir daí, marcam a transição para a era da sociedade nacional e para o denominado capitalismo monopolista, entrando em cena os dois representantes mais característicos e modernos, chamados por Fernandes (1976, p. 208) de “espírito burguês” - os imigrantes e os fazendeiros de café. Os segundos, após as transformações oriundas da abolição, não dispunham mais de base material e política para manter o padrão hegemônico elaborado durante o Império, de base senhorial e escravocrata.

Por meio da expansão cafeeira, a oligarquia procurou fortalecer-se e se renovar pela recomposição do seu padrão de dominação, adequando-o à ordem social emergente e em expansão que se estabelecia, inclusive com o desenvolvimento das indústrias e do comércio.

Diante dessa conjuntura, foi montado no Rio de Janeiro, atual capital do Império, o palco para a construção da República ideal, que já estava sendo pensada desde o final do século XVIII, sob influências iluministas francesas e da recém República norte-americana, presente, ainda que de maneira indireta, nas inúmeras rebeliões e revoltas ocorridas desde a Colônia e o Império. A Conjuração dos Alfaiates na Bahia (1798), influenciada pela Inconfidência Mineira de 1788, - sendo que posteriormente ambas repercutiram na Insurreição Pernambucana (1817) -, foram exemplos de movimentos que pretendiam romper com os laços coloniais, defendendo um regime social mais libertário e igualitário, ideal muito próximo do republicano.

No dia 3 de dezembro de 1870, conforme nos esclarece Neves e Capelato (2008), um novo periódico circulou pelas ruas da capital do Império, intitulado A República, do clube republicano, que, de acordo com as autoras, alguns teóricos analisam como sendo a primeira página verdadeiramente política do movimento republicano. Esse periódico trouxe o Manifesto Republicano, assinado por 56 assinantes e fundadores do partido, inspirados nos princípios do liberalismo, convictos de que se podia realizar, dentro da ordem, a crença no poder da razão (as luzes), na afirmação dos princípios de soberania do povo, liberdade e progresso. A partir desses ideais que circulavam, identificando a República com a ordem e com o progresso, verificamos que os intelectuais republicanos não tinham a intenção de promover uma mudança radical na sociedade. Fundamentados pelas proposições positivistas de Comte (apud NEVES E CAPELATO, 2008), cunhadas na bandeira do Brasil, por meio das palavras Ordem e Progresso, também estava presente a ideia federalista, imbricada com o republicanismo. Esse se consolidava conflituosamente, uma vez que estavam presentes, nesse movimento, distintas tendências, que fizeram com que o movimento republicano que governou após a Proclamação da República se deparasse, na Assembléia Constituinte, com discussões promovidas pelos grupos dos liberais, positivistas, católicos, federalistas, oligarquias regionais e outros grupos, promovendo, então, a não supremacia de nenhum e a indefinição e crise desse novo regime que se instalava.

A Proclamação da República se deu oficialmente no dia 15 de novembro de 1889, passando o país a ser administrado pelo militar Marechal Deodoro da Fonseca. Os ideais republicanos que envolviam esse processo eram, sobretudo, pautados na união de duas correntes ideológicas que influenciavam as elites e camadas médias emergentes da sociedade: uma liberal, que possuía como representante principal o intelectual jornalista Quintino Bocaiúva, e outra, de cunho positivista, liderada por Benjamin Constant, que possuía grande aceitação entre os militares. As primeiras providências que esse “novo regime” tratou de realizar, dentre outras coisas, foram a separação do Estado e Igreja (padroado); a liberdade de cultos religiosos; o estabelecimento do casamento civil; a secularização dos cemitérios; e um discurso profundamente marcado pelos ideais progressistas, postulado na fundamentação positivista. (NUNES, 2003).

É importante destacar que, no caso do Brasil, as técnicas sociais de organização do poder político, no decorrer da República, eram muito complexas, pois visavam, em seu plano ideal, a direitos iguais e liberdade de escolha e, por consequência, o voto. A população brasileira adulta não possuía participação direta na vida política, enquanto que, no antigo regime, segundo o autor, o Império se mantinha com certa estabilidade social facultada pela ordem escravocrata e senhorial mantendo as hierarquias sociais e políticas. A partir da República, o quadro de instabilidade social foi agravado e, como primeira saída, foi assegurada a hegemonia política dos chefes locais que, por meio da manipulação dos eleitores, detinham o voto, para que as elites permanecessem no poder. (FERNANDES, 2008, p. 95-100).

Nessa conjuntura, Holanda (2007, p. 160) faz severas críticas aos postulados positivistas e liberais incorporados pelos homens públicos e intelectuais no Brasil, que adaptavam, desses ideais, o que consideravam pertinente para o novo regime, e faziam da democracia do Brasil, nesse período, um “lamentável mal-entendido” porque:

[...] trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira e sem cogitar as mudanças que tais condições lhe imporiam [...] uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais
acertados para a época e eram exaltados nos livros e nos discursos.

Já durante a Primeira República, mais especificadamente entre as décadas de 1920 e 1930, compreendemos que a constituição de uma burguesia agrária, oriunda do antigo baronato brasileiro - o qual experimentava também o antagonismo de ser uma oligarquia antiburguesa - construiu para si um processo de acumulação primitiva, cuja expressão foi o campesinato e a apropriação do seu excedente, fundando mecanismos de dominação social e política coercitiva, encerrados no coronelismo. Suas sequelas refletiram, nesse momento, uma hegemonia oligárquica, como afirmou Oliveira (1975), e também a presença de correntes liberais, positivas, revolucionárias, e até mesmo fascistas, que estavam presentes de maneira contraditória na sociedade, não somente nos primeiros movimentos republicanos, desde a Proclamação da República, mas também no desenvolvimento e consolidação desse regime, nas primeiras décadas de sua construção.

A Primeira República (1889-1930), para Pang (1979), encerrava em si várias contradições intrínsecas, o que provocava a ausência de um Estado forte e centralizado, acabando por favorecer que cada região brasileira construísse a sua própria oligarquia e, por consequência, vários tipos de coronelismos, embora a pretensão da República fosse justamente o contrário, ou seja:

[...] o coronelismo é um exercício do poder monopolizante por um coronel cuja legitimidade e aceitação se baseiam em seu status, de senhor absoluto, e nele se fortalecem, como elemento dominante nas instituições sociais, econômicas e políticas, tais como as que prevaleceram durante o período de transição de uma nação rural e agrária para uma nação industrial. Os anos limites dessa fase são 1850-1950). Durante esse século de modernização, a nação passou por uma série de mudanças de estrutura, fundamentais na economia e na política. Foi também uma fase de conflito entre forças tradicionais e forças decorrentes das tensões sociais e econômicas e de um sistema político nacional que lutava sem resultados para manter sua estabilidade. O coronelismo surgiu exatamente nessa época de crise e instabilidade, para comandar a política local e regional e, freqüentemente, para funcionar como estado informal no sertão
(PANG, 1979, p. 20).

Os municípios eram os baluartes políticos administrativos dos coronéis que, acima de tudo, eram políticos individualistas, autônomos, ricos e, às vezes, bem protegidos de interferências externas. Frequentemente, afirma-se que eram latifundiários por remontar à elite agrária colonial, mas havia comerciantes, industriais, bacharéis etc., que eram coronéis. O sucesso de um coronel como um oligarca local dependia, basicamente, de sua habilidade em trocar favores sociais, políticos e econômicos por votos (PANG, 1979).

Uma vez que o coronel se constituía como um elemento sócio-econômico polarizador na República, Queiroz (1975) ressalta que a simples pergunta “Quem é você?” já dizia o lugar sócio-econômico que o interlocutor se encontrava. Por exemplo, se respondesse “Sou gente do coronel fulano” o próprio termo gente já indicava que o indivíduo era de nível inferior e, se fosse parente do coronel, seria pobre. A ligação com o coronel fulano mostrava também de que lado o indivíduo estava, inclusive em relação aos poderes regional e nacional, seja na concordância ou na oposição.

Contudo, é importante considerar, assim como Fernandes (1976), que a plasticidade dessa forma política, com especificidades em cada região e lugar, fazia com que o coronelismo fosse se reestruturando e se adaptando às danças, uma vez que o desenvolvimento do comércio, bem como das profissões liberais (medicina, direito, engenharia, educação etc.), acabaram se tornando canais para a ascensão e perpetuação do próprio coronelismo, até meados da década de 50. Desta forma, demonstrava, mais uma vez, as contradições presentes no regime republicano que imbricavam valores tradicionais e progressistas, em seus ideais; tais contradições acompanhavam, também, os debates a respeito da educação."

---
Fonte:
Daniela Moura Rocha de Souza: "Memória de Professores Intelectuais como Interlocutores do Republicanismo em Vitória da Conquista entre os anos de 1910 até 1945". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, como requisito parcial e obrigatório para obtenção do título de Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade. Orientador(a): Lívia Diana Rocha Magalhães). Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Vitória da Conquista, 2009.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!