Humanitismo: um sorriso para o nada



“Para compreender o Humanitismo e sua relação com a obra do defunto autor, são estritamente necessários dois passeios: um pela visão da crítica literária sobre essa “doutrina” e outro, sobre as filosofias e teorias científicas que aparentemente interagem com o princípio humanitas.

Em Roteiro da consagração, Ubiratan Machado reúne alguns textos que foram publicados sobre as Memórias em 1881. Urbano Duarte e Abdiel (pseudônimo sem identificação) apontam para o caráter “altruísta” do amigo de Brás (2003, pp.133-7). A biógrafa Lucia Miguel-Pereira, em 1936, aproxima o pensamento de Machado da filosofia de Quincas e repele a idéia de paródia ao pensamento de Comte:

O seu nome (humanitismo), que faz pensar numa troça com o positivismo, é mais um piparote no leitor. Escondendo-se atrás dele, e da loucura do Quincas Borba, Machado pôs na teoria muito da sua concepção de vida. É o delírio transposto para o humorismo
. (1936, p.226)

Esses julgamentos, todavia, caíram por terra. Analistas contemporâneos são praticamente unânimes ao afirmar que o humanitismo é de fato uma troça ao positivismo e não mais nenhuma referência ao suposto altruísmo do grande pensador. Mas, para este estudo, importa em princípio a equiparação que Lucia faz do delírio ao princípio humanitas.

Antonio Candido retoma a análise de alguns críticos, sobre essa “filosofia”, centrada na sátira ao pensamento comtiano “e em geral ao naturalismo filosófico do século XIX, principalmente sob o aspecto da teoria darwiniana da luta pela vida com a sobrevivência do mais apto”, mas salienta que “é notória uma conotação mais ampla, que transcende a sátira e vê o homem como um ser devorador [...]. Essa devoração geral e surda tende a transformar o homem em instrumento do homem [...]” (1970, p.29).

Apresentam-se, portanto, duas novas idéias que tornam um pouco mais complexa a relação burlesca entre positivismo e humanitismo: uma possível similaridade entre o delírio e a filosofia do Quincas e o fato, como aponta Candido, de que algo sério para além da jocosidade aparente. Não se deve esquecer que, ao lado do sistema de Comte, os analistas literários também apontam a crítica ao evolucionismo de Darwin.

Bosi parece corroborar a biógrafa ao expor que
a vigência da dor em todos os seres deste mundo aparecia no delírio de Brás Cubas como uma fatalidade sem consolo nem remissão, pois a indiferença bruta da Natureza se prolongava na crueza da história dos homens em sociedade. No mesmo duro regime alegórico, Humanitas, objeto da filosofia de Quincas Borba, quer sobreviver e reproduzir-se, matando e devorando para alimentar-se, ignorando cegamente os vencidos e distribuindo batatas aos vencedores de uma eterna struggle for life. [...] É possível que a fonte desta intuição da existência, o autor a tenha bebido da doutrina de Schopenhauer [...] (1999, p.70)

Muitas reflexões sobre o humanitismo já foram feitas e inúmeras questões ficaram no ar. A filosofia estaria em consonância com o pensamento do autor ou seria o contraponto a sua visão de mundo? Ela se encontra em harmonia com a obra ou a ela se opõe? Até agora a exposição acima sugere apenas que o sistema de Quincas possui alguma semelhança com o teor das Memórias póstumas e, de acordo com Bosi, que o pensamento schopenhauriano se coaduna não somente com o delírio (como foi demonstrado neste capítulo), mas provavelmente também com o princípio humanitas.

Borba, tomado pela loucura, morre “jurando e repetindo sempre que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire” (p.303). Leonardo Vieira de Almeida, no ensaio “A questão da biblioteca em Memórias Póstumas de Brás Cubas”, apresenta mais um ângulo do prisma:

Tal referência à obra Cândido ou o otimismo, de Voltaire, é elucidativa do caráter da filosofia do Humanitismo. A personagem Pangloss, filósofo que procura ensinar ao jovem discípulo ser esse o melhor dos mundos possíveis, é concebido por Voltaire como um ataque direto ao sistema lógico de Leibniz
. (2006, p.140)

Brás num momento de fúria diz ao amigo: “estou farto de filosofias que me não levam a coisa nenhuma” (p.286). O defunto autor conclui que “nessa ocasião” o Voltaire de bronze que tinha na sala de estudo “parecia acentuar o risinho de sarcasmo”. (p.286). A presença do satírico filósofo setecentista é mais um dado que se acumula aos demais na tentativa de desvendamento da doutrina de Quincas. Mas que relação intrincada se estabelece com tantos nomes do pensamento ocidental: Comte, Darwin, Schopenhauer, Voltaire, Leibniz? Inicia-se, então, o pequeno e imprescindível passeio pela filosofia e pela ciência. Leibnitz (1646-1716) desenvolveu sua “doutrina do otimismo”. No prefácio de A vontade de amar, de Arthur Schopenhauer, Torrieri Guimarães ressalta que, para esse otimista, “considerando o mundo em seu conjunto, tudo está bem em relação ao todo” (s/d, p.6).

O zombeteiro Voltaire, de acordo com Guimarães, tomou “do filósofo alemão apenas o mote central de que ‘tudo corre pelo melhor no melhor dos mundos possíveis’ e “ridicularizou-o amplamente no seu ‘Candide’, através do engraçadíssimo dr. Pangloss. [...] Antes de Schopenhauer, portanto, Voltaire encarregara-se de demolir o otimismo” (s/d, p.7)

No entanto, o filósofo pessimista de raiz kantiana retoma o irreverente escritor francês para satirizar não apenas Leibnitz, mas também seu contemporâneo e maior antagonista: Hegel.

Edgar Morin, em O homem e a morte, ressalta que “enquanto para Kant o mundo exterior, tal como é sentido e representado, é um produto do homem, na perspectiva hegeliana é um produto para o homem”. (1970, p.243). O pensamento de Hegel e o de Schopenhauer sobre a morte e a supremacia da espécie possuem similaridades, diferenciadas apenas pelo olhar que cada um lança sobre o mesmo “objeto”, como destaca Morin:

A morte é sempre derrota de um particular e vitória de um universal. Hegel compreendeu perfeitamente a lei das espécies animais, onde o universal genérico triunfa do indivíduo particular. Mas em vez de ironizar amargamente, como Schopenhauer, acerca da irrisão em que a espécie coloca o indivíduo, aprova com toda a sua dialética essa morte necessária
[...] (1970, p.245)

Enquanto o filósofo do pessimismo se torna melancólico diante da falta de sentido da vida que caminha em direção ao nada, seu adversário o outro lado: o do progresso desempenhado pela natureza, o do universal sobrepondo-se ao particular, suscitando assim uma evolução contínua. De acordo com Morin, Hegel “chega [...] ao extremo de se regozijar com guerras que, despertando a morte, despertam também a universalidade” (1970, p.247).

Genésio de Almeida Moura, no prefácio dos Aforismos schopenahurianos, explica que o filósofo só obteve reconhecimento quando se encerrou “a fase humanístico-racionalista, que culminava no idealismo hegeliano” (1956, p.17).

Soma-se ainda a todas essas informações prévias a clara exposição de Bosi sobre a teoria da evolução da espécie e o positivismo de Comte:

nas teorias evolucionistas do século XIX todas essas marcas negativas da condição humana [...] eram redimidas e ganhavam explicações “racionais” no curso de um processo contínuo de aperfeiçoamento da espécie. Em última instância, os mais fortes e os mais aptos já tinham vencido e continuariam a vencer merecendo o prêmio final da própria sobrevivência: batatas, pelo menos. De modo similar, [...] o positivismo previa o melhoramento coletivo que o estágio científico da Humanidade teria inaugurado depois de superadas as fases teológica e metafísica da História
(1999, pp.155-6)

Apresentam-se assim, grosso modo, dois pólos antagônicos do pensamento ocidental que são as referências de humanitas. De um lado, os “otimistas” ou “idealistas”: Darwin e o evolucionismo, Comte e o positivismo, Hegel e o progressismo e Leibnitz e o seu “melhor dos mundos possíveis”; de outro, os satíricos, Voltaire e Schopenhauer que, diante do mesmo quadro, vislumbraram a tragicomédia da vida humana.

No capítulo 91, Quincas envia ao amigo uma carta em que apresenta sumariamente sua doutrina. Ele adianta que ela “suprime a dor” e que ele tinha “gosto de haver enfim apanhado a verdade e a felicidade” (p.240). Ora, Schopenhauer retoma Voltaire para defender que só a dor é real e a felicidade é ilusória. O mundo, para o filósofo, é ainda representação, de modo que o homem jamais se apropria da verdade (ou da realidade), mas apenas da idéia que faz dela. Essa felicidade inalcançável se encontra no delírio de Brás (assim como o oscilar schopenhauriano entre a dor e o tédio):

A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos. [...]. Então o homem, flagelado e rebelde, corria [...] atrás de uma figura nebulosa e esquiva [...] e essa figura, nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se como uma ilusão
. (pp.123-4)

Portanto, neste aspecto, o humanitismo se opõe ao delírio assim como ao pensamento de Voltaire e do filósofo pessimista. Quando Borba explica ao amigo a base de sua filosofia, afirma que “a vida é o maior benefício do universo [...] uma desgraça: é não nascer” (p.265). O defunto conclui, no capítulo das negativas, que seu saldo foi positivo porque não transmitiu “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” (p.304). Borba saúda a vida, enquanto Brás, desafrontado dela, a vê como um mal. Novamente, apresenta-se uma oposição categórica.

O humanitista também faz da guerra um bem em suposta sintonia com a concepção hegeliana e em contraposição a Schopenhauer: “a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar de dedos de Humanitas.” (p.266). Ao final da exposição, conclui, em “concordância" com as filosofias do otimismo, que Pangloss “não era tão tolo como pintou Voltaire” (p.267).

Posteriormente, Quincas, procurando reerguer o amigo, afirma que “vida é luta” (p.287), sentença exemplificada no espetáculo da briga de cães por um osso a que o filósofo assiste com êxtase. Ao ponderar sobre a competição entre homem e cão, conclui que disputar a comida “aos outros homens é mais lógico, porque a condição dos contendores é a mesma, e leva o osso o que for o mais forte” (p.288). Sem dúvida a teoria evolucionista aí se encontra, assim como a valorização do bélico, do “homem devorador”, a que se refere Antonio Candido.

Para Quincas, ainda, a terra existia para recreio do homem (p.267) enquanto no delírio se apresenta uma existência tormentosa em consonância com o pensamento crítico de Schopenhuer: “o mundo vai mal: os selvagens se entredevoram e os civilizados enganam uns aos outros, sendo a isso que se chama a marcha do mundo” (1956, p.182).

No mundo rege a lei do mais forte, as disputas são constantes e há um princípio que governa os indivíduos. Esses tópicos fazem parte tanto do capítulo em que o protagonista delira quanto da filosofia humanitista. Todavia o olhar é completamente outro. Enquanto no desvario de Brás, há um “sentimento amargo e áspero” que brota da percepção do absurdo da vida, das mazelas do mundo, na “filosofia” do Quincas a visão é otimista, idealista, progressista, positivista, como se, diante dos mesmos objetos, dois posicionamentos antagônicos se apresentassem.

Desta forma, ao que parece, os pontos para os quais os olhares se voltam são os mesmos, mas as conclusões são divergentes. O humanitismo, portanto, se opõe ideologicamente ao delírio e à própria obra, embora se erija sobre tópicos análogos.

Sobre os otimistas, o filósofo de O mundo como vontade e representação deu seu parecer que se coaduna perfeitamente com o princípio humanitas: “A vida para eles não tem fim algum fora de si mesma, e o mundo parece-lhes um lugar de delícias, perfeitamente organizado. [...] é a isto que chamam com frases retumbantes e enfáticas o progresso da humanidade” (s/d, p.133).

Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, a vida (ou a Natureza) tumular, indiferente à sorte das criaturas, pois delas se alimenta, é, em verdade, morte.

Quincas Borba, como o parvo Dr. Pangloss, sorri tolamente para o nada.
Leio sobre os grandes crimes e remexo-me nas trevas humanas. Provavelmente também eu uma criminosa em potencial. E quem não o é? Mexi-me demais no mundo das paixões e agora recolho-me para lamber minhas feridas ainda quentes de sangue. Não, não estou fazendo confidências. Nunca a úmida confidência. E sim o seco depoimento de uma mulher sem ilusões. Pouco me resta, pouco tenho a perder. Estou livre. É uma liberdade grave e muda. Também com certa tristeza que existe na liberdade. Mas sinto que coisas me prendem ao mundo e espero morrer sem que essas coisas me sejam tiradas. Não quero viver muito por medo de dar tempo de me cortarem em pedaços. (Lispector, s/d)"

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Fonte:
CRISTIANE TEIXEIRA DE AMORIM: "FACES DA MORTE NA PROSA BRASILEIRA: Lucíola, Memórias póstumas de Brás Cubas e A hora da estrela". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura brasileira). Orientadora: Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens). Rio de Janeiro, 2007.

Nota
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