Foucault e a Experiência Trágica

A loucura

"Em História da loucura, Foucault mostrará como esta determinação da fronteira entre o que somos e o que consideramos o Outro toma no discurso psiquiátrico moderno a forma da distinção entre normalidade e loucura, entre razão e sem razão. Se ocupará então de fazer uma genealogia do gesto originário, que dividiu a razão e a não-razão, mostrando, ao mesmo tempo “...o poder que a razão exerce sobre a sem-razão para lhe arrancar sua verdade de loucura”. (Foucault 1961/1999a: 140). Buscará perceber o gesto em que a verdade psiquiátrica se ergue sobre a loucura e a confina na categoria de doença mental. A partir dessa divisão a loucura só poderá ser pensada desde a razão. A partir daí, com a exceção do campo da arte, na cultura ocidental a troca entre razão e loucura só pode ser feita através do discurso profissional do médico.

Foucault nega que a medicalização e a psicologização da loucura sejam o resultado de um progresso que teria levado ao desvelamento de sua essência; esta desconfiança é possível graças à categoria de “experiência trágica da loucura”. Esta categoria permite ver, na loucura, além de uma figura histórica, uma experiência atemporal, originária, crucial, essencial, que a razão, ao invés de descobrir, encobriu, ocultou, mascarou, dominou (embora não a tenha destruído totalmente), por ela ter-se mostrado ameaçadora, perigosa. Deste modo, o discurso da razão tenta negar o que nele próprio resulta infinito, caótico e por tanto inquietante, encerrando, na categoria de “doença mental”, esse profundo oceano de sem sentido que se agita no sujeito, ameaçando com fazer naufragar sua frágil identidade pessoal e o bom senso que a garante.

Esta outra loucura, a que faz referência Foucault, não é a loucura enquanto categoria médica, não é uma doença, é uma categoria ontológica. Trata-se do infinito, do fundo caótico, informe, atemporal, desde onde as formas emanam e no qual irão se perder um dia. É ao mesmo tempo uma força dissolvente que ameaça corromper todo o existente.

Trata-se, na História da loucura, segundo as palavras do próprio Foucault de:
“... ir ao encontro, na história, desse grau zero da história da loucura, no qual ela é experiência indiferenciada, experiência ainda não partilhada da própria partilha. Descrever, desde a origem de sua curvatura, esse ‘outro giro’ que, de um e de outro lado de seu gesto, deixa recair coisas doravante exteriores, surdas a toda troca, e como mortas uma para a outra: a Razão e a Loucura (Foucault, 1961/1999a: 140).

Foucault quer ir ao encontro desse gesto trágico que funda ao mesmo tempo a forma e o fundo. Não se trata de saber o que a razão sabe da loucura, ele quer situar-se numa região anterior, originária tanto da razão quanto da loucura. Se a episteme moderna está construída, como já foi dito, sobre o silenciamento da relação fundamental entre razão e loucura, será preciso fazer a arqueologia desse silencio e desconfiar de toda história do conhecimento.

“Em direção a qual região iremos nós, que não é nem a história do conhecimento, nem a história simplesmente, que não é comandada nem pela teologia da verdade, nem por o encadeamento racional das causas, os quais só tem valor e sentido mas além da divisão? Uma região sem dúvida onde se trataria mais dos limites do que a identidade de uma cultura”.
(Foucault 1961/1999a: 142).

O trabalho de Foucault não é uma apologia da loucura, não se trata de entregar-se por completo a esse impulso dissolvente; ao contrário, trata-se de ir ao encontro do sublime no pensamento, de contemplar o infinito que o pensamento carrega em si próprio. A região à qual Foucault pretende encaminhar seu trabalho está para além da história e da verdade, porque a história só se faz possível no estabelecimento de certos limites, na afirmação de determinadas relações. A história pertence à razão e o lugar a que Foucault está se referindo é anterior aos ordenamentos da razão. Também não pertence à verdade, porque o momento trágico da divisão entre figura e fundo, entre razão e loucura não pertence ao âmbito da verdade senão ao do sentido. A divisão de que fala Foucault é instauradora de sentido. O problema da verdade virá depois quando o sentido tenha sido estabelecido. O sentido é anterior ao sujeito, é anterior a história, é anterior ao saber, é anterior ao encadeamento das causas.

É por essas razões que Foucault, seguindo Nietzsche, não se pergunta pela verdade, mas por algo mais fundamental, pelo valor e pelo sentido. Foucault não se pergunta pela identidade de sua cultura, mas pela força que fez essa cultura emergir dentre muitas outras combinações. Toda sua análise está feita em termos de forças, forças que criam formas, formas que são conceitos, discursos e sujeitos. O problema para Foucault não é então o “ser”, a “identidade”, mas o ato primordial de recusa, de traçado de limites, em que ela se funda.

Poder-se-ia fazer uma história dos limites – desses gestos obscuros, necessariamente esquecidos logo que concluídos, pelos quais uma cultura rejeita alguma cosa que será para ela o Exterior; (...) ali se encontra a espessura originária na qual ela se forma. Interrogar uma cultura sobre suas experiências-limites é questioná-la, nos confins da história, sobre um dilaceramento que é como o nascimento de sua história.” (Foucault, 1961/1999a: 142)

“(...) encontram-se confrontados, em uma tensão sempre preste a desenlaçar-se, a continuidade temporal de uma análise dialética e o surgimento, às portas do tempo, de uma estrutura trágica.
” (Foucault, 1961/1999a: 142)

A loucura num sentido trágico não pode pertencer à razão, ao discurso. O ato de nomeá-la suporia tê-la posto no espaço e no tempo da razão e da história. A loucura, num sentido trágico, é portanto um fundo de sem-sentido a partir do qual se estabelece qualquer sentido, mas que sempre permanece inacessível a este e por isso o ameaça radicalmente. A obra da história, da razão, da linguagem só é possível sobre um fundo caótico. Trata-se de um espaço de sem-sentido que percorre a história por baixo, ameaçando-a, e que se renova a cada instante, com cada palavra e com cada novo gesto da razão, mas que é ao mesmo tempo o segredo de seu devir.

A loucura é para Foucault, “barulho surdo debaixo da história, o murmuro obstinado de uma linguagem que falaria sozinha –sem sujeito falante e sem interlocutor” (Foucault, 1961/1999a: 144). A loucura é linguagem, mas não discurso. É o ponto cego da linguagem, é isso que sempre escapa à linguagem, mas que faz parte de seu próprio devir, “raiz calcinada do sentido” dirá Foucault (Foucault, 1961/1999ª: 144). Não se trata então de fazer a historia de um conhecimento, mas a arqueologia de uma experiência, nada menos de uma experiência que conduz até o fogo primordial onde se forja o sentido. Não estamos frente à historia de um saber, mas à arqueologia de uma experiência do pensar."

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Fonte:
Maximiliano Valerio López: “A ‘FILOSOFIA COM CRIANÇAS’ DESDE UMA PERSPECTIVA TRÁGICA”. (Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade do Estado de Rio de Janeiro. Orientador: Walter Omar Kohan). Rio de Janeiro, 2006.

Nota
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