“O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu asociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política” (Michel Foucault)
A transformação dos métodos punitivos
É sob esta perspectiva que Foucault publica, em 1975, Vigiar e punir, obra na qual, mais do que um estudo de período, Foucault se propõe à análise de um problema, tendo por referência as transformações dos métodos punitivos a partir do que denomina de “tecnologia política do corpo”, apontando para uma importante mudança que se dá em fins do século XVII, início do XVIII, na forma como o poder é exercido.
Segundo Foucault, sociedade jurídica foi a sociedade monárquica, no sentido de que o poder, fundando-se mais em terras e produtos, manifestava-se essencialmente por meio da lei, supondo, para tanto, a pessoa do próprio soberano. Nela, o corpo do rei era uma realidade política, cuja presença física se fazia necessária ao funcionamento do próprio regime. Tratava-se, assim, de um poder forte, descontínuo e oneroso que se valia do exercício explícito de sua força.
É partindo desta idéia que Foucault analisa as práticas punitivas medievais, mostrando que o suplício, como sanção penal – isto é, como pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz –, embora não constituísse a pena mais freqüente, representava prática comum no antigo regime sob as formas de esquartejamentos, amputações, inscrições corporais, humilhações públicas, dentre outras práticas.
O que, num primeiro momento, poderia parecer tão simplesmente uma manifestação colérica exasperada, era, na verdade, uma técnica adaptada à economia de poder de uma sociedade fundada na lei e que se valia da violência para se impor. A violência decorria do fato de que, antes de se constituir em uma ação em prejuízo de alguém, o crime era uma ofensa à pessoa do soberano, pois violava uma lei por ele promulgada, razão pela qual deveria ser punido. Esta punição se sustentava pela prática do medo e tinha por objetivo “tornar sensível a todos, sobre o corpo do criminoso, a presença encolerizada do soberano” (FOUCAULT, 1987:46). Prova disso é que os suplícios continuavam mesmo após a morte do criminoso, como ritual coletivo para efeito sobre as multidões. Sua dimensão pública era fundamental para o efeito de poder, tendo como personagem central não o supliciado, mas o povo-espectador. O suplício, assim, não restabelecia a justiça, mas tinha a função jurídico-política de restaurar a soberania violada pelo crime. E para restaurá-la era preciso mostrar força, mesmo que esta força se apresentasse incomparavelmente maior. O excesso era condição para a afirmação do poder soberano, que não precisava se preocupar em explicar as razões de suas investidas e sim identificar e combater seus inimigos; neste sentido, ele não tinha a menor dificuldade de se exercer diretamente sobre os corpos, exaltando-se e reforçando-se inclusive por suas manifestações físicas. As execuções públicas inseriam-se, portanto, no contexto de um ritual de poder. Diz Foucault:
“O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle. Nos ‘excessos’ dos suplícios, se investe toda a economia do poder” (1987:35).
Ocorre que, em função das profundas mudanças econômicas e sociais que se operam particularmente a partir do século XVII, este sistema de poder passa a representar um obstáculo e não mais corresponder às exigências da nascente sociedade burguesa e sua nova razão econômica. Por um lado, tratava-se de um poder descontínuo que deixava escapar uma série de elementos, condutas e processos (Foucault dá como exemplo o contrabando marítimo europeu até fins do século XVIII); por outro, constituía um poder oneroso, na medida em que era essencialmente um poder de extração que detinha o direito e a força de arrecadar (impostos, dízimos etc), a ponto de se tornar um empecilho à própria atividade econômica. Em outras palavras, o poder soberano, essencialmente repressivo e que se valia da violência direta sobre os corpos de seus súditos, mostrava ares de uma certa obsolescência.
A percepção deste desajuste teria estimulado a busca por novas formas de exercício de poder, o que Foucault denomina de a “grande mutação tecnológica” do poder no Ocidente. Segundo ele, fala-se muito nas grandes transformações tecnológicas da modernidade, como a invenção da máquina a vapor, mas não se dá a devida importância a uma outra invenção, igualmente tecnológica e anterior àquela e tantas outras, e que mudou por completo a feição do Ocidente: a tecnologia política. Afinal, diz ele, “houve toda uma invenção ao nível das formas de poder ao longo dos séculos XVII e XVIII” (2001a:10).
É nas práticas punitivas que Foucault vai identificar este processo inventivo, mesmo que seu desenrolar não tenha se dado de modo linear e progressivo. Ele mostra, assim, que as transformações que ocorrem no sistema penal acompanham a nova economia do poder da sociedade burguesa de tal modo que o suplício, anteriormente aceito pelo sistema punitivo monárquico, passa a ser condenado em praticamente toda parte pela reforma penal do século XVIII. O argumento apresentado era o de que o castigo tinha a humanidade como medida de sua aplicação. Foucault, no entanto, vê nisso menos uma questão de humanidade e mais um “esforço para ajustar os mecanismos de poder que enquadram a existência dos indivíduos” (1987:72). Trata-se, portanto, não da fundação de um novo direito de punir a partir de princípios mais eqüitativos e humanos, mas do estabelecimento de uma nova economia do poder de castigar, isto é, de uma outra política em relação às ilegalidades, cujo verdadeiro objetivo era fazer da punição e da repressão ao crime uma função regular, co-extensiva à sociedade. A finalidade não é punir menos, mas punir melhor, punir de forma menos severa, mas com mais universalidade e necessidade, inserindo mais profundamente no corpo social o poder de punir.
Assim, não obstante a permanência de certos traços do antigo terror suplicante, a saber, a busca de efeitos mais intensos não naquele que cometeu a falta, mas naqueles que ainda não a cometeram, Foucault aponta para importantes alterações relativas ao poder e suas manifestações simbólicas que, dentre outras coisas, promovem uma dupla objetivação: de um lado, a objetivação do criminoso, a quem caberá tratamento científico por ser considerado portador de uma “outra natureza”; de outro, a objetivação do crime, ao qual corresponderá a organização de um campo de prevenção a partir de todo um cálculo de interesses, bem como a entrada em circulação de representações e sinais que permitirão o estabelecimento de penas mais sutis. Foucault fala então em uma mudança na mecânica do poder.
Como se pode imaginar, esta nova “economia punitiva” implica em uma outra relação entre o poder e os corpos. Para isto, ela se vale de um forte discurso capaz de fornecer uma espécie de
“receita geral para o exercício do poder sobre os homens: o ‘espírito’ como superfície de inscrição para o poder, com a semiologia por instrumento; a submissão dos corpos pelo controle das idéias; a análise das representações como princípio, numa política dos corpos bem mais eficaz que a anatomia ritual dos suplícios. O pensamento dos ideólogos não foi apenas uma teoria do indivíduo e da sociedade; desenvolveu-se como uma tecnologia dos poderes sutis, eficazes e econômicos, em oposição aos gastos suntuários do poder dos soberanos” (FOUCAULT, 1987:93).
Ou seja, a idéia agora é menos punir do que educar e corrigir, de modo a conferir ao crime uma natureza espiritual a ponto de a pena visar menos o corpo, deixando de recorrer à dor enquanto instrumento da técnica punitiva, e mais a alma do criminoso, repousando sobre uma “tecnologia da representação”. Como diz Foucault, “é a representação da pena que deve ser maximizada, e não sua realidade corpórea” (1987:86). Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, torna-se a palavra de ordem. É a liberdade do indivíduo, considerada um direito e um bem, que se busca cercear. A pena ganha uma dimensão que Foucault qualifica de “incorpórea”. É claro que a reclusão e o trabalho forçado – ainda em voga – são penas físicas, porém, tomando o corpo não mais como alvo direto, como antes, e sim de forma intermediária, na medida em que se apresenta como instrumento para a realização da pena. Para Foucault, a relação castigo-corpo já não é a mesma dos suplícios.
Ocorre, porém, que já no Código Penal francês de
Contrariamente aos reformadores que apostavam na requalificação dos indivíduos por meio do investimento em um sistema de representações, o aparelho de penalidade corretiva reinveste sobre os corpos, mais precisamente sobre gestos e atividades cotidianas, bem como sobre o tempo. Os elementos utilizados para isto são formas de coerção, esquemas de limitação aplicados e repetidos, tais como definição de horários, regulação de atividades e comportamentos, estabelecimento de hábitos, bem como exercícios. Investe igualmente sobre a alma, porém, na medida em que esta é sede de hábitos. “O corpo e a alma, como princípios dos comportamentos, formam o elemento que agora é proposto à intervenção punitiva. Mais que sobre uma arte de representações, ela deve repousar sobre uma manipulação refletida do indivíduo” (FOUCAULT, 1987:114). Ao invés do sujeito de direito, o que se procura atingir com esta técnica são indivíduos obedientes submetidos à autoridade permanente e que se deixam atuar sobre si. Trata-se de uma nova prática punitiva em paralelo com uma nova economia do poder.
Assim, em fins do século XVIII, início do XIX, encontramo-nos diante de três maneiras de organizar o poder de punir. De um lado, o velho poder monárquico, ainda em funcionamento; de outro, duas visões preventivas e reformadoras, porém, distintas quanto aos dispositivos que utilizam. Cada um destes sistemas punitivos se liga a diferentes formas de funcionamento do poder: o soberano e sua força, o corpo social, o aparelho administrativo; a marca, o sinal, o traço; a cerimônia, a representação, o exercício; o inimigo vencido, o sujeito de direito em vias de requalificação, o indivíduo submetido a uma coerção imediata; o corpo supliciado, a alma das representações manipuladas, o corpo treinado. Três dispositivos ou tecnologias de poder."
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Fonte:
André Valente de Barros Barreto: “A luta encarnada: corpo, poder e resistência nas obras de Foucault e Reich”. (Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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Foucault, corpo e poder: da repressão à incitação
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