A construção social da Aids

“Os primeiros casos registrados de Aids no mundo datam de 1981, nos Estados Unidos e na França. O fato de esses diagnósticos pertencerem aos indivíduos da comunidade gay dos Estados Unidos, assim como, posteriormente, do Brasil e do mundo, contribuiu muito para a estigmatização da doença, que passou a ser conhecida como a “peste gay” ou o “câncer gay”. Desde o início a Aids foi associada à sexualidade e, mesmo com o conhecimento de outras formas de transmissão, como a transfusão de sangue, o uso de drogas injetáveis e a transmissão vertical (de mãe para filho/a), esta associação permaneceu forte. Por vários anos, a mídia, juntamente com o discurso científico sobre a Aids, foram determinantes para a associação da doença a uma parcela da população que se enquadrava em um modelo considerado promíscuo sexualmente: os homossexuais e as profissionais do sexo. A rotulação de uma minoria incitou profundas manifestações de discriminação social e iniqüidades. Instaurou-se, então, o conceito amplamente divulgado de “grupos de risco”. Esses grupos passaram a ser o alvo das estratégias de prevenção, mantendo a falsa percepção de proteção nos demais membros da população.

A construção sócio-histórica da doença nos aponta, ainda hoje, para o estigma que acompanha os portadores. Em 1987, segundo Richard Parker (1994), o Dr. Jonathan Mann, fundador do Programa Global de Aids da Organização Mundial de Saúde (OMS), em seu discurso na Organização das Nações Unidas (ONU), chama a atenção para a existência de três epidemias provocadas pelo HIV:

uma primeira epidemia oculta, representada por milhões de pessoas infectadas, os soropositivos assintomáticos; uma segunda epidemia, manifestada em algumas centenas de milhares de pessoas apresentando sintomas de Aids; e, finalmente, uma terceira epidemia, um tipo de infecção mais social do que médica, cristalizada na negação, culpa, estigma, preconceito e discriminação decorrente do medo que a Aids provoca nos indivíduos e na sociedade
(p. 53).

Em 1983 e 1984, Montaigner e Gallo, respectivamente, realizam o isolamento laboratorial do vírus. O mundo se vê frente a novas possibilidades tecnológicas a partir desse evento. O caráter transmissível já estava bem delimitado e seu agente etiológico isolado, com todas as implicações positivas para as práticas de saúde pública, entre elas a detecção de portadores sadios, o diagnóstico precoce de doentes, os investimentos no desenvolvimento de vacinas e de drogas para tratamentos específicos (Ayres, Júnior e Calazans, 1997).

Em 1985 a Aids já é considerada uma pandemia, sem limites geográficos, abrangendo todas as etnias, raças, classes sociais, idades, orientações sexuais; enfim, toda a população mundial, sem distinção.

A partir de então, o conceito de “grupo de risco” passa a ser questionado e criticado pela inadequação que a própria dinâmica da epidemia demonstra e também pela militância dos grupos mais atingidos pela estigmatização e exclusão, principalmente o movimento gay norte-americano. Entram em cena as estratégias de redução de risco, baseadas na difusão de informações sobre a doença, controle dos bancos de sangue, estímulo e treinamento para o uso de preservativos e outras práticas de sexo mais seguro, testes de detecção, aconselhamento e, finalmente, estratégias de redução de danos para usuários de drogas injetáveis (com a polêmica introdução das práticas de distribuição e/ou troca de agulhas e seringas). Neste período, ocorrem os primeiros relatos de casos de HIV/Aids em mulheres, crianças, homens heterossexuais e idosos, sendo necessário uma revisão do conceito difundido até então.

É importante ressaltar que as noções de “grupos de risco” e comportamentos “promíscuos” compõem na década de 80 o discurso da ciência destacado em matérias sensacionalistas na mídia. Rodrigo Guimarães e Aidê Ferraz (2001) afirmam que por um processo de retroalimentação, é cabível dizer que alguns médicos e profissionais de saúde foram mais influenciados pelo discurso da mídia do que pelo discurso da ciência, em sua prática profissional no que tange às DST, ao HIV e à Aids.(p. 95).

Como resposta às críticas, mudam-se as estratégias de prevenção e passa a ser veiculado neste período o conceito de “comportamento de risco”. Com a introdução deste novo conceito objetiva-se retirar o peso do estigma dos grupos nos quais primeiramente foi detectada a epidemia, estimulando um ativo envolvimento do indivíduo com a prevenção. Como conseqüência, ganha força uma tendência à culpabilização individual, pois quando o comportamento do indivíduo é trazido para o centro da cena, torna-se inevitável que se atribua à displicência a ‘eventual’ falha na prevenção.

No entanto, Ayres et al. (1997) afirmam que a prevenção da Aids não é a resultante necessária de informação associada à vontade, mas que passa por coerções e recursos de natureza cultural, econômica, política, jurídica, e até policial, desigualmente distribuídos entre os sexos, países, segmentos sociais, grupos étnicos e faixas etárias.

Segundo Granjeiro (citado por Ayres et al., 1997), os limites dessas estratégias estão evidenciados pelo relativo insucesso demonstrado pelas avaliações dos programas de prevenção de base comportamental. Soma-se, por sua vez, a explosão da epidemia em direção aos setores socialmente vulneráveis – pobres, mulheres, marginalizados, negros, jovens – com a chamada pauperização da epidemia.

Com os avanços tecnológicos da década de 1990 e as possibilidades abertas pelo isolamento do agente viral, progridem rapidamente os recursos diagnósticos, prognósticos e terapêuticos. Já as pesquisas no tangente à profilaxia encontram ainda limites importantes. No campo da terapêutica, a grande novidade é o chamado coquetel, a combinação de agentes anti-retrovirais com diferentes mecanismos de intervenção sobre o ciclo de reprodução do HIV. Sua utilização pelos portadores do vírus representa um importantíssimo impacto sobre a taxa de ocupação de leitos nos hospitais e sobre a mortalidade dos doentes, com grande repercussão na mídia. Porém, esses sucessos obtidos na perspectiva clínica não correspondem, como era de se esperar, a um efetivo controle da epidemia, que, ao contrário, continua em expansão, especialmente nos países e segmentos sociais mais pobres. Essa referida pauperização da doença, por sua vez, traz consigo o problema de sua banalização, isto é, da convivência complacente com o problema por parte dos segmentos mais poderosos, a pouca reação social e o descaso com as políticas públicas (Ayres et al., 1997).

A partir do final da década de 1990, mesmo com um evidente processo de banalização da doença, existe todo um movimento político e social de fortalecimento da luta contra a Aids. Busca-se ganhar espaço para as proposições que defendem estratégias de prevenção não restritas à redução individual de riscos, mas que apontam para as estratégias de alcance social como indispensáveis para o controle da epidemia. Entre as estratégias, encontramos o conceito de vulnerabilidade social. Este conceito, segundo Ayres et al (1997),

busca estabelecer uma síntese conceitual e prática das dimensões sociais, político-institucionais e comportamentais associadas às diferentes suscetibilidades de indivíduos, grupos populacionais e até mesmo nações à infecção pelo HIV e às suas conseqüências indesejáveis (doença e morte). Ao fazê-lo, não visa distinguir a probabilidade de um indivíduo qualquer se expor à Aids, mas busca fornecer elementos para avaliar objetivamente as diferentes chances que cada indivíduo ou grupo populacional particular tem de se contaminar, dado o conjunto formado por certas características individuais e sociais de seu cotidiano, julgadas relevantes para a maior exposição ou menor chance de proteção diante do problema
(p. 32).

A vulnerabilidade tem sido um conceito muito utilizado exatamente por propor aproximações teóricas ou intervenções não restritas ao HIV, ao risco, ao comportamento individual e às abordagens biomédicas. A avaliação de vulnerabilidades tem o sentido mais amplo de fornecer “empowerment” em vários níveis, entre eles, o individual (no sentido de uma auto-avaliação e conhecimento dos fatores de exposição), o social (no sentido de construir um diagnóstico social capaz de instruir as agendas dos movimentos sociais organizados) e sócio-político (planejamento de ações por parte de técnicos, autoridades e governos). Outra estratégia de importante alcance social a ser citada são os movimentos sociais organizados, como as Organizações Não-Governamentais. Essas associações, desde o início, foram agentes privilegiados das mudanças sociais e estruturais necessárias para que os recursos disponíveis para o controle da infecção e da doença fossem justos e efetivamente utilizados. As ONGs nasceram de laços de solidariedade entre as pessoas soropositivas e aqueles que se viam do “outro lado” dessas representações, abarcando parentes e amigos dos portadores do vírus. Muito mais do que laços de solidariedade, esses indivíduos representavam movimentos de luta contra a discriminação dos portadores do HIV/Aids e dos excessos utilizados pelas pessoas e pela mídia para descrever a doença e seus efeitos (Galvão, 1994). Assim, a epidemia do vírus HIV/Aids, como objeto de grande mobilização social, trouxe desafios não para as áreas científicas como também para a mobilização de alguns segmentos da sociedade. A Aids, então, se tornou uma bandeira fundamental no combate à discriminação social; um marco na luta pelo respeito às diferenças."

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Fonte:
Alane Michelini Moura: "AS RELAÇÕES DE GÊNERO EM CASAIS HETEROSSEXUAIS VIVE DO COM HIV/AIDS: Análise do Discurso sobre os vínculos afetivo-sexuais". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Social Orientadora: Profa. Dra. Sandra Azeredo). Belo Horizonte, 2006.

Nota
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