A cultura do privilégio no Brasil



"A origem do nosso Direito corresponde à família romano-germânicae o nosso padrão cultural está diretamente submetido às características gerais que a colonização portuguesa imprimiu no Brasil, obviamente, com a interação do elemento indígena e do escravo negro.

Este padrão cultural legado por Portugal não foi composto apenas do português conhecido pela figura do degredado ou do condenado, verdadeiros párias aos olhos da sociedade portuguesa, os quais chegavam ao Brasil Colônia ao invés de serem submetidos à pena capital.

Por isso mesmo, a idéia geral que se tem do português responsável pela disseminação da sua cultura no Brasil, na verdade, não pode ficar adstrita ao
conceito do português degredado e condenado, mas de uma pessoa portadora de contornos próprios, a qual GILBERTO FREYRE visualizava como uma figura vaga, falta-lhe o contorno ou a cor que a individualize entre os imperialistas modernos. Assemelha-se em alguns pontos à do inglês; em outros à do espanhol. Um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dramática do conquistador do México e do Peru; um inglês sem as duras linhas puritanas. O tipo do contemporizador. Nem ideais absolutos, nem preconceitos inflexíveis.

O homem português no Brasil Colônia, decorrente ou não da miscigenação, acabou formando a nossa cultura, a qual serviu de embasamento para a criação do Direito, apesar de personificar, como GILBERTO FREYRE denominou “um tipo contemporizador” e “sem ideais absolutos ou preconceitos inflexíveis”, não escapou à realidade de uma sociedade devidamente estratificada, mas não impermeável, porquanto não havia uma aristocracia fechada na sociedade portuguesa.

Assim, presente a separação das classes sociais sem que isso fosse o impedimento à contínua miscigenação e, ainda, a incidência constante dos privilégios na vida portuguesa e brasileira, o que é sintetizado por SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA ao mencionar que, no fundo, o próprio princípio de hierarquia nunca chegou a importar de modo cabal entre nós. Toda hierarquia funda-se necessariamente em privilégios. E a verdade é que, bem antes de triunfarem no mundo as chamadas idéias revolucionárias, portugueses e espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade específica, a injustiça social de certos privilégios, sobretudo dos privilégios hereditários. O prestígio pessoal, independente do nome herdado, manteve-se continuamente nas épocas mais gloriosas da história das nações ibéricas.

Não espanta, assim, que o privilégio estivesse arraigado à cultura brasileira e houvesse criado numa parcela significativa da sociedade uma passividade ética e moral que facilitou a sua aceitação, mesmo porque, historicamente, as classes trabalhadoras almejavam as mesmas benesses que os nobres ou os seus patrões, o que dificultou o estabelecimento de um processo coletivo de rejeição. Factível a conclusão de que não se põe em questionamento o que um dia pode-se vir a ter.

Tão nítido o inter-relacionamento entre nobres e empregados em Portugal e no Brasil Colônia que as Ordenações estabeleceram regras privilegiando os empregados dos nobres ou fidalgos (vide capítulo I, item 1.2.3.1), situação diagnosticada por SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA ao buscar e citar os ensinamentos de ALBERTO SAMPAIO enfatizando que “como a lei consignada nas Ordenações confessa que havia homens da linhagem dos filhos d’algo em todas as profissões, desde os oficiais industriais, até os arrendatários de bens rústicos; unicamente lhes são negadas as honras enquanto viverem de trabalhos mecânicos. A comida do povo – declara ainda – não se distinguia muito da dos110 cavalheiros nobres, por isso que uns e outros estavam em contínuas relações de intimidade; não só os nobres comiam com os populares, mas ainda lhes entregavam a criação dos filhos. Prova está na instituição do amádigo pela qual os nobres davam a educar seus filhos aos vilãos, que desfrutavam, neste caso, de alguns privilégios e isenções.”

Em face do inter-relacionamento inerente à cultura portuguesa, a aceitação do privilégio restou admissível entre nós, diferentemente de outros países da Europa, onde a separação das classes sociais fomentou um maior repúdio ao estabelecimento de privilégios, uma vez que os nobres do restante da Europa não mantinham uma convivência mais direta com os seus empregados e, conseqüentemente, os casamentos só ocorriam entre aqueles de classe semelhante, justamente o que foi confirmado acima, por ocasião do exame das classes privilegiadas na França (vide nota de rodapé 174).

O privilégio, ademais, sempre fez parte do cotidiano do Brasil Colônia, segundo o que nos revela MARIA FERNANDA BICALHO ao analisar todo o processo de desenvolvimento da Cidade do Rio de Janeiro desde o século XVII e demonstrar que a idéia do privilégio alcançou tamanha difusão e naturalidade, chegando ao ponto de ser parte integrante da estrutura da Cidade.

Acentua MARIA FERNANDA BICALHO que “em 1642, os cidadãos da cidade de São Sebastião recebiam os mesmos privilégios, honras e liberdades conferidas por carta régia de 1º de junho de 1490 aos cidadãos do Porto” e “estendidos em meados do século XII aos colonos do Rio de Janeiro, esses privilégios atribuíam-lhes certas prerrogativas de fidalguia, e à cidade, o título de “Leal”. Uma primeira observação a se fazer acerca desses privilégios é o fato de serem concedidos aos cidadãos e não a todos os habitantes das cidades contempladas. Por cidadãos entendiam-se aqueles que por eleição desempenhavam ou tinham desempenhado cargos administrativos nas câmaras municipais – vereadores, procuradores, juizes locais, almotacés etc. –, bem como seus descendentes. Entre as prerrogativas a que tinham direitos estavam as distinções de serem metidos a tormentos por quaisquer malefícios que tivessem cometido, salvo nos modos em que eram os fidalgos do reino; de não poderem ser presos por nenhum crime, somente como eram e deviam ser os mesmos fidalgos, e de lhes ser permitido portar quaisquer tipos de armas.”

Foram diversos os privilégios concedidos aos cidadãos na Cidade do Rio de Janeiro e aos seus empregados, o que fornece a evidência precisa da participação do privilégio no nosso cotidiano e de como o mesmo inspirou a formação cultural de uma sociedade desde o século XVII, à medida que todos procuravam a obtenção de uma projeção social para alcançar o gozo dos referidos privilégios.

Não é de se estranhar, por conseguinte, que o privilégio tenha tido uma configuração própria e que a sua aplicação tenha continuado mesmo após o advento da Revolução Francesa e a proposta de igualitarismo nela contida."

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Fonte:
Orlando Carlos Neves Belém: "Do Foro Privilegiado à Prerrogativa de Função". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio). Rio Rio de Janeiro, 2008.

Nota
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A imagem (Correio da Semana, 1914) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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