Foucault e o nascimento da Psiquiatria e Psicanálise



NASCIMENTO DA PSIQUIATRIA E PSICANÁLISE

“Nosso foco é o discurso da psicopatologia a partir da segunda metade do século XIX, quando começa a surgir a noção de perversidade. Mas seria oportuno retroceder até o final do século XVIII para visualizar em “História da loucura na idade clássica” o que propiciou o surgimento da psiquiatria e sua apropriação de um objeto, a “doença mental”.

Em 1790 é criado o hospital Bicêtre, na França, do qual Pinel torna-se diretor em 1793. Os internos, que antes eram acorrentados, são libertados por ele (na verdade as correntes são substituídas por coletes). Era um homem que já havia adquirido certa reputação no conhecimento das doenças do espírito. Portanto, a loucura começa a ser um objeto do discurso médico, a função de Pinel era avaliar e classificar, tal avaliação representa uma forma de objetivação da loucura. O médico se torna uma autoridade moral, ele é quem comanda a entrada no asilo. Mas seu poder não é justificado por um conhecimento legítimo da loucura, é antes um poder moral. Sua terapêutica consiste em constituir os loucos em tipos morais e exigir obediência e hierarquia nas relações, ou submetê-los a testes de realidade. Libertar os acorrentados na verdade significa uma forma mais sutil de controle, pois agora o louco se torna objeto que pode ser observado e classificado, há punição ou recompensa – de acordo com a conduta; é preciso reconhecer sua des-razão e culpa. uma autoridade da razão sobre a des-razão, essa é a nova forma de contenção. A verdade do sujeito já se encontra dada, e está no campo do saber médico.

Na Inglaterra, o movimento é representado por Tuke, que adota o retiro na tentativa de curar o alienado, reconduzi-lo à razão, verdade, moralidade. Mas o que aqui nos importa é situar essa poderosa influência da personalidade do médico, capaz de produzir curas através de um poder obscuro. A prática psiquiátrica tem justamente por base essas táticas morais vistas no final do século XVIII.

Após essa breve referência, devemos retornar ao foco, que é a noção de perversão. Para tanto, é oportuno considerar a obra foucaultiana “O Poder psiquiátrico”. A obra diz respeito às aulas ministradas no Collège de France, onde Foucault era responsável pela cátedra de “História dos sistemas de pensamento”. O curso, entre seus objetivos, previa reflexão sobre as práticas médicas e a forma como se instituiu uma partilha entre o normal e o patológico. É uma “continuação” da “História da Loucura”, mas considerada sob uma nova ótica, a do poder disciplinar.

É notável o método de trabalho de Foucault, pois ele se dedicava à leitura dos arquivos médicos do século XIX, compostos por tratados e relatos clínicos. Pode-se, portanto, dizer que não abandonou o trabalho da arqueologia do saber, apenas o ampliou. Os textos pesquisados contemplam nomes relevantes da psiquiatria clássica como Pinel e Esquirol até Charcot (com quem Freud iniciou seus estudos sobre hipnose).

Encontra-se aí, a gênese da psiquiatria e a leitura que Foucault faz desse “nascimento”, demonstrando o poder das práticas discursivas que estão apoiadas nas práticas não discursivas sobre a loucura. No século XIX, será a primeira vez em que o internamento da loucura aparecerá não apenas como isolamento de quem perturba a ordem social e familiar, mas principalmente como dispositivo de cura. A psiquiatria, segundo Foucault, não nasce como conseqüência de um novo progresso no conhecimento da loucura, mas dos dispositivos disciplinares nos quais se organiza então o regime imposto a ela.

Essa seria a fundação do que o autor chama de “função-psi”, que surge como um auxílio disciplinar da família, origina-se na realidade como um par em relação à família. Esta exige o internamento do indivíduo para que seja adestrado e disciplinado, o que possibilita, num segundo momento, seu retorno ao meio familiar. Para o autor, a psicanálise é a que mais ressalta a função-psi, que pode ser entendida como:

Função psiquiátrica, psicopatológica, psicossociológica, psicocriminológica, psicanalítica, etc. E quando digo “função”, entendo não apenas o discurso mas a instituição, mas o próprio indivíduo psicológico. E creio que essa função desses psicólogos, psicoterapeutas, criminologistas, psicanalistas, etc, qual é ela, senão ser os agentes da organização de um dispositivo disciplinar que vai se ligar, se precipitar onde se produz um hiato na soberania familiar?
(FOUCAULT, 2006, p. 106).

O internamento passa a ser questão regulada por leis, visando à segurança da família, que delega os cuidados do indivíduo desviante ao saber-poder psiquiátrico. Mas Foucault prossegue em seus questionamentos, embasado em suas pesquisas dos arquivos médicos do século XIX, declarando que a psiquiatria transformou-se em detentora do saber sobre a loucura a partir de três técnicas:

a) o interrogatório: como forma de extorquir a confissão, buscando os antecedentes, traços de anomalia na infância, a chamada “anamnese”. O médico pode então transformar tal relato em sintoma;
b) as drogas: embora os historiadores da psiquiatria não comentem, algumas drogas foram utilizadas rotineiramente no espaço asilar do século XIX (ópio, láudano, haxixe entre outros). Trata-se de um instrumento não apenas disciplinar, pelo fato de evidentemente “acalmar” os pacientes, mas também capaz de induzir ao delírio. O paciente “medicado” encontra-se como num sonho delirante, mais uma vez então sob a determinação do médico;
c) o magnetismo de certos medicamentos colabora para a prática do interrogatório. Posteriormente, por volta de 1858, a hipnose torna-se o modo mais empregado para revelar situações traumáticas causadoras da anormalidade.

Foucault aponta que as técnicas de interrogatório e hipnose são os elementos capazes de transformar a história da prática e do poder psiquiátrico. O interrogatório tem o poder de vincular o indivíduo à sua identidade social e ao mesmo tempo demonstrar a loucura que lhe foi conferida pelo meio em que cresceu, tudo isso através da pesquisa sobre seus antecedentes. Deve-se observar que nessa época, 1839-1840, ainda não havia a noção de hereditariedade e degenerescência, que foi formulada por volta de 1855-1860, mas já é possível detectar um esboço de tais noções. Para Foucault, como será visto na citação a seguir, o levantamento sobre antecedentes trata-se principalmente de suprir a anatomia patológica, suprir a ausência de corpo. Já a hipnose foi utilizada como recurso auxiliar, instrumento disciplinar:

Já que não se pode e não se sabe encontrar no doente um substrato orgânico para sua doença, trata-se então de encontrar no nível da sua família certo número de acontecimentos patológicos que serão tais que, qualquer que seja aliás sua natureza, eles se referirão à comunicação e, por conseguinte, à existência de certo substrato material patológico. A hereditariedade é certa maneira de dar corpo à doença no momento mesmo em que não se pode situar essa doença no nível do corpo individual; então inventa-se, demarca-se uma espécie de grande corpo fantasmático que é o de uma família afetada por um grande número de doenças: doenças orgânicas, doenças não-orgânicas, doenças constitucionais, doenças acidentais, pouco importa; se elas se transmitem é porque possuem um suporte material e, se se alcança assim o suporte material, então se tem o substrato orgânico da loucura, um substrato orgânico que não é o substrato individual da anatomia patológica. É uma espécie de substrato metaorgânico, mas que constitui o verdadeiro corpo da doença. [...] É na realidade o corpo da família inteira, é o corpo constituído pela família e a hereditariedade familiar
(FOUCAULT, 2006, p. 352).

Tal abordagem apresenta sua originalidade por analisar, conforme foi dito anteriormente, como nasceram as noções de hereditariedade e degenerescência. A medicina teve que recorrer a um “substrato metaorgânico”. Isto significa que na falta de comprovação orgânica para as doenças mentais, o recurso foi o apelo ao que haveria de “irregular” na história de vida do sujeito.

É o momento onde surge um dos traços fundamentais do exercício de poder psiquiátrico no século XIX, refere-se à disjunção entre criança louca e criança anormal. Tudo isso possibilitado pelas noções de instinto e degenerescência. Tais noções serão abordadas também nas aulas de 1974 e serão mais uma vez debatidas neste capítulo. No século XIX a anomalia afeta a criança e não o adulto, para resumir:

No século XIX, o homem é que era louco, e não se concebeu antes dos últimos anos do século XIX a possibilidade real de uma criança louca; aliás, é unicamente por projeção retrospectiva do adulto louco sobre a criança que finalmente acreditou-se descobrir algo, que era a criança louca. Mas fundamentalmente, no século XIX, o adulto é que é louco. Em compensação, o que é anormal é a criança
(FOUCAULT, 2006, p. 280).

Dessa forma, a psiquiatria toma a seu cargo o poder de definição do que vem a ser “anormal”, seu controle e correção. O poder torna-se mais amplo e geral, não “domina” só o campo da loucura. Assim, por ser ciência e poder sobre a anomalia, foi possível a disseminação do poder psiquiátrico na sociedade, uma possibilidade de estabelecer uma ligação entre criança anormal – adulto louco. Como foi dito anteriormente, tal articulação foi possível devido ao laço entre os conceitos de degenerescência e instinto.

Por degenerescência, compreende-se a predisposição para a anomalia:
Será chamada de “degenerada” a criança sobre a qual pesam, a título de estigmas ou de marcas, os restos da loucura dos pais ou dos ascendentes. A degenerescência, é, portanto, de certo modo, o efeito da anomalia produzido na criança pelo pais. E, ao mesmo tempo, a criança degenerada é uma criança anormal, cuja anomalia é tal que pode produzir, em certo número de circunstâncias determinadas e após certo número de acidentes, a loucura. (...) Essa noção vai demarcar a família, os ascendentes, tomados em bloco e sem definição bem estrita, e vai fazer da família a espécie de suporte coletivo desse duplo fenômeno que são a anomalia e a loucura (FOUCAULT, 2006, p. 282).

Quanto ao instinto, pode ser definido como natural (em sua existência), mas anormal quanto ao funcionamento se não for dominado. Cabe a psiquiatria (e posteriormente à psicanálise) tentar reconstituir o caminho do “instinto”, desde a infância até a idade adulta, em seus aspectos naturais ou anormais.

Para Foucault, grosso modo, esse é o campo da psicanálise e delimita seu objeto de estudo, ou seja, o destino familiar do instinto:
O que o instinto se torna numa família? Qual é o sistema de trocas que se produz entre ascendentes e descendentes, filhos e pais, e que põe em questão o instinto? Retomem essas duas noções, façam-nas funcionar juntas, e é bem lá dentro, em todo caso, que a psicanálise vai se pôr a funcionar, a falar (FOUCAULT, 2006, p. 283).

Dessa forma, na visão de Foucault, o poder psiquiátrico é calcado nessa “função de verdade”, pois ao médico cabe diagnosticar, é o detentor do saber científico, é o que o autor chama de superpoder do médico.

Esse superpoder da psiquiatria sofre uma crise, a partir de acontecimentos vistos desde 1821 à 1880, referente à simulação das histéricas. As simulações histéricas ficaram conhecidas a partir de episódios ocorridos na França, no Hospital Salpêtrière. Primeiro ao comando do médico Georget, em 1821 e posteriormente com Charcot, por volta de 1880. Mas por “simulação” não se deve entender puramente alguém “fazer-se passar por louco”. De acordo com Foucault:

A simulação é um processo pelo qual os loucos efetivamente responderam, a esse poder psiquiátrico que se recusava a colocar a questão da verdade, com a questão da mentira. A mentira da simulação, a loucura simulando a loucura, foi este o antipoder dos loucos em face do poder psiquiátrico (...) E a grande crise da psiquiatria asilar, a que eclodiu no fim do século XIX, mais ou menos em 1880, que aparece quando se percebe que, diante da grande taumaturgia de Charcot, todos os sintomas estudados por ele eram por ele suscitados a partir da simulação de seus doentes, de modo que o problema da verdade tenha sido assim imposto à psiquiatria pelos loucos”
(FOUCAULT, 2006, p. 168-169).

Nessa concepção, a histeria na verdade seria um processo tipicamente asilar, uma forma dos enfermos escaparem ao poder psiquiátrico, e não “a grande doença do século XIX”. O crédito à primeira despsiquiatrização, portanto, deve-se a esse grupo de simuladores, que reintroduziram a questão da verdade no meio psiquiátrico. Foucault prossegue dizendo que tal mérito não se deve a Freud. Há na psicanálise, mesmo que se retire o indivíduo do espaço asilar, uma reconstituição do poder do médico.

Após traçado tal panorama, sob o ponto de vista foucaultiano, onde é possível vislumbrar o nascimento da função-psi e como a loucura tornou-se objeto de saber/poder médico, cabe retomar o tema da perversão e considerar as observações do autor a respeito. Até o prezado momento, pode-se averiguar a origem da noção de instinto e o papel da família, que futuramente embasará os diagnósticos psiquiátricos sobre perversão. O que for preciso explicar sobre o comportamento “desviante e anormal” será feito com base no instinto e no estudo dos antecedentes do sujeito (ou seja, sua biografia e o que seu meio familiar propiciou, e que resultaram na conduta “irregular”). Como vimos no capítulo, a nosografia psiquiátrica da perversão comporta exatamente tais conceitos (instinto e antecedentes familiares) e agrega ainda um terceiro elemento, a saber, o onanista infantil. Neste sentido, as aulas sobre “Os Anormais” vêm ao nosso auxílio, e nelas é possível vislumbrar o que a psiquiatria entende por perversão e em que contexto emergiu um saber sobre um grupo de indivíduos que apresenta uma conduta social e/ou sexual dita “desviante”. Ele situa “os anormais” como sendo figuras que amedrontam a sociedade no fim do século XIX e, portanto, exigem do saber médico uma medida de controle e vigilância. Segundo o autor, o grupo dos anormais formou-se a partir de três elementos:

a) o monstro humano;
b) o indivíduo a corrigir;
c) o onanista.

Deve-se ressaltar que essa constituição não foi sincrônica e que esses elementos por vezes são intercambiáveis. O monstro é uma noção jurídica-biológica, ou seja, figuras que são meio homem/meio bicho ou hermafroditas, por exemplo. Ele representa uma exceção no que diz respeito à forma da espécie e o distúrbio que traz às regularidades jurídicas. Viola as leis da natureza e da sociedade, é a figura desviante que amedronta. Gradualmente, na passagem do século XVIII para XIX, o monstro se tornará alvo de questionamento tanto para a prática judiciária quanto para prática psiquiátrica, a grande questão é: o perigo que ele representa. Sua monstruosidade não é mais analisada de acordo com suas imperfeições físicas, mas em sua conduta moral. Aos poucos passará a ser representado pelo anormal, é a passagem do “grande monstro antropófago aos pequenos monstrinhos perversos”.

A psiquiatria até meados do século XIX tem por função um ramo especializado que diz respeito à higiene pública. Ela deve fazer a proteção social contra os perigos da doença, trata-se de uma tentativa de prevenção e possível cura da doença mental. Foi preciso, portanto, iniciar uma codificação das formas de loucura (nosografias, prognósticos, fichas clínicas) e principalmente codificá-la em relação ao perigo que representa.

Também uma demanda do poder judiciário, que propicia a psiquiatrização do anormal. A partir de crimes cometidos por indivíduos perigosos, o judiciário se na dependência de um exame psiquiátrico. Tal saber é convocado no momento em que são julgados casos de crime sem motivação aparente (não crime nem delito se o indivíduo estiver em estado de demência no ato). Quando a possibilidade de uma patologia, o ato criminoso nos termos da lei desaparece. A partir de então é possível um laço entre os discursos judiciário e médico. Foucault nos diz que as noções de “perigo e perversão” constituem o núcleo essencial do exame médico-legal. A medicina passa a ter domínio sobre a perversidade, que aparece na segunda metade do século XIX.

O que aqui nos norteia é o modo como a psiquiatria toma a perversão como objeto e principalmente o modo de conduzir o diagnóstico. São retomadas categorias elementares da moralidade, os exames médico-legais expressam termos que se referem a um julgamento moral, como: “preguiça/orgulho/obstinação/maldade”. São relatados elementos biográficos do sujeito e não uma explicação de seu ato.

O que se revela através desses exames? A doença? Não. A responsabilidade? Não. A liberdade? Não. Mas sempre as mesmas imagens, sempre os mesmos gestos, sempre as mesmas atitudes, as mesmas cenas pueris: ‘ele brincava com suas armas de madeira’; ‘ele cortava a cabeça dos repolhos’; ‘ele magoava os pais’; ‘ele matava aula’; ‘ele não aprendia a lição’; ‘ele era preguiçoso’. E: ‘Concluo que ele era responsável’
(FOUCAULT, 2001, p. 46).

A citação acima merece breve nota, refere-se ao caso Pierre Rivière, um jovem camponês francês, nascido na comuna de Courvaudon, que em 3 de junho de 1835, aos vinte anos, assassinou a golpes de foice sua mãe grávida de sete meses, sua irmã de 18 anos, e seu irmão de sete anos. Michel Foucault, em 1973, coordena uma equipe de pesquisadores do Collège de France, o resultado é o livro intitulado “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão”. Apresenta em seu conjunto notícias de jornais, testemunhos, interrogatórios, laudos médicos e uma gama de diferentes discursos. Os olhares voltam-se para a pequena Courvaudon, há uma tentativa de explicação do ato de Pierre.

Foucault diz que a perversidade (com seu vocabulário pueril), serve de ponte entre judiciário e medicina, e tem seu bom funcionamento calcado na sua fraqueza epistemológica. Possibilita alternativas de proteção: o hospital ou a prisão. O perigo pode ser detectado e contido, é o poder de controle sobre o anormal.

Para explicar os crimes monstruosos, atos sem razão, surge um novo objeto: o ato instintivo. A investigação psiquiátrica utilizará o conceito de instinto quando não houver delírio, alienação ou demência. Isto facilitaria explicar uma espécie de “insanidade parcial” (que só atinge uma região do comportamento, sem afetar a inteligência ou vice-versa). A partir do conceito de instinto é possível situar toda a conduta humana em relação e em função de uma norma, sem a necessidade de se referir à alienação (é o caso das perversões). Como veremos no capítulo 4, a psicanálise utilizará no final do século XIX tal conceito e a partir dele falará em “pulsões”.

Descrevemos até o presente momento a figura do monstro, transformado em pequeno perverso, desvio que se tornou elemento chave para psiquiatria e para o sistema judiciário. É oportuno retomar a outra figura que constitui o anormal – o masturbador.

Por volta de 1710 começa uma verdadeira campanha contra o onanismo na Europa, é o surgimento do corpo sexual do infante. Os pais são responsáveis pela vigilância dos atos masturbatórios, como modo de preservar o corpo/saúde e denota a nova posição que a criança ocupa na organização familiar burguesa. No século XVIII tais discursos ainda não assumem sua função de disciplina sexual, mas será aos poucos incorporado no século seguinte. Dessa forma, a sexualidade passará a ser considerada origem de vários distúrbios físicos, com toda sorte de efeitos e em todas as idades. As obras sobre patologia cada vez mais colocarão na sexualidade o poder etiológico das doenças. Nessa campanha contra o onanismo, a relação restrita entre pais-filhos denota um novo aparelho de saber/poder. Há necessidade de um controle para que a criança não “abuse” de seu sexo, tudo isso baseado no conhecimento médico que regula a relação familiar e os malefícios da masturbação.

É neste contexto que em 1844, surge a obra de Heinrich Kaan, entitulada “Psycopathia Sexualis”, que traça uma relação entre o onanismo e as anomalias, ou seja, as aberrações no campo sexual. A partir de então, lentamente será possível a formulação de uma teoria da sexualidade que se caracteriza pela identificação de um instinto que atravessa o comportamento. Há, de acordo com Kaan, um vínculo entre instinto sexual e a fantasia (ou imaginação), que por sua vez comandam a vida psiquiátrica e física.

Na mesma época, Prichard escreve seu livro sobre “loucuras morais”, que seriam distúrbios de comportamento não delirantes. Griesinger está lançando os primórdios da neuropsiquiatria (os princípios de explicação das doenças mentais devem er os mesmos dos distúrbios neurológicos). Em 1849, no jornal “L’union medicale”, Michéa diz que o instinto sexual é imperiosa necessidade que estimula homens e animais, proporciona prazer e não está vinculado ao ato de fecundação. Ele cita como exemplos: o amor grego, a bestialidade, atração por um objeto de natureza insensível, a atração pelo cadáver humano. As aberrações sexuais estão ligadas, conseqüentemente, à imaginação e ao prazer. Em 1877, surgem os “exibicionistas” de Lasègue; Westphal em 1870 descreve os invertidos (é a primeira vez que a homossexualidade aparece como síndrome). Krafft-Ebing cita os masoquistas por volta de 1875-1880. Enfim, no final do século XIX proliferam as histórias sobre aberrações sexuais.

A anormalidade, nessa mesma época será atribuída também à hereditariedade e posteriormente à degeneração. Pode-se herdar não apenas doenças, mas vícios e defeitos. O alcoolista nesta visão poderia gerar não apenas um dependente de álcool, mas também um tuberculoso, um sujeito de comportamento desviado, um portador de doença mental. Isto significa que “tudo pode ser causa de tudo”. A degeneração é formulada por Morel em 1857, qualquer anomalia ou retardo pode ser explicado por um estado de degeneração.

A psiquiatria, através dessas noções, está no auge de seu poder, explica qualquer desvio relacionando à hereditariedade e degeneração. Se não há conteúdo patológico, mas conduta anormal herdada – não há o que curar! É necessário apenas buscar terapêuticas e medicalizar. A psiquiatria pode cumprir sua função de proteção e ordem, uma proteção científica que inclusive introduzirá seu saber na sexualidade das famílias, que é o próximo passo do presente trabalho e será esclarecido nos itens 3.2 e 3.3.

Este é o panorama dado por Foucault sobre a construção do conceito de perversão na psiquiatria. Estamos no final do século XIX e início do século XX, ocasião em que surge a psicanálise (trazendo por base a episteme vigente, ou seja, família burguesa atenta à sexualidade e os conceitos e classificações da psiquiatria, como veremos com mais detalhes no capítulo 4).

---
Fonte:
MICHAELLA CARLA LAURINDO: "A NOÇÃO DE PERVERSÃO EM FREUD À LUZ DO PENSAMENTO DE FOUCAULT". (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Filosofia (Epistemologia), Programa de Pós-graduação em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Orientadora: Profa. Dra. Inês Lacerda Araújo). Curitiba, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!